Amor (Amour), de Michael Haneke (França/Alemanha/Áustria, 2012)

março 11, 2013 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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Vampirismos in vitro
por Luiz Soares Júnior

“C’est vous qui êtes tristes; tout ce que vous faites, c’est triste”.
Maurice Pialat como o pai Roger, em Aos Nossos Amores

“Ele é malvado, ele não vai para o Paraíso
Aquele que morre sem ter pago todas as suas dívidas.
Almanaque das Boas crianças”
Louis Ferdinand Céline, “Bagatelas para um Massacre”

“Il faut être entouré de culs, quand c’est un cul qu’on fout” (É preciso estarmos rodeados de cús, quando fodemos um cú).
Dolmancé em “A Filosofia na Alcova”, Sade.

Há uma lenda antiga que fala do poder nefasto da pata do cavalo de Átila, guerreiro huno; segundo a crença popular, ela esterilizava todo solo onde pousasse. Haneke é como a pata eqüina de Átila: converte em demonstração ad hoc todo itinerário imaginável de paixões; das paixões tristes, pelo menos, que predominam em seu cinema – a frigidez, o ressentimento, o rancor daninho e secreto que, para Haneke, é o sal ático da civilização (decadente) que somos nós. A tese a demonstrar é a de que, mostre-se o personagem ou situação que se mostrar, filme-se o que se filmar, tudo não passa do decalque atual desta demoníaca ronda do Mesmo, desta triunfante vitória das paixões tristes que um dia se chamou Ocidente.

Em Amor, temos uma inflexão intimista, mas não menos determinista: o Amor é a máscara da misantropia, da psicopatia, do egoísmo espoliador; Eros é o cúmplice secreto ma non troppo de Thanatos. Todas as pistas nos são dadas – a clausura total, o ‘Sempre soube que você era um monstro”- de que a psicopatia talvez seja o único inexpugnável elo daquela cadeia de conforto, elegância e método que o casal formou para si – em suma, o horror paranóico ao Outro. Mas o golpe fatal do marido na mulher já se encontra devidamente designado no primeiro contracampo do filme: ao corpo morto de Anne sobre a cama, contrapõe-se o título sobre fundo negro. Logo, deduz-se que: Amar é… O resto do filme vai se encarregar estritamente de ir delineando as etapas deste itinerário a priori definido; e ao espectador caberá apenas ser dirigido, laboriosa e falaciosamente, do fim ao princípio, da conclusão às premissas, e ligar as duas pontas: circuito fatal e finalístico, de onde não se sai (nem onde se entra).

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… não se sai do círculo envenenado do décor pastel, onde o vírus do horror é gestado sob rigorosas e metódicas condições de controle e temperatura. Esta predominância do décor-laboratório – o único real personagem do filme, segundo a “bandeira” do último plano – é sintomática: o que Haneke almeja é implicar os espectadores num experimento de vampirismo in vitro, onde o grosseiro uso do contracampo é o fio-condutor de uma cartografia pavloviana,  segundo a equação estímulo-e-resposta mais elementar – na qual o passado feliz necessariamente implica “como resultado contábil” o futuro ignóbil (o futuro do pretérito?), a presença é erodida pelo décor, a matéria que se mostra é subsumida pela conclusão que se deduz. Vou enumerar alguns exemplos deste uso do contracampo como “implicador silogístico” do horror:

Depois do contracampo “programático” que nos apresenta o título do filme, temos aquele que seja talvez o corte mais feio dos últimos 30 anos. Anne, na cozinha, perturbada pela narração do marido de sua primeira ausência, pousa de forma desajeitada a xícara de chá sobre o pires, e Haneke nos mostra em seqüência planos da casa abandonada e às escuras. Deduz-se, desta implicação manifesta pelo contracampo, que esta primeira crise é a premissa do progressivo desaparecimento da mulher e do marido da cena, de sua abdução pelo décor fantasmagórico, até o domínio absoluto – no último plano, com Huppert sentada ao fundo – do cenário sobre a presença, da central laboratorial de Eduard Wirths sobre as cobaias de que se servia em Auschwitz.

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E ainda… Huppert , após ouvir o relato do pai sobre a desastrosa operação a que submeteram sua mãe, confessa: “Quando criança, adorava ouvi-los fazer amor na cama. Dava-me a impressão de que estava tudo bem, e de que ficaríamos para sempre juntos.” Corte “consequente” para a cama da doente sendo armada… “Comerás o teu pão com o suor de teu rosto, até que voltes à terra de que fostes tirado; porque és pó, e pó hás de te tornar” (Gênesis, 3, 19). O que se tem a demonstrar – e nos é demonstrado da forma mais academicista possível, isto é: o mais rigidamente possível, sem sombra de atmosfera, sfumato ou filigrana – é que deveremos pagar necessariamente o preço de vivermos uma “vida como esta”; em suma, de viver. Aqui se verifica uma acusação do devir, da finitude que é caracteristicamente fundamentalista e reacionária, pois vê sempre na História (na passagem do tempo, na Diferença) o estigma do Mal e da corrupção.

Outras pérolas “silogísticas”. Campo: Anne em plano frontal e médio, conversando com ex-aluno de piano, mão aleijada à altura do peito e de nosso ávido olhar; contracampo: o rapaz, com cara de uva passa, exclamando: “mas madame, o que aconteceu consigo?”.  Idem mais adiante, quando ela pede ao marido para desligar o disco. Ou quando de um dos últimos encontros entre pai e filha. Campo: impassibilidade de Trintignant, frontal e fatal, carrasco in potentia; contracampo: Huppert de costas para a janela, soluçando pela mãe. Lição? Cinquenta anos de alienação e incomunicabilidade martelados sem um único raccord significante… E a cereja do bolo?, quando Anne, após uma queda, folheia o álbum de retratos – e aqui já não se faz necessário o contracampo, pois já estamos bem amestrados… em voz off, ela comenta, babosa e esfíngica: “Ah, que bela é a vida…”

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Mas talvez a sequência de planos mais perversa desta linha de montagem dedutiva, através da qual Haneke intenta impor cotejos, conclusões, associações e implicações ao espectador – ou seja: matá-lo! – se situe próximo ao final de Amor, quando filma uma série de quadros – logo após um tapa do marido na mulher –; ou mesmo na sequência citada acima, quando corta para os aposentos semi-obscurecidos e desvitalizados de presença. Todo um cinema do fora de campo contemporâneo – Duras, Akerman, Straub, para ficarmos em exemplos suficientemente sacrílegos – se deixa emular, decalcar e escarnecer aqui, da forma mais retórica e superficial imagináveis; pois embora possua elipses, espaços vazios e desconectados e personagens à deriva – índices já consagrados de um campo infiltrado de devires e contextos que o estruturam sem se manifestarem enquanto tais –, o cinema de Haneke não pode ser considerado um cinema do fora de campo, sob pena de perdermos de vista quaisquer referências éticas e cognitivas do que significa o fora de campo no cinema.

Pensemos na ênfase no décor de uma Chantal Akerman no clássico Jeanne Dielman; em como o décor é investido pelo método e pela disciplina da personagem, em como se deixa lavrar e escavar secretamente pelo ominoso monstro que apenas ao final do filme vai dar as caras, vai invadir o campo: o recalque. O tempo dedicado por Akerman às atividades laborais da personagem – em verdade, sintomas de uma doença que estrutura toda a citadina paisagem doméstica do filme, mas só ao final saberemos que o horror espreitava sob o cristal, como cristal – permite aos espectadores o exercício pleno da imaginação e da Memória, experiências de natureza radicalmente temporal que vão permitir a reconstituição do filme em mim, o seu acabamento no espectador – com o auxílio do espectador. Pensemos em outro exemplo: o plano fixo de uma paisagem em Straub e Huillet. Eu sempre tive dificuldade em admitir que o cinema dos Straub era um cinema que filmava matérias, ou corpos, ou paisagens – um cinema ontologia bruto. Sempre preferi, para designar os “sítios” desta arte, o termo presenças – parousia, em grego. Pois no termo presença (de presente) se manifesta a dimensão vertiginosamente temporal de um corpo, uma paisagem, uma atmosfera. O ser-devir do que parece estático, fixo, objeto. O cinema dos Straub é um cinema do fora de campo porque nos apresenta monumentos de barbárie (ou de cultura, e a dialética aí é inevitável) como se fossem paisagens – só que estas aparentes pastorais são desmascaradas através de um cotejo agônico (do grego agos: luta) do campo com aquilo que o infiltra e desorienta: a voz off, o texto, o faux-raccord. Tratam-se em verdade de ruínas de povos destroçados ou espoliados da face da História, dos rastros de uma civilização.

É preciso saber ler, decodificar o visível de um plano – sua textura, os ruídos que o irisam ou esperam no plano ao lado, o que nele ressoa – para perceber que a paisagem natural é a máscara da ruína cultural, que a Natureza oculta sempre uma história, – que todo campo segrega necessariamente um fora de campo, às vezes imemorial, mítico; e que cada plano é também o túmulo de uma presença que um dia foi aqui (Serge Daney: “O conteúdo do plano, stricto senso, é então aquilo que  se oculta: os cadáveres sob a terra). Este aprofundamento horizontal, reservado a nós, da verticalidade temporal, histórica, onde se assenta toda a paisagem é um efeito do fora de campo – de um ativo, industrioso uso do fora de campo no cinema. Os Straub nunca filmaram naturezas-mortas, porque sob o fundo e por todas as esquinas do campo freme um mundo desaparecido, mas nem por isso menos presente (no texto, nos corpos dos atores, travestidos de outro tempo em décor contemporâneo); um mundo antigo e nobre, ainda possível, que adoraria foder a plácida superfície do plano e implodir as suas convenções – nossas convenções…

…E o que dizer do uso do fora de campo estabelecido pelo tète-à-tête com a voz off na Duras de Índia Song e Agatha e as Leituras Ilimitadas? Do grande caldo de cultura da infância, desterrada e incestuosa, que estas vozes ausentes permitem acessar? Deste vasto conglomerado de personas – mendigos, leprosos, irmãos extraviados e reencontrados no crepúsculo da masturbação – com as quais a menina deseja, no lusco-fusco de um último élan, se identificar? Todo um mundo em naufrágio, toda uma épica cadenciada por intermezzi líricos, que agora só lhe são presentes por intermédio do Cagliostro-cinema…O fora de campo aqui é uma grande máquina fantasmática de ecos e reverberações, projeções e presentificações; é este horizonte coalescente onde a indecidibilidade do fantasma – seu pertencimento a todos e a nenhum –, enfim se realiza, ao permanecer em suspenso: “Um pai seduz uma filha, e este seria o exemplo resumido de um fantasma da sedução. A marca característica do processo primário do inconsciente não é aqui a ausência de organização, como às vezes se afirma, mas a natureza particular desta estrutura de organização: ela constitui um roteiro com múltiplas possibilidades, no qual nada permite afirmar que o sujeito encontraria seu lugar necessariamente no termo ‘filha’; ele pode se fixar igualmente no termo ‘pai’ ou mesmo no verbo ‘seduz’” (Laplanche, “Origens do fantasma, fantasmas da origem”).

… Portanto, como se pode pensar que um cinema onde o cineasta controla olho a olho os caminhos do espectador possui fora de campo – que possa aspirar ao fora de campo? Se tudo já foi dado e descartado como elo de uma cadeia de produção silogística; se basta-nos seguir o percurso previamente traçado e re-encontrar o monstro ao fundo do armário – o Amor como a grande máscara da Morte, como assinalado no cotejo entre o corpo morto e o título –, o que resta deste horizonte poroso e maleável de significação, através do qual o filme se dilata e se refrata em mil trajetórias? Aqui, temos um uso miserabilista – cromo ou cacoete – de um recurso fundamental ao cinema contemporâneo, sobretudo modernista; sim, meu caro Louis: a tragédia sempre volta como farsa…

Há uma metafísica sinistra – o seu mísero fora de campo – que emporcalha e rasura antecipadamente todas as experiências que Haneke filma; ele nos dá tudo de antemão, como antemão. Interdição da epifania, do “amor à primeira vista”, da morte fulminante. A vida perde seu intempestivo e seu aurático, pois se torna mero apêndice – uma nota de rodapé – da laboriosa Summa Atheológica de um Demiurgo de papier maché.. Tudo já está dado e consumado: quod erat demonstrandum…

… E aqui aproveito para introduzir um julgamento de valor, razão de ser maior deste texto. Cinema para mim sempre foi uma arte particularmente apta à manifestação epifânica; arte do tempo, da luz e do movimento – ou seja: de condições fenomenológicas ideais para a orquestração de aparições e desaparições, destas transições várias e taumatúrgicas entre o Ser e o Nada de que está farta a vida: a inspiração para escrever este texto, uma loteria na segunda, o primeiro e o último amores, o gesto “que nos perde” na entrevista de emprego, o Chio me scordo di te mozartiano com cerveja na sexta… A razão maior (a única?, ao menos para este tempo) para desprezar este filme natimorto e este academicista crasso, portanto, reside numa questão valorativa – e para Nietzsche, a indagação necessária para a detecção do valor é breve e clara: Quem valora?; se um festival como Cannes o celebra; se tantos de nosso cinéfilos- por ingenuidade celerada, retardo congênito, oba-obice efemérica de facebook ou bovina boa-fé –, lhe soerguem um altar, mesmo que de pés de esterco… não seria a hora de reeditarmos, para fins pedagógicos e propósitos libertários, a grande questão do Valor, a brava e digna questão do exercício crítico? Que diabos de cinema queremos? Quem o quer? E com que fins? Este é meu único voto – meu caro, cálido e endiabrado voto…

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