A Última Vez que Vi Macau, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (Portugal, 2012)

março 11, 2013 em Do Arquivo, Em Pauta, Filipe Furtado

* Originalmente publicado em Outubro de 2012

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Documentar o imaginário
por Filipe Furtado

O principio de A Última Vez que Vi Macau guarda certa semelhança com o de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Karim Aiñouz e Marcelo Gomes. Como no filme brasileiro, aqui a dupla de cineastas João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata partiu para Macau com o objetivo de realizar um documentário, e, no meio do processo, resolveu redirecioná-lo à ficção, por meio de um narrador cujas impressões emprestam às imagens um novo sentido. Há, porém, uma diferença gritante de método: enquanto Viajo Porque Preciso embalsama suas imagens numa pretensa interioridade que as reduz frequentemente a pouco mais que pictórico, A Última Vez que Vi Macau se lança com forças no ato da fabulação. É a diferença entre aqueles que apenas tomam suas imagens por empréstimo e dos cineastas que acreditam na potência delas.

O abismo entre os dois filmes é uma boa porta de entrada no que torna este novo trabalho de Rodrigues (agora em parceria com Da Mata, seu co-roteirista em Morrer Como um Homem, com quem já dirigira o belo curta Alvorada Vermelha ano passado) um filme muito especial. Há, evidentemente, uma longa tradição dentro do filme-ensaio de híbridos que flertam abertamente com a ficção – de alguns dos melhores trabalhos de Chris Marker a Patrck Keiller e John Torres – mas poucos que localizaram nesta ideia tamanha força e abraçaram de tal forma seu hibridismo: uma ficção assombrada pelo documental e um documental embriagado pela ficção.

Já nas suas primeiras imagens, Rodrigues e Da Mata nos entregam seu momento mais abertamente teatral, com a travesti Candy reincorporando Jane Russell a cantar “You Kill Me”, no Macao de Josef Von Sternberg, filme que segue com um significado totêmico ao longo de todo A Última Vez que vi Macau. Como todo filme de Sternberg, Macao é estilizado ao extremo, acontece numa Macau do mito, espaço memorável que só pode existir na memória e na fábula. A fantasia hollywoodiana, afinal, não é tão distante assim da fantasia do ex-colonizador que retoma à casa e dali nada pode extrair. Da Mata já caminhara antes pela verdadeira Macau, e não somente a Macau de estúdio de Von Sternberg; mas é uma Macau que já há muito desapareceu (levando consigo, vale dizer, o último vestígio do império português). Não à toa, o Da Mata ficcional parece totalmente incapaz de seguir a mais básica das indicações de endereço; no que cabe às suas memórias, poderia mesmo estar a caminhar pelos estúdios da RKO.

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As imagens que Rodrigues e Da Mata coletaram na ex-colônia sugerem muitas coisas: uma metrópole em trânsito; um espaço fluido em que o olhar orientalista do colonizador se perde na modernidade ocidentalizada do oriente; e sobretudo um lugar em que histórias acontecem (ou, como Candy bem coloca, “onde coisas estranhas e assustadoras acontecem”). O mistério da Macau de Rodrigues e Da Mata é dos mais convidativos. Muita da graça do filme surge de ele tratar sua Macau como um lugar que seduz, na medida em que permite ao espectador projetar o que seus desejos quiserem sobre ela. É a promessa final do exoticismo do qual Sternberg sempre foi o cultor maior no cinema, retomado numa roupagem contemporânea. É uma ideia que já deu as caras muitas vezes no cinema de Rodrigues, mas que se antes era encerrada num corpo, e agora é traduzida para todo um espaço. Toda a Macau é um corpo desviante que seduz.

Muitos artigos sobre A Última Vez que vi Macau descreveram a fabulação desenvolvida por Rodrigues e Da Mata como uma trama noir, o que limita muito seu escopo e a reduz a um fetichismo que não poderia estar mais distante dos interesses dos cineastas (mas que serve perfeitamente à preguiça dos press releases). A Última Vez que Vi Macau é um filme de conspiração muito mais próximo de Jacques Rivette e Raul Ruiz na sua lógica do que do subgênero americano, e, se há uma inflexão da ficção americana nele, ela se dá menos pela porta do cinema e mais da literatura de fundo conspiratório do país, de autores como DeLillo e Pynchon.  De fato, afora Macao,o único filme americano do qual A Ultima Vez que Vi Macau se aproxima é A Morte num Beijo, de Aldrich, que, a despeito da sua superfície de gênero, cresce em sua histeria paranoica na direção de uma ficção cientifica apocalíptica tanto quanto a fantasia proposta pela dupla portuguesa. Estamos no risco da ficção, em que a crença no imaginário abre as portas para o submundo, tramas e contratramas, sociedades secretas e o perigo constante da morte, na qual estes elementos todos são apresentados com a lógica própria da alucinação.

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Nada poderia a principio ser mais distante do documental, mas A Última Vez que Vi Macau é uma extensão natural de um filme documental sobre o imaginário do colonizador pós-colonial. Da Mata se perde de Candy e vaga, deambula pela cidade estranha; o que ele encontra são traços de uma história pessoal (o verdadeiro João Rui Guerra da Mata cresceu mesmo ali) e colonial, vestígios que assombram o filme tanto quanto o número de Candy na sequência de abertura. A sociedade secreta no centro da trama ficcional só poderia mesmo se revelar um inconsciente reprimido da colônia, o receptáculo do imaginário do colonizador pronto para retomar seu lugar. Rodrigues e Da Mata reconhecem o desgaste do seu olhar, mas não podem resistir a ele; o imaginário deseja retomar aquele espaço como seu próprio playground, mas ele lhe devolve apenas ficções cientificas apocalípticas. O império, afinal, já há muito foi engolido pela periferia; ao colonizador, resta sonhar e constatar a sua insignificância.

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