O Fantasma, de João Pedro Rodrigues (Portugal, 2000)

março 11, 2013 em Em Pauta, Rafael C. Parrode

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A beleza quimérica de Narciso
por Rafael Castanheira Parrode

“fan.tas.ma
s m+f (gr phántasma) 1. Visão quimérica, geralmente apavorante, produto da fantasia. 2. Coisa medonha. 3. Pessoa macilenta e magra. 4. Simulacro. 5. Suposta aparição de pessoa morta ou afastada, alma do outro mundo; espectro, espírito. 6. Pessoa fictícia, inventada (…)”

“toda fonte é uma moça bonita que foi amada por um deus,
que disse não a um rio, que fugiu de um sátiro, nada é real, nada é apenas isso,
tudo é transformação”

“Metamorfose”, Paulo Leminski

“Extasiado consigo mesmo, fica imóvel, incapaz de se mexer,
o olhar fixo, qual estátua esculpida em mármore de Paros.
Estendido no chão, contempla os seus olhos, astros gémeos,
e os cabelos dignos de Baco, dignos até do próprio Apolo,
as faces impúberes e o pescoço de marfim, e o esplendor
dos lábios, e o rubor misturado com a alvura da neve.
Olha maravilhado para tudo o que o torna maravilhoso.
Sem saber, deseja-se a si próprio, e o elogiado é quem elogia;
E, ao desejar, é o desejado, e junto incendeia e arde de amor.
Quantas vezes beijos vãos não deu àquela fonte enganadora!
Quantas vezes não mergulhou os braços no meio das águas
para abraçar o pescoço que vê, e não se abraçou a si mesmo!”

“Metamorfoses”, Ovídio (tradução de Paulo Farmhouse Alberto, 2007, p. 96)

O mito de Narciso lida essencialmente com a questão central da imagem/forma, que se constrói como reveladora de um outro que é o reflexo de si mesmo, e que Narciso mergulha no rio buscando encontrar. Lacan o analisou sob a perspectiva do espelho, que provoca uma cisão entre o real e o virtual. A imagem refletida não é o outro físico, mas o lugar de inscrições de valores estabelecidos pelo outro, cujo representante é o próprio espelho em que se circunscreve o eu que está inserido no mundo real, mas que, por ser reflexo, passa a ser um espectro, um fantasma. “Fantasma” é, segundo Lacan, necessariamente a “imagem que foge”, “imagem que escapa de”, “imagem que está escondida”. O Fantasma, primeiro longa do português João Pedro Rodrigues, é, nesse sentido, uma releitura do mito de Narciso – percurso de auto-descoberta, de encontro com o outro, de mergulho nesse reflexo em busca de uma imagem que seja original, primordial, catalisadora de sua essência imaterial, primitiva e instintiva. Não se trata, portanto da conotação moderna do termo narcisista, da contemplação frívola e do culto à beleza, mas do encontro consigo mesmo, da essência que transcende o corpo e que reflete, na própria face, o semblante do Criador.

Sérgio é a personificação desse Narciso, que lida com o prazer de forma obsessiva e hedônica. Seus desejos e seus impulsos extravasam os limites de seu corpo, reprimidos em seu dia-a-dia de lixeiro nas ruas de Lisboa. Na companhia de seu cão Lorde – único ser com quem ele cria uma relação de carinho e empatia – Sérgio lida com suas privações e desejos de maneira ao mesmo tempo libertária e aprisionadora, catalisando todas as sua pulsões (sexuais, violentas) e paixões numa jornada de auto-descobrimento, de auto-consciência, ao mesmo tempo em que se isola cada vez mais do mundo das regras e dos conceitos impostos.

Existe, antes, uma consciência de Sérgio de seu não-lugar no mundo. É ela o fantasma que está na margem e que a todo tempo escapa. Seu mundo não é o mundo da beleza narcísica, ainda que ele a busque a todo tempo em suas caçadas noturnas. E é exatamente quando Sérgio encontra essa personificação da beleza – aqui representada por um jovem nadador louro e de olhos azuis – é que ele se deparará com a natureza radicalmente enganadora, e ao mesmo tempo mortal, da beleza da imagem. Essa representação do belo é para Sérgio então uma ameaça, uma imagem que o impele, que o arrasta para um caminho sem volta, rumo aos confins obscuros de sua alma, chegando de súbito ao entendimento de sua essência imaterial, vendo a si mesmo como muito mais do que um simples mortal fadado a perecer pelo tempo.

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João Pedro Rodrigues é dos cineastas contemporâneos, como Claire Denis e Tsai Ming-liang, que constroem seus filmes a partir de composições de ritmo, por um tratamento sutil dos corpos e dos espaços, da duração dos planos, do naturalismo da encenação, sempre lidando com pulsões sexuais e violentas de seus personagens, para construir simbolicamente algo que transcende a própria vida. O corpo é uma máscara por si só, uma fantasia. É um cinema barroco, que respira Fassbinder e seus personagens se (des)equilibrando na margem (do filme e da vida), Tourneur e seu poder de fabulação, e a utopia estilhaçada do cinema de Werner Schroeter.

É interessante perceber como o filme lida com a questão do gênero – sexual, mas também cinematográfico. Para Rodrigues, não há como catalogar, não há como definir o ser humano utilizando padrões, dicotomias e paradigmas. O corpo, enquanto fantasia, nunca definirá a alma, essa sim disforme e diáfana, imprecisa e ambígua. Formalmente, o diretor parte de todo um processo de desconstrução imagética do gênero, se furtando a estabelecer, seja temática ou esteticamente, qualquer filiação que enquadre seu filme em um parâmetro, em um modelo de cinema. Mas, Rodrigues não renega as convenções pré-estabelecidas; ao contrário, desintegra-as, estilhaça suas estruturas, reconfigurando-as sob uma espécie de transgênero, esse sim por si só incatalogável, híbrido, incomensurável.

O fato de Sérgio ser um fantasma no corpo de um homem, e de sua consciência enquanto espírito aprisionado nesse corpo, amplifica ainda mais essa distopia do gênero. Seu desejo diante do mundo não conhece barreiras, não permite limites. Seu desejo é o que o impulsiona a viver. É uma atitude instintiva, animalesca que o aproxima de sua primitividade, da sua violência e beleza originais. João Pedro Rodrigues realiza então o caminho reverso da clássica linha evolutiva darwinista. Nesse percurso, Sérgio irá retomar seu estado original, reencontrar seu eu primordial., se desnudar de todas as fantasias, retirar todas as máscaras, peles, músculos, para enfim se tornar um espectro, um animal selvagem, um reflexo, um embrião de si mesmo.

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Esse retorno de Sérgio ao princípio, ao lobo do homem, será antes de mais nada a sua libertação perante o mundo.  E é uma ironia que, tendo se despido de todas as suas peles, ele encontre como casulo para seu renascimento e libertação, a fantasia bondage – instrumento de fetiche, utilizado para sodomizar um de seus parceiros – reconfigurando-a como uma carapaça de seu novo eu, disforme, incolor, redefinido materialmente à sua condição de ser quimérico, esse monstro, partes de tantos bichos reunidas em um só corpo.

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