Amor pelas torrentes e liames

Nascido em 1987, Eduardo Williams é um dos jovens diretores atuais cuja obra possui uma inegável consistência construída por meio de um constante risco. Esse seu primeiro passo em longa duração guarda muitas semelhanças com seus cinco curtas-metragens anteriores, que estabeleceram a justa fama do artista argentino em vários dos principais festivais do mundo. O Auge do Humano é mais um capítulo de sua exploração das múltiplas dimensões do que é ser jovem no mundo de hoje. Aqui, como nos filmes anteriores, o que se… CONTINUA

Aqueles que não querem se afetar

Durante uma hora, vinte e oito minutos e dezessete segundos, entre os dias vinte e quatro e vinte cinco de maio de 1975, a lua sangrenta se interpôs por completo entre o sol e a terra, lambuzando a Argentina de vermelho. Exatamente dez meses a partir do eclipse lunar total a Argentina sofreria um golpe, que retiraria Isabelita Perón do governo e uma junta militar, liderada por Jorge Rafael Videla, ascenderia ao poder e iniciaria uma ditadura no país. É no contexto desses dois eventos… CONTINUA

“As mulheres são como as águas, crescem quando juntas”

  “Os homens olham para as mulheres, as mulheres olham para elas mesmas sendo olhadas. Os homens sonham com as mulheres, as mulheres sonham com elas mesmas sendo sonhadas.” John Berger começa o segundo episódio, Women in Art, de sua série televisiva Ways of Seeing com essas palavras para dizer da forma com que se dão as imagens das mulheres (vale ressaltar que, principalmente, a imagem da mulher branca, pois essas imagens, além da questão de gênero, também sofrem por um recorte de raça e… CONTINUA

O rastilho indiscreto da ficção

Quando Historias Extraordinarias surgiu, em 2008, o filme de Mariano Llinás teve um impacto decisivo no cinema latino-americano de então. De repente, no interior da cinematografia independente argentina, a mais sólida da região, assentada há uma década e meia no realismo, na cotidianidade, na sobriedade da encenação – basta pensar no paradigmático pontapé inicial de Rapado (1991), de Martín Rejtman –, surgiam aquelas quatro horas de histórias paralelas cheias de bifurcações e desvios, aqueles mistérios insondáveis conduzidos por uma narração em voz over verborrágica e… CONTINUA

A espera, a predação e a escuta da História

Filmar a borda. Perfilar a margem. Curiosa, notável, a primeira sequência de Zama já sintetiza bastante da atmosfera que permeará toda a película de Lucrecia Martel. Vê-se o protagonista à beira de um larguíssimo rio. À espreita. À espera. Nada ocorre: ninguém chega, ninguém sai. Apenas Diego de Zama (Daniel Gímenez Cacho) lá permanece, imbuído da seriedade das suas vestimentas de um digno representante do rei de Espanha, meio abandonado, meio perdido nas regiões coloniais hoje próximas ao Paraguai. Realça-se um rio inóspito. Suas pedrinhas,… CONTINUA

Que gênero é o seu?

Todo ano essa cobertura acaba dedicando pelo menos um texto ao tema do “cinema de gênero de autor”, algo que todo festival atualmente busca contemplar, em algum espaço da sua grade (e onde cada filme é encaixado na programação geralmente deixa ver algo sobre como o festival vê o cinema de gênero, mas também cada filme individual). Trata-se de filmes que incorporam de maneira mais ou menos direta e frontal elementos do cinema de gênero (em muitos dos seus diferentes tipos), mas que buscam ter… CONTINUA

O mundo desde o fim

No trato com o romance de Antonio di Benedetto, há uma omissão significativa em Zama. Já na jornada final, quando o destacamento reunido para a caça do bandido Vicuña Porto se depara com o grupo de índios conhecido como “os cegos”, di Benedetto invoca uma anedota marcante. Depois que a tribo inteira tivera a visão extirpada pelos inimigos, os homens e mulheres encontraram uma insuspeita liberdade na mutilação: em terra de cego em que não há sequer um caolho, todas as convenções tradicionais são, de… CONTINUA

Câmera de espelhos

Pendular, terceiro longa dirigido por Júlia Murat, tem um ponto de partida simples: um casal de artistas, aparentando entre trinta e quarenta anos, brancos, sem nome, divide espaço num galpão no centro da cidade do Rio. O filme vai de uma situação de equilíbrio inicial entre os dois, quando uma linha é demarcada neste amplo espaço, até o momento da crise da relação, dividindo-se em quatro capítulos. Pendular cria um jogo de ressonâncias e espelhamentos da situação afetiva do casal por meio de seus demais… CONTINUA

Dizem que sou louco

Uma ideia razoavelmente comum desde que o cinema se consolidou em sua vertente de arte narrativa é que os conceitos e a prática psicanalítica não apenas seriam aplicados muito bem como ferramenta crítica de análise de obras como de fato seriam ferramentas importantes para a escritura e construção de personagens na ficção. É verdade que essa relação entre arte narrativa e psicanálise está bem longe de começar com o cinema – afinal não é nenhum acaso que alguns dos conceitos fundamentais para a mesma venham… CONTINUA

O específico está morto; longa vida ao específico

1. Moonlight é uma história em três partes sobre a vida de Chiron, um garoto que cresce em um bairro barra pesada sob o sol de Miami. O filme é baseado em uma peça não-montada com o belo título In Moonlight Black Boys Look Blue, escrita por Tarell Alvin McCraney, que, como o diretor Barry Jenkins, cresceu naquela região. No texto que apresentava a mostra de filmes curada pelo diretor para o Lincoln Center, em Nova York, Jenkins estabelecia um paralelo entre a estrutura de… CONTINUA