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Câmera de espelhos

Pendular, terceiro longa dirigido por Júlia Murat, tem um ponto de partida simples: um casal de artistas, aparentando entre trinta e quarenta anos, brancos, sem nome, divide espaço num galpão no centro da cidade do Rio. O filme vai de uma situação de equilíbrio inicial entre os dois, quando uma linha é demarcada neste amplo espaço, até o momento da crise da relação, dividindo-se em quatro capítulos. Pendular cria um jogo de ressonâncias e espelhamentos da situação afetiva do casal por meio de seus demais elementos. Além da metáfora inicial da disputa espacial, o trabalho de cada um – ela, bailarina; ele, escultor – funciona também como um vetor de reiteração do andamento do núcleo afetivo do filme.

Temos acesso ao cotidiano dos dois no galpão onde se passa quase todo o filme. Ela ensaia, ele conversa com seus assistentes, move grandes objetos; eles encontram amigos, fazem uma festa lá dentro, jogam uma partida de futebol; ela se apresenta para uma pequena plateia de pessoas, tudo nesse mesmo espaço. Também lá, vivem momentos íntimos, numa gradação linear em direção à cisão. Pendular narra um feixe de elementos – personagens, afetos, espaços, ações, encontros – que caminham todos num mesma direção, do equilíbrio ao desequilíbrio. A nós é dada a permissão de acompanhar o andamento deste processo.

Em relação ao seu longa anterior, Histórias que Só Existem Quando Lembradas (2011), há claramente uma maior desenvoltura em traduzir em imagens e sons o acompanhamento de um processo linear, que também lida com uma estrutura de clausura. É notável como a câmera parece estar a uma distância precisa e eficiente das coisas, para que elas virem sentido ou sensação. Desde uma das cenas iniciais, na qual a pele de Raquel Karro – a que dança – é filmada como se fosse um relevo, um espaço íntimo se abre sob uma perspectiva que também o desnaturaliza, fazendo rimar a epiderme com o chão ou as paredes. Toda relação atores-câmera parece aqui muita justa em seus tempos e distâncias, em um nível incomum para cineastas dessa geração, em especial quando dedicada à presença do corpo da protagonista. O processo de gradação que marca a linha dramática geral age com eficiência no desenho da luz, caminhando do diurno ao noturno sem que percebamos, modificando o espaço e o desenho de som – que trabalha em frequências muitas vezes próximas do inaudível – fazendo com que suas entradas e saídas sejam imperceptíveis, e sua produção expressiva se dê num nível não-reiterativo.

Novamente, como no longa anterior, temos artistas como protagonistas. No Histórias…, uma fotógrafa; aqui, a bailarina-coreógrafa e o artista visual-escultor; nos dois, o trabalho dos protagonistas se coloca como imagem-núcleo de um processo uniforme do qual o filme se ocupa unicamente. No longa anterior, podemos dizer que este seria um certo “poder morrer”, e aqui, um “viver junto”. Mas se a dança dela vai marcando o filme nesse jogo de exprimir os estados emocionais da personagem – chegando ao ponto de uma cena onde é lida uma crítica do trabalho dela que aponta justamente essa ligação do pessoal no trabalho como um limitador –, o trabalho dele parece empacado – como comenta o amigo crítico (vivido por Marcio Vito) que vai ao ateliê. Afinal, o foco do filme vai também se atendo muito mais a Ela que Ele, na medida em que a situação que desencadeia a ruptura posterior, uma gravidez e um aborto, pela perspectiva da exploração corporal, leva a atenção para Ela. Por outro lado, Ele (vivido por Rodrigo Bolzan) se constitui como uma presença opaca, sobre quem sabemos menos os motivos, seja pela ausência de pistas sobre sua crise criativa, ou pelo relacionamento através de um game online com alguém que nunca vemos.

Nesse jogo de ecos, o próprio trabalho do filme como obra se insere nesta série de comparações e comentários sobre ideias de “arte” e “artista”. Temos, aqui, neste drama de amplo interior, artistas que concebem sua arte voltando-se para si, partindo de uma ideia de “interior”, intimamente ligada ao tornar-se da obra. As coreografias vão mudando na medida em que os sentimentos também vão. O filme se estrutura por um enorme desejo de paralelismos dos processos: este interior é o que fica cheio – o galpão, de obras dele; os protagonistas, de afetos conflitantes – e os processos se quebram.

De certa forma, o que parece realmente em jogo em Pendular é a ideia de exterior. Não é por acaso que o filme ganha o espaço exterior justamente no seu fim.

Como o próprio filme rima com um repertório de dança e escultura modernas, escolhendo para si, especialmente na sua primeira metade, ligações internas de natureza conceitual – coisas que se ligam racionalmente – a ideia de exterioridade resume o centro de tensão do filme. Exterioridade, no caso, como maneira dos processos que não têm origem fixa, como sinônimo de alteridade afinal.

Uma unicidade sufocante – inclusive para os próprios personagens – atua por todo o filme. Na medida em que escolhe esse trajeto que se consolida a partir de uma autometaforização generalizada, em vez de uma linha de ações concatenadas, ou mesmo de intensidades moduladas, Pendular parece sufocado por si mesmo, por um violento narcisismo travestido de unidade de conceito.

Narcisismo, pois o filme é muito habilidoso em conceber imagens de si e de seus processos. Por exemplo, os personagens entram em crise, e a coreografia que ela faz é da canção “Love Will Tear Us Apart”, do Joy Division, sendo o título uma clara descrição do que acaba de acontecer, que se desdobra no jeito mais descontrolado com que a protagonista dança.

Pêndulo é um objeto que se movimenta, mas que está condenado a uma origem, um ponto fixo. Toda sua amplitude está prevista por esse ponto. Por mais que o filme seja muito hábil em constituir dinâmicas internas das cenas, e aproveitar as situações espaciais, como no banheiro ou no quarto do casal, fica a impressão de clausura a um centro, a uma ideia matriz que não vê nada exterior a si mesma. Assim, não surpreende que os personagens não saiam na rua, ou que todos seus amigos sejam parecidos – numa fiel reprodução de um modo de ser das elites culturais urbanas brasileiras: brancos, “descontruídos” e ensimesmados. E, seguindo por essa linha possível, este grupo, e sua ideia de arte – fadada a se esgotar e produzir histerias de “tudo já foi feito” – está condenada justamente por estar umbilicalmente presa a essa origem que é a elite brasileira, de maneira mais ampla, um ethos do poder. A cena da festa ou mesmo a do teatro, assim como as conversas irônicas, parecem uma fidelíssima descrição deste grupo e de sua fome endogâmica, motor de automanutenção. Endogamia, porém, talvez seja uma boa descrição para os processos de sentido do próprio filme e sua vontade de fazer tudo casar, em direção a uma união semântica estável, sacrificando possibilidades de violar sua própria forma, andamento ou direção.

O fascínio do filme pelo seu interior – como ideia ampla – faz com que especialmente sua segunda metade seja previsível, enfraquecendo a escolha inicial de uma linha de acontecimento menos logicamente encadeada, a partir da qual podíamos nos deixar levar por outras frequências, menos submetidas a esse ponto fixo. Uma certa fobia da instabilidade real – ou mesmo conceitual – parece conduzir o filme e impedi-lo de ligações menos pré-condicionadas. Mesmo que os roteiristas sejam casados na vida real – como até o material de imprensa atesta – a rima personagens-autores parece pobre na medida em que o filme coloca elementos e conjuga momentos nos quais sua própria força parece subutilizada por esse medo da desordem, ou melhor, da convivência com outras ordens. Isso passaria por abrir outras linhas, que atravessem o universo do filme, dramatizando o conceitual, conjugando movimentos, combinando heterogeneidades.

Caso raro de filme com título adjetivo, Pendular já descreve de antemão o que pensa sobre seu próprio modo – sendo o Projeto Linha a materialização mais que literal disso. A sorte de todos nós é que abrir uma lente e um gravador é, em alguma medida, abrir ao involuntário, a uma desordem exterior das coisas. Portanto, mesmo que vidrado por sua armadura de asfixia conceitual reiterativa, o filme deixa imagens pregnantes, como a transição de uma coreografia com cadeiras que se torna apresentação, e o uso do espaço do banheiro, assim como as cenas de videogame (um dos respiros desse processo unificador).

Quando o filme se permite o espaço exterior, na sua porção final, ele mesmo indica o que parece ser um movimento a seguir inclusive na obra de Júlia Murat – já ensaiada em Dia dos Pais (2008, co-dirigido por Léo Bittencourt): uma imagem pela qual não somos necessariamente direcionados a olhar ou sentir nada, e aí posso descobrir algo – o que faz de um homem, negro, brasileiro comum, bem pequeno no quadro, com um braço amputado, que passa na frente da fachada do galpão, a imagem de uma linha de fuga desse autofechamento. O próprio filme parece consciente disso no último diálogo entre os dois atores principais, no qual ela diz ter sentido certo estranhamento ao vê-lo. E, nesta mesma direção, é eloquente que o filme seguinte de Júlia Murat, também presente aqui no festival, Operações de Garantia da Lei e da Ordem (2017, co-dirigido por Miguel Ramos) seja um filme de arquivo, de imagens de outros, de exteriores, quase como uma continuação espacial deste. Resta saber se isso pode contaminar a perspectiva do trabalho, não fazendo do exterior o mesmo tipo de relação de reiteração que aqui vemos chegar a um ponto de paroxismo.


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