Do outro lado da janela

março 11, 2013 em Em Pauta, Fábio Andrade

Morrer como um Homem (2009), de João Pedro Rodrigues

Morrer como um Homem (2009), de João Pedro Rodrigues

Olhares que se cruzam no cinema de João Pedro Rodrigues
por Fábio Andrade

Há uma imagem central no cinema de João Pedro Rodrigues, que aparece logo nos primeiros quinze minutos de O FantasmaOdete e Morrer como um Homem: uma pessoa que olha pela janela. A rigor, não haveria nada de novo nesta imagem – por si, um clichê do cinema contemporâneo, se não no cinema de todas as épocas. Mas esta convenção – uma personagem que olha pela janela – nos filmes de João Pedro Rodrigues vem seguida por uma outra convenção (essa mais esquecida, de tão facilmente assimilável), que por sua vez desmonta o sentido fácil embutido no clichê dos personagens que simplesmente olham para fora (e, pela lógica do clichê, “para dentro”): um corte que mostra o que aquela personagem olha. O espaço além da janela é uma rápida impressão de fora de quadro que, no momento seguinte, se presentifica, mas já vem carregada da subjetividade de algo que é visto: alguém olha esta cena. O quadro e o fora de quadro se tornam mera questão de campo e contracampo.

Este embate entre campo e contracampo, entre o dentro e o que já foi fora, não existe, no cinema de João Pedro Rodrigues, livre de tensão. A chegada dos soldados à casa dos travestis, em Morrer como um Homem, é marcada pela proximidade (“devem ser amigos do teu pai”, diz um dos soldados a Zé Maria) e seguida duas vezes pela morte (“o meu pai está morto”, ele responde, antes de apertar o gatilho). O mesmo acontece em Odete, com câmera que chega a assumir ares de subjetiva. Em O Fantasma, a clareza da proposição do fora de quadro também é colocada logo nos primeiros planos – o cão que risca a porta que o separa da curra – e cerrada no olhar de Sérgio que vê gemidos não tão distantes daqueles marcados por prazer, mas de uma filha que chora quando repreendida pela mãe. A câmera, porém, não mostrará que gesto de violência é esse e não fará mais do que sugerir quem está envolvido nele – algo que, contrastado com as gráficas cenas de sexo explícito do filme, servem como uma espécie de declaração de princípios (políticos) de o que é digno de estar em quadro nos filmes em questão.

Este gesto é de vital importância, pois muito do cinema de Rodrigues se concentra em um jogo entre o dentro e o fora de quadro, e na intercambialidade entre essas duas esferas. Por mais que esse seja um procedimento comum a muito do que já foi feito no cinema, poucos diretores realmente se concentraram em filmar a instabilidade deste jogo. O que faz o cinema de Rodrigues escapar da necrofilia que empesteia tudo que é facilmente enquadrável (ele não é tão somente um maneirista, um representante de luxo do queer cinema, um cineasta de gênero, um bastião da iconoclastia – embora muito provavelmente ele não deixe totalmente de ser um pouco de cada uma dessas coisas) é justamente essa condição de que não só o morto (o fora) é olhado pelo vivo (o dentro), mas que isso basta para que, no momento seguinte, este morto venha à vida e o fora de quadro se torne contracampo. Filmar como uma forma de imantação. A imagem de quem olha à janela não se limita a um dos lados, tampouco à própria janela, mas sim recupera essa operação bastante tradicional que a história do cinema um dia batizou de efeito-kuleshov, e que hoje se tornou tão onipresente que parece dispensar nomenclatura específica. O vivo olha para o morto, mas o morto lhe olha de volta… o efeito-kuleshov volta, com isso, a de fato ter efeito.

O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues

O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues

Não é à toa que Morrer como um Homem não só seja uma grande jornada do dentro para o fora – uma jornada de aprendizado para que se possa sair de cena, literalmente – como seus principais motifs dramáticos também entram nessa pequena espiral, nesse jogo de esconde-esconde que se impõe entre os vivos e os mortos: basta um cacho de cabelo sumir de vista (escondido, com toque de ironia, por um cão) para todo tipo de reviravolta se impor em tela. E que, em Odete, a pulsão de vida seja disparada por um fora de quadro que se esconde dentro do quadro: o chute de um bebê ainda na barriga da mãe, enquanto Odete a envolve com as mãos: “Estou a sentir o bebê”. Há, no cinema de João Pedro Rodrigues, um campo magnético entre o fora e o dentro que, quando bem sucedido, reforça o quadro, pois é o quadro que pulsa, ritmado por batimentos cardíacos. A morte – a saída de quadro – gera uma força de atração, mas dessa força surgem quadros fortemente compostos, assim como o encontro com as convenções dos gêneros mortos só as enche de vida. O poder de ressuscitar os gêneros mortos pela busca de seu lugar que Miguel Gomes teoriza (de forma não menos brilhante) em Aquele Querido Mês de Agosto ou Tabú se impõe como fato nos filmes de João Pedro Rodrigues. Com isso, há vida possível: o cinema recente talvez tenha filmado outras coisas tão bonitas quanto a chuva que cai, com uma rapidez brutalmente artificial, junto com o choro (e com a música) diante da morte no começo de Odete; mas não mais bonitas.

Neste momento, faz-se necessário trazer para o texto o quarto longa de João Pedro Rodrigues, até agora mantido propositalmente fora da conta. Pois por mais que exista uma aposta que a imagem de Candy, que abre o filme, poderia se projetar sobre todo o resto do filme, A Última Vez que Vi Macau é o primeiro longa de João Pedro Rodrigues (co-dirigido com João Rui Guerra da Mata) em que os fantasmas do fora de quadro têm uma força paralisante, a ponto de anular a pregnância das imagens – ou seja, do filme. Seu mais recente trabalho apresenta uma certa virada nesta queda-de-braços, inflando uma ausência (o imaginário do colonizador, que Filipe Furtado aponta com precisão em seu texto, e que toma forma cinematográfica justamente com a aproximação do gênero – terreno em que Portugal deixa de ser colonizadora, e passa a ser colonizada… terreno que só permite um olhar enviesado) que termina por diminuir o que está neste quadro (para um filme de João Pedro Rodrigues, é surpreendente como não há um número razoável de planos que se agarrem à memória), a vida a correr por vielas que, ao final, nos parecem bastante comuns, indignas de uma vida de cinema. Não basta apontar a câmera, como não basta olhar por uma janela: o peso do que está do outro lado é intimamente relacionado à presença sensível de que alguém olha.

Morrer como um Homem (2009), de João Pedro Rodrigues

Morrer como um Homem (2009), de João Pedro Rodrigues

É preciso, porém, dar tempo ao tempo e fugir dos decretos teleológicos que carimbam mortes e falências em uma trajetória que talvez tenha acabado de começar. Se A Última Vez que Vi Macau não traz a potência dos filmes anteriores, é porque jogar com a morte é coisa séria e nem sempre o jogo ficará a favor dos vivos. Mas mesmo quando ele calha de estar perdido, é preciso olhá-la de frente, do lado de cá da janela, sem desviar os olhos. Não é à toa que, próximo ao final de Morrer como um Homem, Tonia (Fernando Santos) se aproxime da janela, e que desta feita ela esteja fechada. E que, dali, Tonia só possa trocar suas plumas pela sobriedade de um terno e seguir para o caixão que desce pela terra, como sobem os inevitáveis créditos finais. No cinema, o único plano morto é aquele que perdeu a possibilidade ou a coragem de ver.

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