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Cinema de a(u)tor

Existe o dito de que se o teatro é a arte do ator, o cinema é a arte do diretor. Mais que compreensível, dado que inegavelmente as performances do elenco sempre podem ser praticamente “reencenadas” através da montagem, que recontextualiza escolhas que a câmera já havia delimitado. No entanto, a definição também é incompleta na medida em que ao menos num certo universo de filmes, boa parte da sua força emana, ainda e sempre, dos corpos de seus atores, cujos personagens necessitam “encarnar” mais do que qualquer outra coisa.

Quanto ao cinema de Christophe Honoré, alguns de seus filmes iniciais acabaram chamando mais a atenção por uma certa maneira de se colocar formalmente, numa possível releitura pop de determinados dispositivos relacionados à nouvelle vague. No entanto, um olhar mais desprovido de pressupostos poderia notar como desde sempre sua arte foi profundamente dependente dos seus atores, antes de tudo, mas também da noção de dramaturgia. Isso se radicaliza nesse novo filme, Plaire, Aimer et Courir Vite. Passado em 1993, em pleno “genocídio” da AIDS, o filme é assombrado desde o começo pela presença desse vírus invisível, que no entanto deixa suas marcas nos corpos, e, principalmente, nos espíritos de todos, especialmente dentro de uma certa comunidade artística-intelectual gay.

Trata-se de tema profundamente pessoal para Honoré, cuja trajetória de Rennes a Paris no período se aproxima bastante com a de um dos protagonistas do filme, Arthur (Vincent Lacoste). O universo que ele vai visitar, através de sua relação com o escritor Jacques (Pierre Deladonchamps), é o universo que Honoré associava aos seus heróis de juventude, que em grande parte tiveram sua vida interrompida (não por acaso está lá a cena em que Arthur visita algumas lápides no cemitério do Père Lachaise). Talvez seja essa proximidade que faça com que Honoré se sinta capaz de filmar os dramas de seus personagens com tanta frontalidade, num filme que impressiona acima de tudo pela capacidade de nos fazer habitar quase fisicamente os espaços e relações que coloca na tela. Numa combinação precisa de cenas marcadas por muitos diálogos e outras em que busca-se filmar o silêncio de alguns momentos solitários como interlóquios entre as anteriores, Honoré consegue construir uma sensação rara de que, a partir de duas ou três cenas apenas, é como se sempre tivéssemos conhecido aquelas pessoas na tela (uma cena em especial, numa banheira, é o ápice disso). Os universos condensados pelos diálogos escapam para muito além deles, e a observação precisa a gestuais, toque e entonações permite com que estejamos mergulhados nas cenas junto com os personagens, e não apenas os observando de longe. Essa familiaridade (e a ideia de “família” é bem importante aqui) é decisiva para que o filme se diferencie de boa parte da produção que tratou desse momento da AIDS, permitindo partilhar um sentimento complexo de pertencimento e distância, euforia e melancolia profundos.

Esses sentimentos dúbios e muitas vezes conflitantes, como o de viver plenamente algo que parece ter duração curta, não é muito distinto do que evoca o filme russo Leto (Summer), cuja narrativa se passa alguns poucos anos antes do que a do filme de Honoré. Aqui, trata-se de uma outra comunidade artística e sua dinâmica interna bem específica: a do movimento rock nos anos 1980, na Rússia (especificamente em Leningrado). À sua maneira um tanto mais marginal que a comunidade gay afetada pela AIDS, esse universo também é conhecido do realizador Kirill Serebrennikov, preso ainda antes do final das filmagens, e colocado em prisão domiciliar por um pretenso mau uso de verbas públicas na montagem de uma peça. Serebrennikov, aliás, tem suas origens no teatro, o que ajuda a entender a maneira como centraliza boa parte das energias de seu filme nas interações entre os corpos de seus atores, encarregados de encarnar à sua maneira essa outra “energia invisível”: a de uma geração tomada por um desejo de expressão que vai terminar se tornando parte importante da derrocada de um regime (e certamente essa evocação, ainda que bastante lateral ao que importa no filme, não passou desapercebida das autoridades russas contemporâneas).

Curiosamente, no entanto, se Honoré se dedica de forma bem direta aos atores em seu novo filme, Serebrennikov vai fazer com que abundem na tela intervenções de linguagem, a começar pela filmagem em preto e branco, passando por cenas específicas em que literalmente a imagem escapa da tela através de intervenções gráficas, a encenação de números musicais de rock estrangeiro feita com figurantes na rua, ou o uso de um personagem que comenta a narrativa diretamente com os espectadores. Ainda que injetem energia ao filme, nos fazendo partilhar momentaneamente a euforia de seus protagonistas, essas cenas parecem também terminar nos distanciando um tanto do jogo dos atores, que têm poucos momentos dedicados especificamente à sua interação – estão muito mais como “tipos” (e não se deve ignorar que o fato de serem todos personagens reais certamente também ajuda esse sentimento algo icônico nas suas construções), o que termina impedindo a busca que o filme também faz, por um sentimento de intimidade do registro.

Há um outro dado que faz pensar que essas intervenções, ao mesmo tempo que querem dotar o filme de uma energia específica para além da que vem dos personagens, busca dialogar diretamente com um certo imaginário do rock ocidental de um momento imediatamente anterior ao que é retratado aqui – e que foi a influência principal daqueles jovens. Na verdade, é como diz um dos personagens em certo momento: “o que os americanos veriam de novo na nossa música?”, sabendo-se profundamente influenciado por tudo aquilo que chegava até seus ouvidos (Bob Dylan, Marc Bolan, Billy Joel, Iggy Pop e muitos outros são citados diretamente no filme), mas sabendo que o contrário não era verdade – o que eles faziam não circularia nem faria o mesmo sentido fora do seu contexto local. Embora extremamente coerente, o fato de desse sentimento emanar por vezes do filme acaba por enfraquecer a sua potência, resultando excessivamente derivativa de um certo “cinema ocidental sobre jovens astros do rock” do período que retrata.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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