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O específico está morto; longa vida ao específico

1.

Moonlight é uma história em três partes sobre a vida de Chiron, um garoto que cresce em um bairro barra pesada sob o sol de Miami. O filme é baseado em uma peça não-montada com o belo título In Moonlight Black Boys Look Blue, escrita por Tarell Alvin McCraney, que, como o diretor Barry Jenkins, cresceu naquela região. No texto que apresentava a mostra de filmes curada pelo diretor para o Lincoln Center, em Nova York, Jenkins estabelecia um paralelo entre a estrutura de seu filme e a de Three Times (2005), longa de Hou Hsiao-hsien que mostrava três histórias de casais em diferentes eras, usando abordagens estilísticas distintas (inclusive a do cinema silencioso) para dar conta das mudanças políticas e sociais na China.

Apesar da estrutura tríptica, Moonlight não chega imbuído de ambições estruturais semelhantes, que em Three Times encontravam força de expressão igualmente potente em suas três partes e nos intervalos entre elas, tornando a comparação mais uma demonstração de wishful thinking do que uma aspiração – e muito do filme e do fenômeno de recepção que o cerca se explica justamente na confusão entre esses dois desejos. Aqui, o fatiamento episódico está de fato mais próximo das muitíssimo influentes proposições de Jean-Jacques Rousseau para a educação infantil em Emílio, ou Da Educação (1762), que divide os anos de formação de um homem em três grandes blocos, que o filme separa com intertítulos. 

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i. Little

A primeira parte retrata Chiron em determinado momento de sua infância (interpretado por Alex Hibbert), que coincide com a primeira transição apontada por Rousseau, por volta dos doze anos de idade. A segunda se fecha em parte da adolescência (Ashton Sanders), novamente batendo com a virada em Emílio, aos dezesseis, encerrando inclusive com a prescrição rousseauniana de um despertar sexual, que aqui desemboca em violência. E o terceiro mostra sua vida adulta (Trevante Rhodes), período menos claramente demarcado que Rousseau estende até o casamento, cruzando enfim o limite em que o indivíduo se vê suficientemente formado para construir sua própria família, e que encontra paralelo metafórico na cena no restaurante ao final do filme, que carrega inclusive o compromisso de castidade (“Eu não toquei ninguém desde então”, diz o protagonista, em união sacramentada com um afago).

iii. Black
iii. Black

O diretor sublinha o aspecto formativo dessa divisão dando nomes diferentes ao personagem em cada uma delas, que também ilustram as cartelas que as separam: Little na primeira; Black na terceira; apenas Chiron na do meio, novamente aderindo à idealização de Rousseau da “posição intermediária entre a indolência de nosso estado primitivo e a atividade petulante de nosso egocentrismo” (extremos aqui indicados por uma autoconsciência física que parte da aparência: Little – pequeno – e Black – negro – apelido que lhe é conferido pelo primeiro amante, próximo ao fim da segunda parte, e que o marcará na terceira) – e usando um recurso clássico de romances de formação, presente em, por exemplo, Procurando Nemo (2003). Em Moonlight, a parte do meio é a experiência autêntica formativa que carrega as duas outras, seja como trauma ou responsabilidade: é a idade das escolhas.

Abertamente um estudo de personagem, o filme declara total fidelidade a seu herói desde o fim de seu breve prólogo, e conta que o espectador fará o mesmo. Não obstante, as causas reais para essa identificação vêm por meios que não são de fato debitáveis ao personagem, mas sim a um projeto prévio: Chiron é um personagem exemplar porque o filme assim o quer. Desde sua primeiríssima aparição – um borrão que corta o quadro em disparada, fugindo dos bullies do bairro, que aos poucos se acomodará na posição de presa com olhar servil – Chiron encarna com perfeição o conceito de “protagonista vazio”, arquétipo de interioridade de olhos grandes que talvez tenha originalmente aparecido como um desafio à própria idéia de protagonismo (“proto” = primeiro, principal, mais importante; “agon” = desafio, luta, disputa), mas que se tornou especialmente comum na produção contemporânea que circula pelos festivais de cinema (além de cineasta, Jenkins é também um dos curadores do Festival de Telluride). Projetado contra a paisagem da filosofia de Rousseau, este vazio se aproxima do mais conhecido mito rousseauniano do “bom selvagem” (não à toa, são personagens que têm o destino atravessado pela justiça e pela lei) e da impressão de que o garoto é autocriado: sem parâmetros claramente estabelecidos por figuras de referência tradicionais, o herói em formação define seus traços na luta cotidiana com seu próprio ambiente. Muito como Emílio, Moonlight está interessado em decodificar uma forma pela qual este “bom selvagem”, este “homem natural”, pode sobreviver em uma sociedade degenerada e corrupta, confiando aqui em outra forma de educação: a pedagogia das ruas, com as contradições de seus desejos, seus impulsos e sua própria violência.

Nesta jornada da infância à vida adulta, as transformações deste “homem natural”, sujeito além do bem e do mal aprisionado pela própria passividade (mesmo que ela seja provocada de fora para dentro), são em geral ditadas pelo mundo ao seu redor: o vício em drogas da mãe (Naomie Harris) colabora com seu vaguear cotidiano, ilustrado desde o princípio na seringa em contraluz encontrada em seu esconderijo; a aparente ausência de um pai o leva a começar uma relação com Juan (Mahershala Ali), traficante de bom coração emigrado de Cuba, e sua companheira Teresa (Janelle Monáe); os abusos corriqueiros na escola e no bairro nublam sua autodescoberta como homossexual. Daí, nasce seu conflito, que ganha um peso metalinguístico depois do sucesso do filme na última cerimônia do Oscar: um personagem que precisa lutar contra toda sorte de adversidade para poder simplesmente exercitar o direito de ser o que já acredita ser – uma espécie de Emílio circular, em trajetória para frente que tem no horizonte a conquista de voltar para a primeira casa.

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Ao fim, recomeço

Para compor esse cenário, o filme faz leves, mas significativos ajustes que trazem a estrutura emiliana aos dias de hoje: a primeira relação sexual é com outro homem – possibilidade distante ao modelo heteronormativo de Rousseau; a presença do tráfico de drogas sugere um deslocamento do ponto de referência moral, estabelecendo uma contradição à Rashomon (1950) que não diminui a nobreza de caráter das personagens – grande desvio da virtude nos tempos de Rousseau (sob o sol de Miami, cada um vende a própria cicuta); a impressão de um microcosmo político se fecha em um mundo habitado quase exclusivamente por personagens negros, em movimento que se assemelha a 35 Doses de Rum (2008), de Claire Denis (ou, em matéria de gênero, a Um Estranho no Lago, de Alain Guiraudie). Nada disso é exatamente novidade na história do cinema, mas o caráter programático do conjunto confere a Moonlight um polimento de relevância, propondo uma condensação de pautas num contexto em que a diversidade e a injustiça foram enfim, e muito tardiamente, trazidas para o centro das atenções – e, em consequência, do tapete vermelho e dos planos de marketing das grandes corporações (a Academia sendo uma delas).

A atenção ao vazio de Chiron transforma este romance de formação em um testemunho de determinismo: o protagonista realmente ativo aqui não é ele, mas sim o seu entorno. Seu futuro é produto direto de seu passado e do mundo à sua volta, e, ao protagonista órfão de ação, resta pouco além de cortar nas linhas pontilhadas – (o)pressão colonialista que se esconde sob a capa de contemporaneidade no desfile de marcas do cinema contemporâneo (Dardenne, por exemplo), e que é tanto social quanto narrativa. “Achais que um menino que alcançou assim seus quinze anos tenha perdido os precedentes?”, diz a linha derradeira do terceiro livro de Emílio, fechando um capítulo de clareza titular: “Resultado”. “Você não mudou nada”, diz Kevin (André Holland), aliviado, ao reencontrar, na terceira parte, o amigo e amante da segunda, de coração puro imaculado a despeito de todas as adversidades. No aparente anti-drama de um (anti)protagonista que não muda, Moonlight encontra a coerência de um arco dramático.

ii. Chiron
ii. Chiron

Afinal, desde o princípio, tudo que cerca Chiron é mais forte do que ele. Essa passividade ganha, aqui também, o tempero do tripé estabelecido por Rousseau na constituição do homem natural: o instinto (de sobrevivência); a amoralidade (a relação com Juan); e o apetite, literalmente representado nas diners que ocupam espaços dramáticos privilegiados dentro do filme. Embora essa passividade possa ser traço distintivo se pensarmos o cinema negro americano como um gênero (ponto de partida tão problemático quanto a idéia de “world cinema”), ela é também lugar comum estético na comunidade cinematográfica que alimenta suas escolhas e à qual o filme originalmente se endereçava (um sucesso de prêmios, mais do que um sucesso de público) – de Paranoid Park (2007) a Alba (2016), passando por Stop the Pounding Heart (2013), O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e parodiado com precisão no falso trailer Bottlecap (2013), vinheta auto-irônica de uma edição do Spirit Awards (o “Oscar independente”, que este ano premiou Moonlight). Narrativamente falando, o espaço e as condições são os verdadeiros agentes ativos aqui: trata-se de um filme de contexto, o que, teoricamente, não parece o pior dos negócios.

A razão para o bom pressuposto é que os elementos que cercam e se pronunciam sobre Chiron são matéria-bruta de extraordinária especificidade, e o começo cheio de energia do primeiro plano em steadycam abre o filme co-assinando essa promessa. Enquanto a câmera segue Juan, que sai de um carro, o espectador é arremessado in media res em uma tapeçaria de cores e sabores de fala que salta da tela, criando de imediato uma impressão marcante de lugar, temperatura e cheiro (sente-se no ar que o mar não está longe). Embora discussões sobre autenticidade estejam fadadas a acabar antes mesmo de começar, e os caminhos da (auto)exotização sejam rua sem saída, impressiona uma potência cinematográfica material nesta especificidade que ilumina o não-visto – e o cinema, arte material, se nutre dessas possibilidades. Aquela vizinhança é um lugar que gostaríamos de habitar, de testemunhar, o que por si só já a torna um lugar perfeito para se fazer um filme. São evocações imediatas que não sobram no varejo, e que Moonlight evoca em pouquíssimos segundos.

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A despeito do volume, a promessa dura muito pouco: quando a câmera começa a girar ao redor dos homens que se entregam à conversa, por razão ou efeito de difícil rastreio, a energia daquele primeiro golpe – que ecoa a especificidade navalhar do primeiro Spike Lee, de Nothing but a Man (1964), da Little Italy de Caminhos Perigosos (1973) – rapidamente se dissolve em um malabarismo técnico sem rumo à Cidade de Deus (2002) que cobre a rua ensolarada com nuvens pesadas, de sugar todas as cores. O filme troca um regime de visibilidades (o que mostra e o que não mostra – aquilo que se convencionou chamar de mise-en-scène) por uma demonstração de possibilidade: o plano de abertura halterofilista – rede de segurança para um circuito de festivais e espetadores sobrecarregado que gera o compreensível desespero em cineastas que precisam gritar motivos para que sigam vendo seu filme – é a primeira de outras caixinhas que Moonlight voluntariamente marcará, e que compõem um único padrão: a conversão de sua especificidade em um filme que já vimos diversas vezes.

E no calcanhar do mistério da câmera que gira, vêm os suspeitos costumazes: os planos de nuca; a cena obrigatória do personagem flutuando na água (aqui, com ajuda) para se conectar com seu eu interior e “fazer parte do mundo”; o protagonista silencioso (mais de vazio do que de mistério); a mais do que manjada mãozinha pela janela do carro, cortando o vento, sinônimo automático de coming of age; a dança como pequena catarse; a castidade elegante de uma cena de sexo elíptica sob o luar laminado; os flares na lente, o foco curto, a luz azul, a música pop, a “plasticidade” massacrante do vídeo em alta-definição; e um sentimento geral de que, no que tange a mise-en-scène, vale tudo, desde que fácil e imediato, seja pelo tatibitate estagnado no uso de plano e contraplano nas sequências dramáticas (com os devidos bate-e-volta de planos dos personagens em silêncio, indicando que o diálogo ressoa um subtexto que não parece estar ali), seja pela evocação simbólica de alguma, qualquer, impressão superficial e imediata de beleza.

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Quando um material de tamanha riqueza e especificidade é comprimido e sufocado pela tirania do “universal”, espremido entre as paredes estreitas de uma estrutura maltratada de romance de formação que uma plateia ávida por reafirmação, em vez de descoberta, consegue identificar prontamente (porque, como o Millennial Whoop, trata-se de um padrão já visto diversas vezes), só pode ser sinal de que o estrangulamento normativo já fez trabalho tão bem feito que substituiu a necessidade urgente de fazer vozes dissonantes serem ouvidas por um compreensível, mas em nada menos perverso, desejo de se enquadrar. Entre mortos e feridos, salva-se a carreira do filme: em época em que mise-en-scène parece ter se tornado acessório demodé às discussões “críticas”, a fagocitose arthouse de Moonlight chega às raias do Oscar honorário, enquanto o gosto médio premia a pacificação de tudo que, outrora, lhe parecia por demais radical. Com isso, a troca que prefere a compaixão ao respeito faz-se cartilha para o futuro: para ser aceito, é preciso saber como se comportar.

Moonlight, porém, não merece tamanha raiva. Todo ano, vários filmes como ele são jogados de lado, e os poucos que equilibram a aderência a certo protocolo com demonstrações suficientes de talento, inquietação e pensamento (como Boi Neon, por exemplo), ganham o benefício do tempo: talvez este seja um filme a caminho de outros, e a necessidade do trajeto ficará mais clara quando se chegar lá. É a aderência crítica irrestrita – um “marco!”, segundo a Indiewire; “de tirar o fôlego”, diz A.O. Scott no New York Times; segundo melhor filme do ano para os críticos da Film Comment – que o transforma em consenso ecumênico mais interessante, expressivo e potencialmente venenoso sobre uma outra forma de normatividade, que tem surpreendentemente seguido incólume em contexto que naturalizou o imperialismo até mesmo no vocabulário das lutas progressistas: a “neutralidade” das convenções artísticas.

Em entrevista com Barry Jenkins publicada na Film Comment, Fariha Zaman e Nicolas Rapold elogiam a singeleza de Moonlight em sua introdução: “estes são o tipo de momentos e de imagens que os críticos adoram chamar de ‘universal’, mas na prática esse universo em particular tende a ser exclusivo no cinema a pessoas brancas, heterossexuais, de classe média”. O problema desse ideal particular de “inclusão” é que tais “momentos e imagens” e este “universo em particular” não existem à parte de uma estrutura política de opressão; eles são a própria estrutura de opressão, destruindo singularidades e nivelando experiências em um manual de expectativas compartilhado por artistas, curadores, público e críticos.

Manda quem pode, obedece quem tem razão: Moonlight conhece esse manual bem demais, e esse savoir faire abre a possibilidade de inclusão que poderá, talvez, ser subvertida por dentro, no futuro. Mas quando uma repetição de padronizações e procedimentos artísticos é recebida como consenso louvável por conta de um reposicionamento relativo de conteúdo que fracassa em encontrar uma forma que honre sua própria singularidade, comete-se novamente o velho erro de separar forma e conteúdo, como se um existisse sem o outro. Em paralelo à fundamental promoção de possibilidades iguais para que todas as vozes possam se expressar – algo ainda mais grave numa produção guiada por imperativos comerciais, como é a norte-americana – críticos e artistas se veem batalhando pelo direito de fazer e laurear um filme que já viram antes, capaz de reafirmá-los em seu conforto. E embora o direito de se fazer todo e qualquer filme seja indiscutível e inalienável, a relação crítica com as obras resultantes é determinada e determina critérios que redefinirão a história porvir.

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Como falamos de Moonlight? É sintomático que a “fortuna crítica” ao redor do filme tenha se furtado do vocabulário mais sistemático da crítica – plano; montagem; mise-en-scène; atuação; direção de atores; etc – em troca de expressões mais vaporosas como “momentos”, “referências”, “sensibilidade”, “evocações”, quando não assumindo mais frontalmente o vocabulário perverso dos editais (como se “a arte negra devesse se sujeitar primeiramente à validação sociológica antes de ser avaliada esteticamente”). Embora as recorrentes e desavexadas menções ao cinema de Wong Kar-wai apontem o desejo de se filiar a uma modalidade de registro que de fato desafia esse vocabulário (“plano” é palavra sem dúvidas insuficiente diante de Amores Expressos ou Anjos Caídos), os melhores filmes de Wong Kar-wai desafiavam a acomodação narrativa com uma prosa particularíssima (seja nas falas ou nos textos escritos sobre cartelas), composições de acachapante invenção visual, e uma inquietude formal que evitava a todo custo se deixar acuar contra a parede. Barry Jenkins, por sua vez, tira de seus ombros o estereótipo da câmera empurrada por testosterona, do realismo granulado, do cromatismo exotizante, mas troca-o pela não menos surrada e genérica estética arthouse, pelo inventário cosmopolita de sensibilidades que não produz o novo na fricção com o (nada menos problemático) suposto deslocamento desse “lugar de fala”. Afinal, assim como artistas são artistas justamente por não reconhecerem seu lugar (o que nada tem a ver com negação de identidade), o arthouse tampouco é um lugar; ele é um não-lugar: um aeroporto; um saguão de hotel; uma escada rolante… um espaço simbólico que mobiliza “uma comunicação tão estranha que muitas vezes só põe o indivíduo em contato com uma outra imagem de si mesmo”. (Marc Augé, Não Lugares – Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade).

Na superfície, talvez pareça injusto, se não completamente equivocado, propor uma discussão aparentemente burguesa das propriedades constitutivas da arte diante de um contexto de opressão diária como o encenado pelo filme. Porém, mesmo no que tange as possibilidades pedagógicas e afirmativas do filme como produto cultural, ele desce como remédio morno para tempos bárbaros. Afinal, são exatamente essas mesmas propriedades constitutivas da obra-de-arte que são usadas como forma de opressão de enorme eficiência – pois menos visíveis – e que também podem ser convertidas em formas de resistência, de reação e de transformação. “As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível”, escreveu Jacques Rancière em A Partilha do Sensível (2004). “E a autonomia que podem se atribuir repousa sobre a mesma base”. O problema de Moonlight está em sua própria solução.

O ruído inevitável é que a arte, a melhor arte, ao menos em sua concepção moderna – termo que cobre terreno extraordinariamente vasto, de Clarice Lispector a Arto Lindsay; de Matana Roberts a Tacita Dean; de John Hughes a Grace Passô – é um testemunho de distinção. E a arte transformadora é algo além: uma demonstração de coragem. Quando a luta por igualdade em meios redunda na obrigação protocolar da celebração morna da indistinção das próprias obras, purgada pela via da “identificação” mais superficial buscada por este cinema de um não-lugar que só reflete a minha própria imagem (que já não é mais minha), aliado à auto-sedação do “mais amor, por favor”, surge uma inadequação entre critérios que não necessariamente são auto-excludentes, mas que possuem zonas de atuação distintas: um filme deixa de ser um filme, e embora um filme jamais seja somente um filme, prescindir dessa ontologia é gesto que não se dá sem consequências – ainda mais graves quando a própria política se torna ficção.

No afã de se colocar à frente do presente, propulsionados pelo falso esvaziamento do passado que nutre a supermodernidade, certo senso de pertencimento se perdeu: não somos os primeiros nem os únicos a passar por aqui.

Em 1923, o poeto russo Vladimir Maiakovski desafiou seus contemporâneos com um axioma histórico: “Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”. A frase apareceu como P.S. em 1961 em Plano Piloto para a Poesia Concreta, manifesto assinado pelos poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, advogando por uma nova forma de poesia que fosse “o produto de uma evolução crítica das formas”. Poucos anos antes, os filmes mais radicais do Cinema Novo – em sincronia com a erupção de “Novas Ondas” no cinema mundial – implodiram as convenções cinematográficas como reação a um colonialismo via conteúdo e forma. Quase cinquenta anos depois, uma obra-prima como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, está fadada a ser recebida pela juventude da cinefilia como imitação imperfeita de modelos europeus, em vez de uma prática propositiva de assimilação via destruição (estratégia clássica do Modernismo brasileiro) das táticas do opressor (vivemos, afinal, tempos em que a capacidade de mimese é laureada, o que coloca a singularidade em maus lençóis). Uma década depois, mais ou menos, a No Wave americana ajudava a redefinir o status da arte, confrontando os limites do aceitável de seu próprio tempo, que já incluíam a assimilação de contraculturas do passado – como a subversão original do Punk (processo de fagocitose perversa e inevitável que hoje encontra definição cristalina em Jim Jarmusch fazendo um documentário à VH1 sobre Iggy Pop e os Stooges). E uma vez que a No Wave foi também assimilada, era hora de seguir outro rumo e descobrir outras formas de endereçar essa nova calmaria no status quo. Mais ou menos na mesma época, uma significativa, embora frequentemente ignorada, vertente queer criava tensões dentro da produção Blaxploitation, que por sua vez levou décadas até ser reconhecida pela grande contribuição artística que já havia dado, cerceada ela também pelos limites do “bom gosto” – ah, a opressão formal! Pouco depois, Lizzie Borden realizava Born in Flames (1983). Em 2016, Elza Soares voltava para o presente os olhos irreconciliados d’A Mulher do Fim do Mundo. Em 2017, Jordan Peele dava o golpe de mestre no mainstream, realizando a pérola contrabandista (e, em grande medida, cautionary tale sobre os perigos mortais que um filme como Moonlight assume em seu projeto de auto-pacificação) Get Out.

As estratégias específicas respondiam a momentos históricos específicos, e não estão imunes às contradições de seus próprios contextos. Mas o xis do problema permanece intacto: para que a arte sobreviva como mais do que commodity, ela precisa ser como um corpo vivo, em fluxo permanente, cujo coração bate na articulação ativa e propositiva entre as formas e matérias que geram visibilidades e invisibilidades, permitem que corpos ocupem espaços na mesma medida em que desafiam espaços que já existem, e também criam novos espaços que os corpos – inclusive os que negam catalogação (pensemos aqui em Rester Vertical, filme mais recente de Guiraudie, para ficarmos no mesmo ano cinematográfico) – possam ocupar. Essa vitalidade não é exclusiva aos mais exuberantes desafios formais (embora muitas das convenções do presente tenham sido rupturas impensáveis às suas épocas) ou a um paradigma Modernista que necessariamente mira em alguma ideia de Futuro; ela está lá, calmamente murmurada no enfrentamento anacrônico de Julieta (2016), de Pedro Almodóvar; na explosão narrativa de A Visita (2015), de M. Night Shyamalan; no purgatório da colonização que é Cavalo Dinheiro (2014), de Pedro Costa; na desesperada meditação geracional que é Mil Sóis (2013), de Mati Diop; na transcendência do corpo pacificado em Mal dos Trópicos (2004), de Apichatpong Weerasethakul.

A infantilização da especificidade tem diminuído progressivamente a capacidade de se desafiar o status quo, gerando o triste retrogosto de que a história segue mais inteligente e corajosa do que o presente. E, pior, que vivemos época que se nega a aprender com ela. Isso não diminui a urgência dos problemas de hoje; apenas requer respostas que sobrevivam ao teste de seu próprio tempo. Há certa ironia na impressão de que Moonlight tenha produzido sua mais bela e justa imagem fora do filme: a equipe do filme conferindo uma diversidade atípica à cerimônia do Oscar e, consequentemente, ao circuito de salas e espectadores que o sucede. Ali, no final mais que esperado para uma festa útil e desimportante, afirmava-se a alegria justa por conquistas tardias, que não consigo ver sem certa dose de melancolia.

2.  

O Auge do Humano começa com um rapaz (Sergio Morosini) em um quarto escuro, o que significa que sua presença é mais intuída do que vista. Ele se movimenta pelo espaço falando no celular, e a câmera o segue, sua ótica mal cortando a escuridão. Aos poucos, o som de chuva começa a entrar, fazendo primeira alusão ao mundo exterior que cerca aquele labiríntico espaço fechado. A porta da frente se abre subitamente, trazendo uma primeira imagem clara, um ponto de referência visível: chuva torrencial inunda a rua, enquanto a luz do dia atravessa o batente por tempo suficiente para que se veja o rosto do rapaz, antes do corte. No plano seguinte, a câmera já caminha pelas ruas ao seu lado, com água lamacenta até os joelhos. A chuva passou, e é difícil calar a sensação de que, em algum momento entre aqueles dois planos, o filme tenha cruzado algum portal entre diferentes dimensões.

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É uma grande abertura, em diversos sentidos possíveis – do filme, da obra de Eduardo “Teddy” Williams em longa-metragem, do universo ficcional de O Auge do Humano, elevado por um suspense insuspeito. Mas sobretudo é uma grande abertura no sentido literal: uma porta que se abre magnificamente para o mundo do lado de fora. Talvez a linguagem pareça demasiado pedestre, mas é difícil encontrar termo mais apropriado para definir o trabalho de Eduardo Williams: seu cinema é convictamente pedestre, não só por conta das longas caminhadas que sua câmera acompanha com diligência, mas também pela natureza casual da matéria-prima que fisga o interesse do diretor, que ele então desloca ou intensifica feito drama.

Uma porta que se abre não é somente uma porta que se abre; é a oportunidade para se criar ou testemunhar uma troca real entre luz e escuridão, entre interiores de intimidade e exteriores esmagadores, capturados em sua fúria diária, criando uma torrente de emoções e de pensamentos a partir de elementos extremamente elementares. Mas, sobretudo, uma porta que se abre é um convite para se achar, em tudo isso, uma qualidade cinematográfica, uma espécie de fotogenia que poderia facilmente passar desapercebida. Seu mistério é o do mundano; seu domínio, o das coisas concretas. Seu mundo se parece e se inunda como o nosso mas, por meio de uma curiosidade cinematográfica, ele revela diferentes universos que estão latentes no que parece familiar.

Pode parecer um paradoxo, mas por bons motivos. Em curtas como Pude Ver um Puma (2011), O Ruído das Estrelas me Atordoa (2012) e Eu Esqueci! (2014), o diretor tem desde o princípio praticado uma combinação ímpar de uma aguda curiosidade pela escala do mundo – filmando em locações diversas entre a Argentina, a França, o Vietnam – com um senso de mise-en-scène extremamente particular e uma compreensão particularmente angular da história do cinema. Embora O Auge do Humano seja seu longa de estreia, Williams parece já ter se estabelecido como autor, dono de todo um repertório estilístico particularíssimo e extremamente consistente em seus conflitos internos: seus filmes são paradoxos ambulantes, criando uma coleção de forças opostas que gera uma tensão invisível e faz vibrar a desconfortável suspeita de que, neste mundo estranho e totalmente familiar, tudo é possível. Em muitos sentidos, este primeiro longa faz uma transição sem arestas de sua obra anterior, o que significa que, embora aparentemente ele acene à ordem do dia, no íntimo ele não se parece com nada além dos filmes anteriores do próprio diretor. Essa singularidade passa longe de ser corriqueira, e os motivos que fazem dele um cineasta tão destacável no atual contexto estão todos nestes dois primeiros planos.

Primeiro, e mais proeminentemente, há uma porosidade entre o dentro e o fora, que não é livre de conflitos. Na verdade, na maior parte de seus filmes, as casas, quartos e locais de trabalho são como labirintos claustrofóbicos enquanto a amplidão dos exteriores é ameaçadora, sufocante, lar de segredos inimagináveis. Ao navegar entre essas diferentes dimensões, a trajetória do próprio filme se efetiva como ferramenta de suspense: como em O Ornitólogo (2016), de João Pedro Rodrigues, o filme de aventura é atualizado como um filme-aventura – sensorial, intelectual e fundamentalmente cinematográfica – ao espectador.

Mas, ainda mais importante, essas duas dimensões – ou quaisquer duas dimensões – são tratadas por Williams como contíguas, com uma fluidez que é garantida pela sua distinção. Esse estado é expressado não só nos muitos planos de personagens atravessando quartos, túneis ou florestas até encontrarem um quintal, a rua ou um lago, mas também em exteriores que reverberam como interiores (túneis; buracos; passagens) e interiores que vibram feito exteriores (o supermercado gigantesco; a fábrica de computadores que parece uma grande boate), e tomam de empréstimo suas características.

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Em um dos momentos mais impressionantes de O Auge do Humano, o personagem com quem o filme começa (usar nomes aqui parece contraproducente; trata-se de um filme ao mesmo tempo pré-nomes e pós-nomes) trabalha em um supermercado que se parece mais com um grande depósito, tomado até o teto por prateleiras. Enquanto um carrinho é empurrado pelos corredores que se esticam feito vales entre as prateleiras, uma freguesa pergunta o preço do queijo e um grande e pesado saco cai violentamente do céu, sobre o carrinho do rapaz, motivando o corte. No plano seguinte, o rapaz já terá sido despedido do emprego, e terminará trabalhando no caixa de um mercadinho onde os preços estão todos visíveis e ninguém precisa perguntar por eles.

Este sentido aterrado(r) de maravilhamento, de surpresa, é parte de uma pesquisa em curso que começou logo em seu primeiro filme, Tão Atentos (2011), e que segue sendo desenvolvida de um filme a outro, como uma única espinha dorsal que não cansa de espiralar. Nos filmes de Williams, a realidade se oferta como sonho, porém sem perder o peso das coisas, as medidas e densidades; é o sonho que se tornou matéria. No entanto, para que ela não esfrie, é preciso que o diretor esteja sempre em busca de novas formas de expressão, novas curvas, novas revelações, novos pequenos deslocamentos que reafirmem: esta pedra, indubitavelmente uma pedra, transborda tudo que jamais possamos saber ou projetar sobre ela. Esta pedra é um buraco negro.

De certa forma, essa ambivalência também se manifesta na compreensão evidente de que sua “moeda autorista” tem lastro na singularidade. Embora o trabalho do diretor esteja claramente antenado a uma “conversa global”, nenhum elemento estilístico é aqui tomado de empréstimo ou mesmo desenvolvido sem ser reivindicado e redefinido. As longas caminhadas dos filmes de Béla Tarr são confrontadas à escala de uma paisagem hostil e misteriosa, muitas vezes por meio de sufocantes planos gerais. A elegância formal do trabalho de câmera do diretor húngaro é aqui eletrificada por uma confiança trêmula que incorpora o necessário “terror e tremor” de Rivette/Daney como única reação possível diante do mistério (e quando tudo é possível, o mundo todo é um mistério), situando o espectador em uma zona cinzenta entre documentário e fantasia. Seu uso de planos longos faz com que a aparente continuidade – uma convenção frequentemente enjaulada sob a generalização de um “cinema contemplativo”, aqui mais Alan Clarke do que Gus Van Sant – esconda monumentais saltos de espaço ou de sensibilidade, resultando em conversas casuais que às vezes começam em um continente e terminam em outro, ou levam a pontuações enigmáticas como “Eu queria ouvir um grito pré-histórico” ou “Se a lua fosse sua prima”. A estrutura, que favorece ecos e combinações em vez de progressão narrativa, toma as perspectivas modulares de Apichatpong Weerasethakul e Hong Sang-soo, mas faz furos invisíveis neste jogo de dobrar transparências, para que as diferentes camadas não só se relacionem, mas de fato interajam, vazem umas nas outras, transformado o roteiro em uma espécie de poesia dadaísta em blackout.

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O que faz este diálogo com seus pares ressoar como algo mais profundo do que puros exercícios maneiristas de apropriação ou esperteza oportunista para garantir sua fatia do bolo é que, no cinema de Eduardo Williams, todo lugar é um espaço transitório, e toda divisão é oportunidade para uma passagem. Seu mundo criativo/criado existe no limite entre oposições; a tensão palpável ao longo do filme vem da negociação permanente entre diferentes esferas; sua distinção vem da luta, ou da dança, com outras individualidades. “Viva com seu século, mas não seja sua criatura”, escreveu Friedrich Schiller, “dê aos seus contemporâneos o que eles precisam, não o que eles veneram”, e o que o cinema realmente precisa é de caminhos para seguir em frente, para descobrir possibilidades de expressão do presente para o futuro, e não para si próprio.

Em época em que a singularidade foi reduzida ao estilo (novamente, os Dardenne são exemplo ideal) e a história foi substituída pelo armazenamento acrítico e anti-pedagógico de dados, qual é o sentido carregado por este sofisticado jogo formal? O que ele diz sobre o mundo hoje que não foi dito antes, e de que forma?

A resposta está escrita nos corpos. Mesmo em comparação aos curtas do diretor, O Auge do Humano é ainda menos subserviente a um dorso narrativo que aponta para uma moral ou um discurso crítico exterior à sua própria matéria – os bonés do UFC, os shorts da Nike, as peles e os ossos. Em vez disso, é a musicalidade do filme que toma a frente, composta de repetições expressivas de motifs temáticos e da desconstrução de suas interpretações mais automáticas. Pela manipulação criativa de tais motifs, Williams consegue destravar o espectador para diferentes possibilidades, diferentes presentes e, com sorte, diferentes futuros. Isso não significa que o filme seja ausente de ação, continuidade ou tema, mas que o deslocamento de percepção desses elementos constitui seu drama: um drama que começa no filme, mas termina no espectador, em uma transformação que só pode se consumar quando filtrada pela tela.

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Esse desejo começa a ser literalizado pelo filme a cerca de trinta minutos do começo, quando este primeiro personagem vai a uma espécie de festa no que parece ser a casa de um amigo. Ele passa por várias pessoas de diferentes idades, distribuindo cumprimentos sem entusiasmo, e atravessa cômodos sub-expostos até chegar a um quintal nublado. Nos fundos da casa, passa por dois homens que saem casualmente de um alçapão, e em seguida desce, ele mesmo, pelo buraco.

Corte para um quarto escuro, parcamente iluminado pelo brilho azul de um monitor de computador, onde um grupo de rapazes seminus, incluindo o principal (ele, totalmente vestido), se agrupam ao redor de uma webcam, exibindo seus corpos online por dinheiro. A natureza ritualística da jornada é elevada pela atenção magnética que a câmera oferece àquela prosaica liturgia, e entra em choque com a aparente vulgaridade do encontro, que ao mesmo tempo acena a rituais ancestrais singulares – com a diferença de que o “além” do presente foi subsumido pela magia tecnológica (como Thomas Elsaesser frequentemente diz: se é magia negra ou branca, ainda não dá para dizer). Em algum momento, um usuário desconhecido do outro lado da tela oferece dinheiro (dólares, eles sublinham; moeda estrangeira) para que dois dos rapazes performem sexo oral. Depois de alguns momentos de zoeira, um deles começa a chupar o outro, e a câmera sequer se move, mantendo uma distância frontal e desapaixonada que acentua o aspecto assexualizado daquela breve relação, muito mais próxima da indiferença do que da crítica social.

A cena aparentemente termina ali, mas o “contraplano” de fato vem alguns minutos depois: o personagem de Morosini pede a um amigo para usar seu computador, e desta feita é ele quem está do outro lado daquele quarto escuro, como voyeur no que parece ser o mesmo programa de computador. Ali, como nós, o jovem argentino assiste um grupo de adolescentes em Moçambique simulando atividades sexuais com uma banana, acrescentando uma outra camada de distância, uma quebra na quarta parede que enfatiza a encenação desapaixonada da cena do boquete, assim como o aspecto contraditoriamente virtual do voyeurismo moderno. A montagem corta do over the shoulder do rapaz olhando para o computador para um plano diferente dos jovens moçambicanos, que agora toma toda a tela. Antes que se possa notar, o filme já cruzou o oceano (“Às vezes permito que algumas palavras me transportem para longe, e termino exatamente no mesmo lugar em que me perdi”, dirá um dos jovens, mais tarde, em um grande resumo do ethos do filme), abandonando seu primeiro grupo de adolescentes em uma manobra à A Estrada Perdida (1997), e agora acompanha estes outros jovens, estes jovens outros, por Moçambique, à procura de suas próprias maneiras de se conectar, relacionar e interagir, em uma outra língua.

Por sua vez, esta “segunda parte” (as aspas que ressaltam a insuficiência das palavras reforçam a dimensão da contribuição de Williams: esta estrutura em partes não promove divisões, mas sim conexões, novamente demonstrando a fé do diretor em uma permeabilidade irrestrita) termina em parecido (e quase literal) wormhole: a câmera desce com o mijo pelo buraco de um formigueiro, viajando pelas tubulações e túneis de areia até chegar às Filipinas, onde outros personagens procuram por um cyber café. A câmera é um detrito do corpo.

Esses são o tipo de “planos impossíveis” pelos quais Eduardo Williams já se tornou conhecido (o fim súbito de Pude Ver um Puma; o deslumbrante plano derradeiro de Eu Esqueci!) que ressuscita uma fascinação mecânica inerente à história do cinema (a câmera que passa pelo vidro em Cidadão Kane; o antológico plano final de Profissão: Repórter) hoje banalizada pela era de drones e CGI. Porém, ais uma vez, isso só se dá por o diretor atualizar o device histórico em sua própria proposição artística: a câmera também é capaz de transcender a matéria, o tempo e o espaço, habitando esta dimensão porosa entre registros (muito apropriadamente, cada parte do filme é filmada em um suporte material diferente), graciosamente ignorando esse gap material, e sugerindo outras combinações possíveis, outros encontros improváveis: Tarkovsky via Jean Rouch.

Eduardo Williams expressa uma nova forma de se lidar com fronteiras e identidade que é muito definida sim pela especificidade de local e tempo, mas que também já encontrou maneiras de transcendê-las e se envolver em um diálogo mais amplo. O resultado, porém, não se acomoda na empatia especular, mas sim desafia a integridade do sujeito (que observa, que interage, que se relaciona) na curiosidade permanente por tudo que lhe é outro – e, aqui, tudo é Outro.

O que faz de seu cinema um tiro certo nos festivais mais espertos hoje em dia é que ele encapsula uma mudança de paradigma no entendimento da geopolítica do próprio cinema, que remoldou e redirigiu também os parâmetros curatoriais. A abordagem Culturalista vigente até pouco tempo, que tentava decodificar as “cinematografias nacionais” de dentro para fora, buscando o desvelamento da especificidade do outro pelo trabalho acessório de campo ou de biblioteca, tem aos poucos sido substituída pela percepção de uma conversa global que encontra pólos de colaboração em diversos lugares pelo mundo, e que se expressa a partir de uma fisicalidade compartilhada que respeita o específico como um mistério a ser preservado. Como soletra seu título, O Auge do Humano almeja por questões e temas grandes, generalistas – o “humano”, o “global”, o “contemporâneo” (com e sem ironia) – mas trilha o caminho das respostas através de um prospecção profunda de alteridade no lugar e tempo que ela naturalmente habita, para então revelar algo sobre essa sensibilidade partilhada no contraste com outras especificidades.

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Embora o filme não pareça encontrar seu melhor equilíbrio no controle do tempo e das durações – craft que Williams domava eximiamente em seus curtas, mas que parece um tanto fora de proporção neste outro bicho que é o longa-metragem, em especial na segunda metade – a encenação nunca tira os dedos da pulsação de seu tempo. Se muito do diálogo e das poucas ações circula em torno da ansiedade gerada pelos meios de comunicação tecnológicos contemporâneos – celulares travam ou caem dentro d’água; roteadores wi-fi ficam sem sinal; as baterias estão sempre esvaziadas; as lan houses se perdem na malha das cidades e das selvas – esses elementos não são julgados através dos filtros da incomunicabilidade pós-Antonioni. Da mesma maneira que o mundo natural não carrega a paz idealizada que se encontra nos filmes de Ben Rivers, por exemplo, os meios artificiais de comunicação oferecem também possibilidades de conexão literal, às vezes mais do que a conversa presencial na pracinha do bairro. E se as conversas chegam ao vazio, restam ainda outras perguntas: que vazio é este? E por que ele expressa o presente?

O diretor parte, em suma, das mesmas indagações que terminavam não-respondidas por Jonathan Crary, em Técnicas do Observador: “Como é que o corpo, incluindo o corpo que observa, tem se tornado um componente de novas máquinas, economias, aparatos, sejam eles sociais, libidinais, ou tecnológicos? De que maneiras a subjetividade está assumindo uma condição precária de interface entre sistemas racionalizados de trocas e redes de informação?”. Em provável novo corte epistemológico da percepção – Michael Harris, em The End of Absence: “Para aqueles entre nós que viveram tanto com e sem a vasta e populosa conectividade propiciada pela internet, nós vivemos o raro momento em que ainda se pode perceber a diferença entre o Antes e o Depois” – Eduardo Williams se ocupa em radiografar o corte, perceber a maneira como o tecido se dobra sobre as próprias feridas e cria outras veias, outros caminhos, conectando células que, recombinadas, podem gerar outros nervos, outras superfícies. O que vale para um corpo, vale também para o mundo.

Com toda essa absoluta especificidade, O Auge do Humano jamais idealiza ou exotiza o local; os personagens, se é que devem ser chamados assim, estão sempre buscando meios (que podem estar logo ao lado: gasta-se um tempo considerável pedindo um celular emprestado) de se conectar com um além, de transcender certa materialidade do entorno e de enfim pertencer alhures, próximo a alguém (ou a algo) que é outro, e que pulsa além da presença física em um mesmo espaço.

Como paradigma para si próprio, naturalmente nada aquém é aceitável: é necessário se rearticular e recalcular constantemente para poder manter essa propulsão e vida originais intactos. Mas, antes e depois de tudo isso, O Auge do Humano é um filme que parece buscar o novo, em vez da novidade; um filme que não refuga diante das grandes afirmações, embora elas estejam naturalmente fraturadas na irregularidade da poesia; um filme que compreende que seu lugar na história do cinema e na produção contemporânea, assim como nosso lugar no tempo, depende vitalmente da ambição e habilidade para redefini-las e começá-las novamente.


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