Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro (Brasil, 2014)

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Juliano Gomes

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Apuros
por Juliano Gomes

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é um filme superficial. Há, claramente, um esforço de construir-se em torno de uma faixa de não-profundidade em relação a tudo o que suscita: a homossexualidade na adolescência, o conflito geracional, a experiência social de ser cego, a classe média-alta paulistana… nada disso importa como zona de exame aprofundado. Nessa esfera mais exterior das coisas, estão a pele, os tecidos, as motivações, a água, o creme de barbear, e tudo mais que motiva a trama. Léo (Ghilherme Lobo) é cego, Giovana (Tess Amorim), sua melhor amiga, é a fim dele. Quem completa o triângulo central é Gabriel (Fábio Audi), o aluno novo que chega e conquista o coração de ambos, mas que fica a fim de Léo. A estratégia aqui é da ordem da clareza absoluta, como água de piscina, e é no nível da superfície que o filme atua: pais que parecem pais, jovens que parecem jovens, escola que parece escola, sentimentos que parecem sentimentos, além do estabelecimento de uma centralidade dramática das relações táteis (o protagonista cego é obviamente o principal agente, mas não o único). Desde o início, nos é dado a saber tudo o que os personagens pensam sobre os outros e tudo que o filme quer deles. A câmera zenital da primeira cena indica essa tendência onisciente, que é a premissa básica do filme: não há nada a esconder. Todo seu desenvolvimento e produção de conflito giram em torno dessa dinâmica dentro e fora do filme. Fórmula clássica, conduzida com eficácia: manter o saber do espectador maior do que o dos personagens e explorar o manejo desse desnível.

Além do trio, há os pais de Léo, que superprotegem o filho, enquanto ele demanda deles um tratamento “normal”. “Por que tem que ser diferente?”, ele pergunta, questionando o excesso de zelo em relação a sua cegueira. Os pais exercem a função de contraponto à liberdade que Léo quer: não dar satisfação, chegar tarde em casa, sair à noite. Léo quer independência, quer quebrar com essa relação de clareza absoluta entre o que ele faz e o que seus pais sabem. Ter autonomia é poder cultivar escuridões, áreas de alteridade para si e para os outros. Léo não quer mais depender (quer “voltar sozinho”).

Entretanto, a forma dominante no filme é justamente a da dependência. Daniel Ribeiro engenhosamente cria um emaranhado absolutamente organizado de causas e efeitos que não deixam independer um cena sequer. O revés disso acontece em sequências que parecem se reduzir às suas próprias intenções, como em todo o trecho inicial, na piscina e na escola, e na cena com a chegada de um outro aluno ao final, como “compensação” para Giovana. O dilema da clareza é tornar-se unicamente enunciado, objetivo, e não precisar existir como matéria sensível, como imagem. Aqui, trata-se do embate entre a força intensiva dos objetivos – de cena, mas também de projeto, como um todo (o filme parece muito consciente de seu espaço a ocupar, como uma intervenção progressista numa camada do “gosto médio”), com um força mais intensiva – dos corpos, dos gestos, das canções –, mas difícil de medir, calcular e objetivar. É inegável, aqui, a habilidade em conduzir os elementos do filme numa direção específica. Distante de um problema típico de primeiros longas, nos quais é comum se querer abarcar uma enormidade de desejos num filme só, em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é absolutamente cristalino o quê se quer e aonde se quer chegar. O centro é o rito de passagem adolescente do primeiro amor, dessa descoberta de si, e toda a decupagem, diálogos e elipses agem no sentido de dirigir sua atenção quase que exclusivamente ao que gira em torno disso.

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O desejo de clareza, afinal, é também um desejo de adequação. Não por acaso, Léo quer ficar bem com os pais, com os amigos e com tudo à sua volta. Diferente da adolescência em John Hughes (os adultos existem, mas não importam) ou em Gus Van Sant (como experiência de alheamento sensorial e opacidade de sentidos prévios), aqui o que se deseja é estender essa relação harmoniosa, direta e límpida, entre todos. A estratégia de sedução do filme é justamente essa forma quase fabular que culmina numa moral da felicidade geral pela conciliação, pela qual todos podem ser contemplados em seus desejos, que já estavam claros para nós espectadores. A transparência de propósitos e precisão das ênfases faz com que tudo o que vemos seja levado, em conta e significado, a este estado de realização final das expectativas. Ao contrário da desdramatização pelas referências que o filme traz (a música de abertura de Gerry,de Gus Van Sant, e toda evocação da experiência adolescente na inescapável filmografia de Hughes), a opção por uma super dramatização dos conflitos e motivações faz alternar agilidade e redundância.

Entretanto, essa linha, tão preponderante, mantém sua força em grande parte do filme, pela habilidade de constantemente trazer dados novos a ela. A cena da festa é absolutamente exemplar desse encadeamento: uma vez estabelecidos os conflitos e os desejos, os personagens irão cumprir seus papéis, mas a simples operação de uma montagem paralela, entre a conversa de Giovana com Gabriel e a brincadeira do beijo da qual Léo participa, retroalimenta os dois conflitos do triângulo que são afinal um só, adicionando uma camada pela aproximação e mesmo pela redundância. Uma vez marcada essa que talvez seja a primeira zona de razoável opacidade de sentidos, ao final da cena (Léo não sabe que beijara um cachorro; Gabriel beija, Léo mas não sustenta o próprio ato na hora; Giovana é rejeitada pelos dois meninos) o filme consegue criar uma zona de sentidos que escapem de si mesmos e dessa vontade de conciliar tudo à sua volta, abrindo-se ao descontrole das expectativas.

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A festa abre uma zona de indefinição que permite intensificar uma chave de exploração dos corpos que ainda era tímida até então. A segunda metade do filme parece crescer em experiência quando liberada da obrigação de explicar e explicitar suas ramificações. A forma do acanhamento é justamente essa que se mantém na zona média, alimentando-se de implosões até precisar emergir, mesmo que tardiamente. É possível estender essa forma ao cancioneiro evocado: “Start a War” (The National), “Vaga-Lumes Cegos” (Cícero), “There’s Too Much Love” (Belle & Sebastian), por exemplo, mais do que cumprirem tabela do briefing indie-fofo-melancólico, são obras que têm essa desenho, mantendo uma contenção que se estende até estourar, ou quase estourar. As canções encenam esse represamento, que existe e, quando atinge a superfície, termina fazendo-o fora de hora, sem jeito, inadequado, já nos minutos finas, e não no auge, no refrão. Assim como a estrutura do filme, elas possuem essa forma da perturbação, possível aqui nos esquemas causais… possuem esse manejo do tempo através da manipulação dos saberes.

Os pais querem guardar Léo para si como menino, Léo quer guardar seu desejo, Giovana também, Gabriel também. A reversão do nome ao final, com a inserção do “não”, é uma afirmação desse desejo geral que é justamente o de depender – de o que se quer, de quem se deseja. A questão não é encenar uma liberdade que permanece em aberto, mas sim criar essas ligações, adequadas ao desejo de cada um, colocado e atendido. A emergência de uma vontade mais deliberada na imagem – nas duas cenas de banho; na masturbação com o casaco; no beijo final, por exemplo – é um instrumento de realização do que se desejou antes. E é notável a solidez de construção desses desejos através da fotografia, saindo muito pontualmente de um registro de discrição, e da já citada inserção de canções.

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A eficiência aqui atingida (estabelecendo, de fato, um novo patamar narrativo na representação da adolescência no Brasil hoje) é motor e âncora, pois a precisão dos ritmos e manutenção do foco narrativo não parecem ser plenamente suficientes para deixar em segundo plano as armações que condicionam as imagens. A cena dos créditos finais, apesar de seu espelhamento com uma anterior (na qual, ao contrário, Gabriel dá carona a Léo em sua bicicleta), parece representar o máximo potencial digressivo, de afrouxamento das ligações narrativas, em que uma cena mais mostra alguma coisa do que “funciona”. Ao abrir-se para uma possibilidade de alteração de registro (“o cego andou mesmo de bicicleta?”), se apresenta esse desejo, mesmo que ainda tímido, de fugir de si, de diferir para além dos próprios objetivos, de poder não se reconciliar com o que “querem” (os pais, o filme, o público-alvo, o status quo) – curiosamente, as meninas do filme parecem ter um amplitude moral maior para se movimentar. Ao fim, chega-se a um retrato ao mesmo tempo justo e resignado, no qual a experiência de ser jovem é aquela que quer buscar no mundo que existe uma brecha onde se possa atuar, em vez de criar outro em seu lugar, recusando a recusa. É esse o realismo que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho tão habilmente urde.

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