Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues (Portugal/França, 2009)

março 11, 2013 em Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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A morte de Vênus
por Luiz Soares Júnior

“A decadência, resultante ao mesmo tempo da situação de uma classe na sociedade e da evolução individual de um personagem (…) é designada como o momento a partir do qual os fortes tornam-se fracos, e são então incapazes de vencer as influências que em outros tempos teriam rejeitado ou conseguido digerir sem prejuízo”.

 Jacques Lourcelles, em crítica sobre The Gypsy and the Gentleman, de Joseph Losey

“(…) é alguém que carrega meus cabelos.
Como quem carrega mortos nos braços.
Carrega-os como o céu carregou meus cabelos no ano em que amei.(…)”

 “Canção de uma dama na sombra”, Paul Celan

O evangelho de Lucas oferece do Calvário crístico uma versão tantinho perversa; nele, o que é encarecido não é tanto o telos da Redenção, quanto o itinerário do corpo martirizado. O inocente, maculado de finitude até os ossos, substitui-se aqui ao Filho aureolado de Glória joanino. Morrer como um Homem oferece-nos uma versão apócrifa – entre paródica e litúrgica – deste exasperante drama do corpo sacrificado. Aqui, o amor não é exatamente divino, mas a marcha segue o mesmo percurso acidentado em direção à cova de Holbein – marcha geralmente horizontal, num andante percutido por intempestivos stacatti, farisaica cusparada nos lábios do Filho.

Os stacatti são estes planos inteiriçados, hieráticos, onde toda sequência do filme vai desaguar: punho fechado de Rosario contra o celofone do presente do aniversário, faca de Rosario ameaçando Tonia na rua, peixinho moribundo do aquário, enfeitiçamento catatônico dos personagens pelo Calvary de Baby Dee, a cadeira vazia no hospital (o túmulo vazio que espera pelas discípulas ao final do aterrorizante Evangelho de São Marcos?), a pose final sobre o túmulo… Aqui, todo percurso, devir ou confronto deve estacar numa imagem-efígie, tem de morrer numa figura (no caso do cinema, num gesto); descreve-se um longo e mortificante inventário de rastros, que precisam a qualquer custo ou pena – do ritmo sobretudo: canhestro, assimétrico, átono – se fixar. Georges Charbonneau: “Assumir uma pose é sair de sua própria vida viva para entrar no mundo das figuras, para se figuralizar” .

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O contracampo em Morrer como um Homem recupera um pouco do caráter, assinalado por Lourcelles, de choque frontal que o seu uso oferecia no cinema primitivo. Choque entre um devir que se narra ainda e um plano inassimilável a este, cujo fito é embalsamá-lo; choque entre um Bildungsroman de meia idade e um percurso que o vota à mortificação fúnebre: como no modelo literário, o encontro com uma série de figuras, parentais ou não, vai preparando Tonia para metamorfosear-se numa Outra. Só que este Bildungsroman não a prepara para a vida, e sim para morrer. O circuito espacial e relacional de Tonia é claustrofobicamente restrito; da boate, só temos o fora de quadro no som off; da família (biológica ou espiritual, com as amigas e casos passados) , o fora de campo da Memória e do Imaginário (bela sequência de aplicação do “mega hair”, em que estas duas dimensões se imbricam num cromatismo inebriante, que anuncia a féerie da Floresta).

Fin de partie: temos uma personagem encurralada por um passado irrecuperável, um presente constantemente blocado ou solapado (os contracampos “beco sem saída”), um futuro fadado à castração – toda tentativa do personagem em sair deste circuito envenenado é sabotada pelo filme: os encontros evasivos ou epifânicos não dão em nada, ou anunciam horror iminente; o prazer ocasional no cinema pornô leva a um rompimento com o filho José Maria; o boquete em Rosario no carro desencadeia novamente a psicose do rapaz; o encontro encantado na floresta é arrematado com um profético: “Vamos embora daqui, este lugar é sinistro; dá-me arrepios”… e estas cariciosas sevícias no seio ulcerado de Tonia?, strip-tease cujo Eros contraiu núpcias com Thanatos, e esperam ambos à coxia o “Te Deum” erótico final?… Vislumbram-se aqui traços daquela sinistra beleza venusiana “que corre sob a pele”, assinalada por Arasse no São Sebastião de Messina…

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O filme é uma sequência(s) de brochadas, narrativas e rítmicas: à experiência é impossível uma reconciliação consigo mesma (a questão colocada por Tonia seria justamente: “que si mesmo”?), expressa pelo fluxo de uma narrativa… daí esta interpolação estrutural entre um “plano efígie” e um plano sequencial ou narrativo, esta castração necessária do “contar” pelo colecionar ou inventariar, este constante “quebrar o barato e recolher seus cacos”. João Pedro Rodrigues quer nos mostrar que não lhe basta (ou não lhe basta aqui) narrar, preencher um interstício espaço-temporal, fazer vibrar um diapasão dramático; em um mesmo movimento, devemos já rememorar o que é narrado, “demarcando-o e fixando-o” em um plano privilegiado (o punho fechado; o plano fixo na floresta), urna funerária da experiência impossível… como se a perspectiva secreta que presidisse a esta trajetória fosse o Requiem do fim, como se Tonia estivesse ao mesmo tempo presente no narrar e distante no In memoriam... o fato de que o único espetáculo que nos seja dado a ver da personagem seja a de seu velório dá-nos a chave.

A primeira cena de Morrer como um Homem, a cena “originária” que norteia a trajetória do filme, na verdade está ao fim: o Grand finale do velório. É para esta apoteose (antes: nesta apoteose) que tudo se enfeixa, convertendo-se em vestígio de...; daí as elipses bruscas, a síntese impossível entre andante (plano sequência) e stacatti (planos hieráticos, “acabados”, desligados de contextos dramáticos)… A Morte e sua potência demiúrgica rasurara e recortara o filme inteiro, transformando-o numa Summa de últimos rastros e esbarrões…

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O pressuposto decadentista aqui é evidente: no decadentismo, a Beleza só se pode manifestar martirizada ou maculada pela finitude, “na iminência do abismo ou da danação”- como danação. “ Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l’abîme, o Beauté? Ton regard, infernal et divin, Verse confusément le bienfait et le crime (Baudelaire, “Hymne à la beauté”). Lembrem-se de quando Tonia se olha ao espelho com o lábio sujo de sangue, depois de ter ferido a amiga fechando seu vestido: Narciso aqui só nos pode aparecer ferido de morte…

Os personagens de Rodrigues sofrem de uma síndrome incurável de metamorfose. Eles sempre se conceberam como experimentos in vitro de refiguração, como possíveis encarnados: a cápsula pulsional ambulante de O Fantasma; Odete e sua metamorfose “aparente” em rapaz; e agora esta musa Sub species aeternitates da Nostro mondomas é a Morte aqui, patrona e Signora di tutti, que permite esta mais radicalmente incondicional abertura de horizonte para a reinvenção figurativa: virtualmente, todos os personagens sofrem de polimorfia, senão figurativa, ao menos ontológica – a cachorrinha Augustina, por exemplo, não é claramente designada como um anjo intercessor entre o Divino e o humano? Rodrigues no-la apresenta pela primeira e última vez (resgatada por Tonia no jardim botânico e por Rosario na pedreira), através de um movimento vertical que ecoa a dupla vertical que Pasolini usara em Acattone – quando os famintos vão “filar a  bóia” da mãe de um amigo e durante o sonho de morte de Acattone -, verticalidade que busca dar a Deus a possibilidade de um consórcio dialogal com os homens, um contracampo impossível sugerido pelo movimento “ascensional” da câmera…

Se O Fantasma era um experimento abstrato em demasia e Odete resvalara no anedótico, Morrer como um Homem encontra uma mais justa medida no savoir faire, indissociável de uma arte materialista, de cinzelar o imaginário no carnal, e irisar a carne opaca com as transparências da alucinação e do desejo.

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