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Que gênero é o seu?

Todo ano essa cobertura acaba dedicando pelo menos um texto ao tema do “cinema de gênero de autor”, algo que todo festival atualmente busca contemplar, em algum espaço da sua grade (e onde cada filme é encaixado na programação geralmente deixa ver algo sobre como o festival vê o cinema de gênero, mas também cada filme individual). Trata-se de filmes que incorporam de maneira mais ou menos direta e frontal elementos do cinema de gênero (em muitos dos seus diferentes tipos), mas que buscam ter algo neles que os diferencie do cinema comercial strictu sensu – algo que possa indicar com alguma clareza um olhar pessoal, por assim dizer.

Para os brasileiros, um dos filmes a ter essa marca neste ano traz a inevitável curiosidade de ter a assinatura de um cineasta nascido no país: Joe Penna ganhou fama como uma das pioneiras “celebridades de YouTube” (o termo youtuber vem à tona um pouco depois mesmo), com sua persona/canal MysteryGuitarMan. Para quem só tivesse visto essa sua produção pode ter sido um susto quando seu nome surgiu na lista de selecionados de Cannes, mas para além do anedótico, relembrar esse começo “despretensioso” (para dizer o mínimo) parece relevante na medida em que esse seu primeiro longa, Arctic, tem como maior qualidade justamente a maneira como se dedica sem nenhuma auto-importância à tarefa de filmar o drama de seu personagem principal de forma incrivelmente frontal e dedicada.

Tratando-se de um chamado “filme de sobrevivência”, nada parece importar ao filme que não sejam questões que afetem diretamente a luta do seu protagonista contra a morte (dele, e posteriormente de uma segunda personagem que se une a ele). Não haverá personagens graciosos com cara de bola de vôlei, flashbacks que criem “contexto”, jogos de montagem ou imposições de uma “visão de cinema”: há apenas um personagem perdido no meio do Ártico e o desafio da sobrevivência. Nesse sentido, pode-se afirmar que Penna demonstra impressionantes maturidade e foco, o que é sim uma surpresa. Mas, claramente, também, ele percebe que pode contar com uma presença de tela com força ímpar na figura de Mads Mikkelsen, que realmente não precisa de mais palavras e interações para ganhar nossa empatia. Arctic avança firme, como o personagem pela neve, e não deixa nunca que seu final soe garantido, nem mesmo que as dificuldades enfrentadas sejam protocolares. É um filme em que cada plano ou desventura parece contar para que aumente a cada momento nosso entendimento de que, naquela situação, só uma coisa é realmente importante: ficar vivo mais um pouco. Não é nada óbvio que um diretor estreante nos coloque nesse sentimento com tanta simplicidade.

Como dizíamos no começo, essa frontalidade deixa entender que o filme tenha sido encaixado em Cannes como uma “sessão de meia noite”, que é onde este festival costuma colocar aqueles trabalhos que entende como “tipicamente de gênero”, ou seja: que têm qualidades para a seleção, mas que “não são filmes de arte, vejam bem”. É curioso ver como isso acaba sendo um indicativo de tudo aquilo que não funciona nos outros dois filmes exibidos que esboçam um diálogo direto com o cinema de gênero (nos dois casos, o filme de horror/criaturas/investigação), e que estavam ambos colocados na Un Certain Regard, que funciona como uma “segunda competição”, para cineastas mais iniciantes e/ou obras chamadas “menores” de autores já com alguma presença anterior nas competições principais.

Quando, por exemplo assistimos Gräns (Border), segundo longa de Ali Abbasi (cineasta iraniano de nascimento, mas que se formou e trabalha na Suécia e Dinamarca), sentimos a maneira como ele faz questão de se colocar muito claramente no lugar do que seria um “autor de gênero”. O problema é que são poucos os cineastas que, ao transitar nesse espaço de fronteira, acabam realizando filmes que resultam, em grande parte, conflituosos: tentam realizar os objetivos mais básicos do cinema de gênero (engajar, assustar, aterrorizar, divertir), mas também ganhar o “respeito autoral” de quem afirma o olhar de seu realizador. Ainda que inegavelmente Gräns dê passos adiante em relação ao filme anterior de Abbasi, Shelly (que havia passado em Berlim), não deixa de ser bastante incômoda a sensação de que o próprio filme se sabota o tempo todo, como se fosse um carro que tenta acelerar com o freio de mão puxado.

Assim como aquele primeiro filme, Gräns se dedica bastante ao jogo entre seus atores principais, e especialmente à sua protagonista, a qual existe sob o signo da “diferente”, da “estranha” – tema, de resto, bastante comum ao cinema de gênero. Vale notar que o uso do termo “genêro” ganha um duplo sentido em português que se aplica bem aqui, porque grande parte da estranheza da personagem advém de uma sexualidade bastante indefinida, cuja potência reprimida, e posterior explosão, levam aos momentos mais fortes do filme. O problema é que, ao redor dessa questão central, Abassi tenta urdir uma narrativa de suspense e investigação que nunca decola, além de desenhar uma série de personagens secundários bastante desinteressantes, que terminam por retirar demais o foco do casal principal e da força de suas interações, sem entregar nada de realmente valioso. É um filme, em suma, que nos faz perceber um cineasta com real interesse e paixão pelo cinema mais extremo, sem medo dos seus limites, mas que ainda não consegue encontrar o melhor registro para atingir todos os seus objetivos ao mesmo tempo. O que muitas vezes poderia ser bem mais simples do que parece, se ele simplesmente se dedicasse ao seu material e o que ele pede – deixando de lado esse desejo de exercitar com tanta obviedade a tal “arte do diretor”.

Ainda assim, é preciso dizer que Gräns mantém nosso interesse o tempo todo, mesmo que o frustre por vezes, o que é bem mais do que se pode dizer do argentino Muere, Monstruo, Muere! Também um segundo longa de seu realizador, o argentino Alejandro Fadel, o filme deixa claro desde sua primeira imagem uma filiação ao gênero do horror bastante frontal (o que o título já indicava, certamente). No entanto, à medida em que avança na sua duração, Muere… parece mais e mais uma paródia involuntária, com todos os vícios dos piores exemplos sub-lynchianos que vemos desde os anos 1990. Há uma aposta de que a simples construção de tipos bizarros, moods pela combinação de filmagem+ambiente+música e diálogos no limite entre a auto-ironia e a estranheza cool são alguma forma de DNA que, uma vez transplantado, funciona por si só (bom, é preciso notar que sua seleção em Cannes indica que talvez não seja sem razão que se imagine que “funciona”, ao menos no sentido pragmático).

Mas, o grande segredo do cinema de David Lynch diz respeito basicamente a pegar essas características que, por si mesma, são pouco mais do que uma marca, e conseguir combiná-las não só com a enorme capacidade de criar uma verdade interior para elas que fazem com que ressoem profundamente, como principalmente surpreender a cada passo de seus filmes ou séries com caminhos ainda não vistos e/ou esperados. Nada disso acontece em Muere…, que se torna rapidamente aquele tipo de filme em que terminamos torcendo para que a morte chegue logo para todos os seus personagens porque não estamos interessados de fato por nenhum deles. Além disso, a maneira como Fadel constrói cada plano como se fosse um bibelô precioso e cheio de cuidados é o tiro final que faz com que a experiência de assistir o filme seja praticamente insuportável. Ainda pior quando o final do filme o coloca no papel de um blábláblá psicossexual de terceira, cheio de pretensas alegorias e lições de moral (estamos todos doentes em nossa sexualidade, o monstro vive dentro de nós, etc e tal). Em tudo isso, percebemos o grande risco do cinema de gênero quando abraçado por um “autor” com um inflado senso de seu próprio (suposto) talento: um prato cheio para a deriva no cinema mais descaracterizado de qualquer alma.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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