Breves encontros com Apichatpong Weerasethakul

dezembro 1, 2013 em Em Campo, Entrevistas, Victor Guimarães

apichatpong

por Victor Guimarães, com colaboração especial de Nuno Manna e fotos de Ricardo Mallaco

All characters appearing in this film are actual persons. All resemblance
with other beings, living or dead, is not coincidental”.

Inscrição presente nos créditos finais de Hotel Mekong

Onça é meu tio”.

João Guimarães Rosa, Meu tio o Iauaretê

Poucos realizadores são responsáveis pela invenção de um território cinematográfico tão singular quanto o de Apichatpong Weerasethakul. Desde Objeto Misterioso ao Meio-Dia (2000) até os curtas mais recentes, o cineasta parece extrair de cada plano uma sensibilidade muito própria – profundamente enigmática (em sua profusão de possibilidades de percepção) e, ao mesmo tempo, plenamente reconhecível. Partilhar da presença do realizador, contudo, é uma oportunidade única de viver intensamente esse mundo próprio de imagens e sons, mas também de explorar outros aspectos dessa trajetória, seja por meio de suas palavras breves, mas iluminadoras, seja no contato com trabalhos menos conhecidos.

Entre os dias 29 de Junho e 1º de Julho, Apichatpong esteve em Belo Horizonte para uma série de atividades em torno de seu cinema, promovidas pelo Inhotim Escola. As duas conferências realizadas pelo cineasta foram acompanhadas de uma mostra com alguns de seus longas mais prestigiados no Cine Humberto Mauro, da exibição de um programa de curtas curado por ele para a Bienal de Sharjah e da abertura de uma exposição que ficou em cartaz durante dois meses no Oi Futuro, que reunia sete curtas e o longa Hotel Mekong (2012) – e que agora vai para o Rio de Janeiro. Este texto é uma tentativa de reunir alguns vestígios desses encontros com o realizador, que contaram também com uma breve entrevista feita entre uma conferência e outra.

Na primeira das conferências – acompanhada da exibição de alguns trechos –, Joe fez um passeio por uma série de obras realizadas nos últimos anos: fotografias, curtas e médias em vídeo, alguns work-in-progress, projetos de instalação. Nos fragmentos dos “filmes que eu podia fazer sozinho” (nas palavras dele) como I’m Still Breathing (2009) ou nas imagens de instalações grandiosas como FAITH (2006), foi possível travar um primeiro contato com uma faceta desconhecida do trabalho de Apichatpong: se alguns motivos visuais se repetem – como a bola de fogo de Phantoms of Nabua (2009) que é retomada em I’m Still Breathing –, há também uma exploração de universos inesperados, como o diálogo com a ficção científica à Kubrick em FAITH ou a releitura de Crônica de um Verão (Jean Rouch e Edgar Morin, 1960) em Are You Happy? (2002), projeto em que o realizador soltava centenas de balões coloridos em diversas cidades do mundo, cada um contendo a pergunta “Você é feliz?” e um cartão-postal pré-pago, à espera de respostas aleatórias e anônimas sobre o que significava ser feliz no início do milênio.

Nesses trabalhos, tornam-se perceptíveis sensações bem diferentes: se nos longas o cinema de Apichatpong se afirma como uma experiência imersiva, em que a temporalidade distendida – e vivida intensamente pelo espectador – é fundamental, nessas outras obras aparece um gosto pelo fragmento, pelo trabalho com durações curtas, pela criação de espacialidades para além da sala de cinema e por um viés conceitual mais proeminente.

FAITH (2006), Apichatpong Weerasethakul

FAITH (2006), Apichatpong Weerasethakul

I’m Still Breathing (2009), Apichatpong Weerasethakul

I’m Still Breathing (2009), Apichatpong Weerasethakul

Sobre sua trajetória, Apichatpong falou sobre o encantamento com a tradição experimental do underground estadunidense, que conheceu quando estudava em Chicago. A ideia de fazer filmes de forma completamente independente (inclusive da necessidade de uma equipe) o inspirava, mas foi preciso voltar à infância para encontrar o que realmente lhe atraía no cinema: as histórias contadas pelos mais velhos, os musicais vistos em Bangkok, os mangás japoneses, a televisão e as radionovelas. Ao descobrir que “não era um bom escritor”, Joe enveredou por uma intensa catalogação de narrativas diversas, e esse trabalho a partir de fontes secundárias é o que anima seu cinema até hoje. É esse o ponto de partida do impressionante Casas Assombradas (2001), em que ele parte do roteiro de uma telenovela popular na Tailândia para promover reencenações entre os habitantes de aldeias próximas a sua cidade natal. Para além da exploração do impacto da teledramaturgia no meio rural (“as pessoas começaram a ter casas em estilo romano por conta da televisão”, ele conta), o que mais impressiona no filme (que tive a oportunidade de ver no Indie de 2010) é o poderoso deslocamento produzido pela intrusão do drama televisivo no cotidiano desses homens e mulheres: histórias de amor aristocráticas encarnadas nos corpos do povo, querelas burguesas encenadas em casas de madeira, as crianças que espreitam na borda do quadro e são convocadas pelo filme…

Casas Assombradas (2001), Apichatpong Weerasethakul

Casas Assombradas (2001), Apichatpong Weerasethakul

Ao narrar o processo de Pessoas Luminosas (2007), fragmento do longa-metragem em episódios O Estado do Mundo que apanha um grupo de pessoas em uma viagem de barco pelo mesmo rio de Hotel Mekong (2012), Apichatpong reflete sobre seu relacionamento duradouro com a equipe, que o acompanha já há bastante tempo. Ao falar sobre o relacionamento com companheiros de jornada como a atriz Jenjira Pongpas ou o montador Lee Chatametikool, ele formula uma bela frase sobre o processo de realização: “fazer um filme é gravar o nosso envelhecer juntos (recording our getting old together)”.

Pessoas Luminosas (2007), Apichatpong Weerasethakul

Pessoas Luminosas (2007), Apichatpong Weerasethakul

segunda conferência aconteceu no Cine Humberto Mauro, tradicional casa da experiência cinéfila em BH. Para esse segundo encontro, Apichatpong propôs uma espécie de jogo aos espectadores: enquanto víamos a projeção de Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), cada um dos presentes era convidado a interromper o filme a qualquer momento (bastando para isso levantar a luz do celular) para lançar uma pergunta ao realizador. Na escuridão compartilhada da sala, Joe respondia às questões com calma e generosidade, revelando não apenas detalhes sobre a filmagem, mas traços mais amplos de seu pensamento e de sua carreira. Seria impossível reconstituir em sua inteireza (e com exatidão) uma experiência que teve algo de caótico – as perguntas se multiplicavam e abordavam os mais diversos aspectos do cinema de Apichatpong –, mas conservar alguns vestígios daquele fim de tarde pode ser um caminho interessante para explorar algumas nuances dessa obra tão multifacetada e desafiadora.

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Provocado por uma pergunta do cineasta Gabriel Martins ainda no início da projeção, Joe falou um pouco sobre seu diálogo com os diretores de fotografia de seus filmes. Em Mal dos Trópicos (2004), as duas partes do filme ficaram a cargo de fotógrafos diferentes, pois disso dependia a criação de duas atmosferas visuais marcadamente distintas. Ainda nessa seara, o cineasta comentou sobre a influência do pensamento arquitetônico sobre seus trabalhos, seja a arquitetura desconstrutivista de Peter Eisenman, o cinema estrutural de Michael Snow, Hollis Frampton e outros ou a obra da artista francesa Dominique Gonzalez-Foerster.

Desert Park (2010), de Dominique Gonzalez-Foerster (Instituto Inhotim)

Desert Park (2010), de Dominique Gonzalez-Foerster (Instituto Inhotim)

Perguntado sobre uma possível experiência mística, o realizador mostra não ser um homem religioso, mas bastante interessado e influenciado pelo modo como os tailandeses vivem sua espiritualidade: “tudo tem um espírito quando se é criança na Tailândia. Cada espírito tem um nome; arco-íris diferentes têm nomes diferentes de espíritos”. Essa experiência deixa marcas (“é difícil se livrar disso quando crescemos”), e é por isso que “Tio Boonmee é filmado do ponto de vista de uma criança”.

A relação com os espíritos não está apenas no plano da história, mas no estilo, na própria matéria dos filmes. Enquanto assistíamos à sequência do jantar em Tio Boonmee, ele comentava justamente sobre o árduo processo de filmagem, que envolvia um complexo jogo de espelhos em frente à câmera 16mm. “Os efeitos especiais digitais certamente seriam mais baratos, mas eu queria fazer como nos velhos filmes. Há algo de químico que só a película é capaz de captar”.

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Apichatpong Weerasethakul

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Apichatpong Weerasethakul

A partir de uma questão lançada pelo crítico Marcelo Miranda – a respeito das possíveis semelhanças entre o interior da Tailândia e a Zona da Mata mineira, e seu fascínio pela floresta –, Apichatpong contou que não gosta de grandes cidades, e que filmar nas vilas e na mata é uma “desculpa para estar longe” (an excuse to be away). Assim como ir aos cinemas de sua infância em Bangkok era buscar um refúgio – o que expressava seu sentimento de não pertencimento à sociedade –, filmar com sua equipe nesses espaços é buscar uma outra magia do cinema: “o cinema é o que me permite estar conectado com as pessoas. Sem ele, eu não teria a chance de conhecê-las”.

E há também uma motivação política nessa deriva pelos espaços interiores da Tailândia. Foi lá que os camponeses foram forçados a se juntar aos militantes comunistas e obrigados a viver na selva entre as décadas de 1960 e 1980 – o que, segundo ele, está presente no personagem do macaco-fantasma de Tio Boonmee, que expressa essa forte sensação de não pertencimento. É situação parecida com a que vivem, contemporaneamente, os imigrantes na região do rio Mekong: “a Tailândia é um país muito nacionalista, e muito preconceituoso com as pessoas que vêm do Laos e da Birmânia”.

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Apichatpong Weerasethakul

Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Apichatpong Weerasethakul

Respondendo a uma pergunta do pesquisador Fábio Feldman – em torno da simultaneidade entre diferentes mundos e planos de realidade em seus filmes, o que os diferencia de uma tradição ocidental calcada na sucessão –, Joe comentou brevemente sobre a importância da convivência de realidades alternativas, da reencarnação e da “flutuação da consciência” (drifting of conscience) que perpassa várias de suas obras. Repleto de fantasmas, espíritos, animais-humanos, o cinema de Apichatpong é povoado por seres em constante transmutação, sem resolução possível (“o tio Boonmee poderia ser qualquer personagem ou animal”, ele afirma).

Nesse constante devir-animal-fantasma-humano-espírito, é impossível – para um mineiro, ao menos – não reconhecer as afinidades subterrâneas – improváveis, mas patentes – entre o cinema desse enigmático tailandês e a potente variação identitária que atravessa uma das maiores obras da literatura do século XX: seja em Mal dos Trópicos, seja em “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, o que está em jogo é uma vertiginosa freqüência de mutação, que ultrapassa o plano da intriga e atinge em cheio a forma (literária ou cinematográfica). Quando cabem tantas possibilidades de existência em um só ser (no matuto-onça rosiano ou nesse Tio Boonmee inesgotável), é a arte que se multiplica e nunca cessa de se transformar em outra coisa, que não saberemos o que é. Em outro conto de Rosa (“A terceira margem do rio”), encontramos uma imagem possível para esse mundo cinematográfico que é como “essa água que não pára, de longas beiras”: “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.

Hotel Mekong (2012), Apichatpong Weerasethakul

Hotel Mekong (2012), Apichatpong Weerasethakul

Apesar da imensidão de seu cinema, Apichatpong é um sujeito tímido e sucinto, embora extremamente solícito e gentil. Diante do desejo de saber mais sobre seu trabalho, ele quase sempre responde com meia-dúzia de palavras, frequentemente enigmáticas, às vezes de uma simplicidade luminosa. Como em seus filmes, a sofisticação de seu discurso é patente, mas o instinto é que parece capitanear tudo. Na pequena entrevista que tivemos a chance de realizar com ele, essas e outras características saltam aos olhos.

Cinética – Seu trabalho é marcado por uma lida constante com outros mundos ficcionais, além do cinema: histórias tradicionais, quadrinhos, teledramaturgia, e por aí vai. Como você conjuga esses mundos tão diferentes e seu próprio desejo de ficção?

Para mim, todos esses elementos são cinema. Eu sinto que meu trabalho é mais o de catalogar, organizar todas essas coisas. Os quadrinhos, o rádio são parte de uma narrativa, e também são parte da vida. Isso é interessante para mim. Ficção ou não, eu realmente não me importo. Quando eu estou fazendo um filme, meu trabalho é o de fazer uma exploração: capturar, catalogar essas narrativas e, ao longo do caminho, enquanto vou mais longe e mais longe, um outro tipo de memória começa a aparecer – a memória de fazer o filme. Fazer filmes se tornou algo propulsor, uma maneira de gerar um outro tipo de memória. Então o filme é uma manifestação desses dois mundos: o mundo real e o mundo do filme. E há muitas camadas que se relacionam o tempo todo.

Em vários dos filmes – especialmente em Objeto Misterioso Ao Meio-Dia (2000) –, é possível observar uma convivência entre uma vertente mais observacional e um gosto pela construção do drama, pela mise em scène. Como você lida com esses dois gestos?

Para mim, eles são a mesma coisa. Fato e ficção, observação e drama são como diferentes notas musicais. Eu tento não diferenciar. É claro que eu estou consciente da natureza kitsch, ou da natureza trash do que estou filmando, mas eu olho para elas como algo a ser catalogado, saboreado, lembrado.

Em Síndromes e um Século (2006), há essa convivência entre os longos planos das conversas entre o médico e os pacientes, e outras sequências de um interesse maior por construir uma intriga…

Eu era muito rígido em 2001, quando fiz Eternamente Sua. Eu tinha muitas regras nesse filme: sem câmera subjetiva, tinha que ser bastante observacional, etc. Cada coisa só podia acontecer uma vez. Era como um jogo: cada enquadramento, cada movimento de câmera só podia ser usado uma vez. Mas isso foi se tornando muito restritivo. Agora, cada vez mais, um plano pode durar cinco minutos, e outro pode durar dez segundos. Eu trato não apenas a forma, mas o conteúdo dessa maneira. É mais aleatório, mais orgânico.

Em seus filmes, sempre parece haver um devir entre dois pólos: um ser humano que se torna animal, um dentista que se torna cantor, um documentário que se torna ficção. Mas talvez esse devir, esse tornar-se é que seja a grande questão. Como você pensa isso?

Você está certo (risos). É sempre uma transformação, uma passagem entre mundos: humano-animal, fantasma-humano. Eu nunca pensei… realmente. Porque em alguns filmes o padrão é muito forte. Em Síndromes e um Século (2006), o padrão circular… eu realmente não estava consciente. Meu montador dizia: você pensou nisso, era sua intenção, claro, porque é tudo circular. Mas para mim, talvez seja tudo muito instintivo. Eu nunca pensei nessa coisa transicional.

O espectador nunca sabe o que é que esse primeiro pólo está se tornando, nem o que vai ver na próxima sequência. É um sentimento que tenho em todos os seus filmes.

Talvez isso tenha a ver com a minha personalidade. Porque eu mudo muito. Eu me mudo, então eu fico em algum lugar, depois eu me mudo novamente. Minha atenção está sempre mudando, oscilando. Às vezes eu leio três livros ao mesmo tempo.

Nuno Manna* – Há uma tradição de estudos em literatura, em cinema, que pensa o sobrenatural, o inexplicável, por meio da lente do fantástico. Mas cada vez mais os críticos têm olhado para livros e filmes orientais e têm pensado que essa é uma categoria muito ocidental, sobretudo se pensamos em cosmologias e culturas orientais. Você é consciente disso, de alguma maneira?

Eu sou consciente dessa interpretação. Mas minhas fontes de inspiração são sempre a vida diária, que já possuem esses elementos. Alguma ação, alguma atitude do personagem está lá, mas ao invés de estudar isso por meio de um conceito de uma cosmologia… eu não faço isso. Eu sequer analiso se isso é parte da cosmologia, ou não.

Cinética – Mas você acredita que há uma diferença entre os animais (ou os fantasmas) nos seus filmes e esses mesmos elementos em filmes ocidentais?

Claro, claro. Mas se você for à Tailândia, vai perceber essas diferenças. Nas notícias populares, você tem uma história real sobre um pé de banana que se parece com a forma de duas cabeças. E aí todas as pessoas vão até lá, para rezar, ou para raspar o pé de banana para ver se há algum número na superfície, para depois jogar na loteria clandestina. Isso são notícias nacionais, é isso o tempo o todo. Esse é só um exemplo, mas a crença em algo que não é lógico, ou cientificamente explicável, acontece o tempo todo. É parte da vida cotidiana. Você não questiona, faz parte da rotina.

Sua trajetória parece oscilar entre dois modos de produção: um mais “caseiro”, como em Casas Assombradas (2001) ou Hotel Mekong (2012), e outro mais “robusto”, como em Mal dos Trópicos (2004) ou Tio Boonmee… (2010). Há uma diferença em relação a como você pensa o cinema ou a como você se aproxima do mundo, nesses diferentes modos de produção?

São modos diferentes, quando você tem uma grande equipe, ou quando filma sozinho, com pouco equipamento. Nesses filmes pequenos, a coisa se torna extremamente pessoal, de uma outra maneira. Mas é como se você tivesse uma grande tela de pintura, e você constrói algo, que pode ser um rascunho, ou um plano, ou alguma outra coisa que está em outra forma, mas está tudo no mesmo papel.

*Nuno Manna é jornalista e doutorando em Comunicação pela UFMG, e pesquisa o fantástico na literatura e no cinema. 

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