cannes2018_02-header

A que risco?

Nesses primeiros dias de festival um tema (que deve voltar mais vezes ao longo do evento) tem ocupado nossa atenção: os riscos muito reais de se fazer cinema/arte num mundo onde tanto ainda parece frágil. Há, por exemplo, em competição no festival ao menos dois filmes cujos realizadores encontram-se em situação de prisão domiciliar (caso de Jafar Panahi e do russo Kirill Serebrennikov). As implicações de como criar e lidar com a censura (e a autocensura) são questões que parecem cada vez mais presentes – inclusive, e por que não, no Brasil.

No entanto o mais interessante, ao menos para fins dessa cobertura, é tentar ver a partir do que está na tela as maneiras como cineastas lidam com essa possibilidade de tentar fazer um cinema que afete e seja afetado por realidades bastante voláteis. Nesse sentido, ofilme queniano Rafiki foi o primeiro dos que têm uma “intervenção” desse tipo a ter chegado às telas do festival, na mostra Un Certain Regard. Dirigido por uma mulher, Wanuri Kahiu, o filme é o primeiro daquele país africano a ser selecionado em Cannes. Por trás dessa seleção podemos tentar ler vários motivos que vão da resposta que o festival tem sido cobrado a oferecer à extrema distância histórica entre a participação de mulheres e homens como diretores selecionados; à oferta de uma maior diversidade de origens que inclui o cinema africano e especificamente o cinema negro; e, finalmente, a maneira como esse mesmo filme se relaciona com aquilo que discutíamos no primeiro texto da cobertura, acerca da imagem a projetar de um cinema do “terceiro mundo”. Nesse sentido, me parece que Rafiki em especial atende a essa questão menos pelo que está na tela (como seria o caso nos dois filmes que discutimos ontem, vindos do Egito e da Colômbia), e mais pelas questões que estão ao seu redor: eminentemente o gesto de realizar um filme sobre o amor de duas jovens lésbicas num país onde a homossexualidade ainda é assunto de leis e criminalização – e, logo, o que tornou o filme automaticamente censurado no Quênia, e até muito próximo de sua exibição no Festival, a ameaça de que a diretora não seria permitida de viajar para apresentá-lo (o que acabou não se confirmando).

Nesse sentido, é importante perceber a maneira pelas quais as instituições do cinema europeu ocidental se colocam num “papel de intervenção” no sentido amplo, a começar pela própria existência do filme: nos seus créditos vemos as distintas fontes de financiamento oficial por fundos de Governo de países como França, Noruega e Holanda, assim como sua participação em laboratórios ou residências relacionadas ao Festival de Berlim e de Veneza (antes de sua estreia aqui em Cannes). Se não é nada exagerado dizer que o filme não se faria sem essas instituições, e depois de feito provavelmente não se tornaria conhecido no mundo, não se deve estar desatento para o quanto possa existir de vampirização dessas instituições face a causas cujos riscos, ao fim e ao cabo, são corridos de fato pelos realizadores e atrizes do filme, na sua Quênia natal. Claro que essa relação sempre é de mão dupla, e não se deve colocar os papeis de manipuladores e manipulados de maneira simples, até porque seria uma outra forma objetificação. Mas é justo perguntar de que forma o filme que chega na tela ao final desse processo atende ou “se rebela”, por assim dizer, aos critérios que podem ser impostos por essa relação bastante “impura” de julgamento (nos editais que liberam os recursos), tutoria (nos laboratórios) e validação (nas seleções de festivais).

Uma hipótese que Rafiki nos faz considerar como não tão bem resolvida vem do seu aspecto um tanto didático nos diálogos das suas duas protagonistas. Há uma necessidade de explicitar alguns dos dilemas e vivências quenianas, em especial algo no processo eleitoral que se mistura com o pessoal a partir dos personagens dos dois pais das meninas. Da mesma forma, sequências como a de abertura têm um pouco aquele sentimento de apresentação de um contexto local tanto no âmbito de paisagens humanas e geográficas quanto sociais ou culturais (no caso, pela música), que parecem bastante engessadas a um formato imposto (seja pelas questões de “apresentar”, “desenvolver” e “justificar” politicamente os investimentos recebidos, seja como uma autoimposição mesmo ao pensar o filme desde o princípio “de dentro para fora”). São momentos que certamente esvaziam um tanto o filme de uma verdade interna mais firme ao mesmo tempo que o colocam a serviço de um discurso que parece anteceder sua realização.

No entanto, é igualmente, e possivelmente mais interessante, olhar para tudo que parece escapar no filme. Primeiro, existe algo que se deve à simples escalação das duas atrizes principais, algo nada simples num país onde elas podem pagar um preço bem caro por encenarem um amor lésbico na tela. Esse contexto é importante por indicar da parte das atrizes a decisão de estar em tela que é mais forte do que apenas “passar num teste”. E ajuda a entender algo que emana do filme, uma emoção forte nas cenas entre elas, principalmente nas trocas de olhares e toques. Se atinge assim uma voltagem que, mais que erótica, é de engajamento entre dois seres mesmo, e que não há laboratório ou justificativa de roteiro que possa garantir que chegue na tela – só talento e força. O outro dado decisivo é uma “impureza” de linguagem entre o pop e o político, uma forma de ir às ruas mas, ao mesmo tempo, trabalhar de forma quase teatral com as poucas locações por não ter autorização de filmar essa história em especial. Isso dá ao filme uma aparência e energia ao mesmo tempo frágil e tocante, que chega ao ponto máximo na cena em que as duas são atingidas fisicamente pela repressão da sociedade ao seu redor. Há ali uma pungência muito firme, que se associa por um lado ao fato do filme não aceitar nem o caminho obrigatório da tragédia/denúncia (sendo bastante solar) nem a alienação por um fingimento de que poderia ser fácil para as personagens. Rafiki e sua realizadora, em suma, superam as armadilhas da maneira como se torna realidade.

O caso de Ten Years Thailand é bem distinto por não incluir, ao menos por enquanto, nenhum tipo de restrição de liberdade. De fato, este filme é o segundo no que promete ser uma série de filmes ao redor do mundo (ou ao menos da Ásia no momento), que nasce depois da ideia ter sido gerada com Ten Years Hong Kong. O conceito é, de fato, bastante interessante: se sugere a quatro ou cinco cineastas locais a proposta de pensar como seu país vai estar daqui a dez anos. A motivação original, em Hong Kong, já era claramente política: uma tentativa de pensar o futuro da antiga cidade-estado, sob administração/supervisão da China (não por acaso, o filme foi proibido no país). E ao chegar à Tailândia, país que vive sob um regime militar desde um golpe em 2014, claro que essa urgência em grande parte se multiplica. E aí é que o filme se aproxima em algum grau dos antes citados: ainda que não haja em vigor nada claro em termos de lei contra a criação cinematográfica, impera o temor e a sombra da censura – e, afinal, o gesto de realizar um olhar crítico para daqui a dez anos, sob um governo militar, é sempre um risco.

De novo, olhando para a tela, a coleção de quatro curtas (seriam cinco, mas um não ficou pronto a tempo da apresentação em Cannes) é bastante mais coerente do que costuma ser a marca desses “filmes-sessão de curtas”. Seja por um sentimento de mundo bastante similar que se impõe ou mesmo pela influência dos dois cineastas mais consagrados na lista (Apichatpong Weerasethakul, claro, e Aditya Assarat), os filmes dialogam sem se repetir de uma forma bem rica. Do naturalismo mais ficcional clássico de Assarat, que toca especificamente da questão da censura às artes (a “censura branda”, justamente, em que o artista sente que é melhor para ele não tocar em certos temas), passamos aos dois curtas de realizadores mais jovens que chamam mais a atenção para sua linguagem, buscando o caminho da alegoria (um pelo viés do sci-fi mais distópico, e outro pela carnavalização digital das imagens/realidade), desembocando de forma muito natural num singelo curta de Apichatpong que toma emprestado vários motivos e atores de seus longas, deixando claro como sua inserção no tempo “real” da filmagem, mesmo no registro quase documental, impõe o seu próprio lugar na cronologia, e pode ser visto como um “futuro projetado no presente”. No cinema de Joe, essas distância entre tempos sempre pareceram muito arbitrárias (o que é projeção, o que é lembrança, o que é “real”), e aqui não poderia ser diferente. Até por isso ele não parece sentir nenhuma necessidade de encenar um outro tempo ao propor um futuro: filme claramente no hoje, sabendo que aquilo que filma é mais forte do que quando o filma.

Assim, a citação de Orwell que abre o filme (“quem controla o passado, controla o futuro; mas quem controla o presente, controla o passado”) realmente volta à mente ao final dos quatro filmes: ao mesmo tempo que não se pode nem de perto dizer que olham para o futuro com olhos otimistas, são todos em algum grau apostas no poder da arte de confrontar. A que risco?


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


Leia também: