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A vingança é um prato que se come frio

A década de 1970 no Brasil terminou no dia 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito – indiretamente, através de um Colégio Eleitoral – presidente. Tancredo era o candidato civil de um país que vinha sendo governado por militares desde 1964. Apelidado “Tancredo Never” pelo general de plantão, João Baptista Figueiredo, sua vitória representou epifania na história brasileira. A partir dali, tudo mudou para continuar igual, porém sob a égide da “Nova República”, que se encerrou na deposição definitiva da presidente Dilma Rousseff, em 31/08/2016. Com a volta dos civis ao poder, começamos um longo processo de esquecimento do país de outrora. Também compramos a versão dos vencedores: o Brasil setentista representa os “anos de chumbo” e se dividia em um maniqueísmo entre os que “resistiam” e os que, por desaviso ou maldade, eram cooptados pelo boitatá dos milicos instalados em Brasília.

Não é de todo errada a versão histórica que aprendemos nas escolas, embalados pela Fafá de Belém cantando o “Hino Nacional”, enquanto Tancredo morria ungido a novo Tiradentes. Se, por um lado, o Brasil dos 1970 era a nação do medo e do silêncio, por outro era o velho Brasil de sempre: aquele que, sob o manto da hipocrisia, cultivava (e cultuava) sua rica fauna e flora cultural. Joãosinho Trinta dizia que a nação seria mais feliz se o governo tirasse férias. Estava certo. Governo, desde Cabral, só atrapalhou a pujança natural das coisas. Logo no país sem liberdade política nunca deixou de existir a liberdade de espírito que, conjugada ao brio da época, redundava em uma obsessão quase doentia pelo sexo. Essa hiperssexualização decadente, mórbida, que o mundo inteiro também associa aos anos 1970, entre nós teve a perfeita tradução em um gênero cinematográfico: a pornochanchada.

Pornochanchada, ora vejam, houve muitas naqueles tempos esquisitos: Isabel “Coca” Sarli, na Argentina, é exemplo óbvio. A francesinha Brigitte Lahaie manda um alô para Helena Ramos. Nascia como indústria o cinema adulto pornográfico que, por conta da Censura, demorou a chegar nesse canto esquecido do planeta. Devemos a essa proibição grande parte da riqueza estética da pornochanchada. Em certo momento, parecia claro que os pornochanchadeiros queriam era fazer cinema pornô, só que os censores não deixavam. Graças a essa jabuticaba, a pornochanchada brasileira tornou-se gênero único, labiríntico, a ser estudado como tal.

E aqui começa nosso problema: uma parte substancial da história e da fortuna crítica do gênero precisa ser jogada imediatamente no lixo. Isso porque foi produzida debaixo de critérios ideológicos que nada têm a ver com os filmes. Até o termo “pornochanchada” é fruto desse trabalho insidioso. Nos anos 1960, críticos moralistas já falavam em “chanchadas pornográficas” para as adaptações de Nelson Rodrigues e até para Os Cafajestes (1962). A partir de 1973, 74, o vaticínio arranjou-se e a imprensa nunca mais tratou a esfuziante comédia erótica ou os dramas apimentados com qualquer outro nome que não fosse… “pornochanchada”.

Os Cafajestes (1962), Ruy Guerra
Os Cafajestes (1962), Ruy Guerra

“Pornochanchada” é epítome acurada. Não fosse a palavra certa na hora certa, dificilmente guardaria tamanha resiliência. Claro, há o destino de arrastarmos, junto com a ideia da “pornochanchada”, o manancial de carga negativa que sempre a bombardeia. Se consigo ir de mãos dadas com José Carlos Avellar ou mesmo Ely Azeredo até aqui, é hora de me despedir: a pornochanchada nunca foi uma cooptação do sistema. Ela também foi “resistência”. Os documentos da Censura estão disponíveis na internet para repensarmos velhos paradigmas e entendermos, de uma vez por todas, que os donos do poder não detestavam só a liberdade política. A subversão sexual também os incomodava, e muito.

Sim, amigos, a pornochanchada era tão subversiva quanto os delírios messiânicos da turminha do Laboratório Líder. Apenas levava um papo que todo mundo entendia, que não jogava o povo para uma representação de sua realidade que o próprio povo não curtia assistir. Ao cair de boca no popular, ironia das ironias, muitos cineastas brasileiros foram amaldiçoados justamente por aqueles que sonhavam falar em nome do povo. E quem hoje, na rabeira do revisionismo politicamente correto, acusa o cinema brasileiro do quartel setentista de machista, misógino ou homofóbico, precisa visitar seus avós e perguntar o que era o Rio de Janeiro às três da tarde de um dia de 1975. Melhor do que qualquer outro gênero já realizado no país, a pornochanchada lavrou o inconsciente coletivo de seu tempo. Gostemos ou não.

Se o cinema é a sétima arte, a sedução é a oitava. O que temos naqueles filmes não só apelava para os baixos instintos, como também os discutia. O sexo, na pornochanchada, foi questão de amor, de desejo, mas igualmente de capital. Que tanta gente com formação marxista nunca tenha percebido a sutileza de um Pedro Rovai, de um Calmon ou Victor di Mello, é mistério que me escapa.

A pior das bolas fora, o calcanhar de aquiles que separa os meninos dos homens, é a confusão entre o cinema popular do período e as verdadeiras pornochanchadas. Tomo a liberdade de citar o ensaio que escrevi em abril de 2007, Sobre Conclusões Óbvias:

“(…) A pornochanchada foi um movimento dentro do cinema popular brasileiro. Cinema popular que já existia antes da pornochanchada e continua a existir depois dela. (…) Recuando no tempo, o cinema policial brasileiro não é pornochanchada, é cinema popular. República dos Assassinos, Ódio, Barra Pesada e Clery Cunha são cinema popular. Os filmes de Xavier de Oliveira são cinema popular. As adaptações de Nelson Rodrigues, idem. O cinema inicial de Jean Garrett e de grande parte dos diretores da Boca era cinema popular (…)

(…) Pornochanchadas são Giselle, As Seis Mulheres de Adão, O Flagrante, O Bom Marido e os filmes de episódios. Um gênero (…) dentro do cinema popular. Mas nem todos os filmes populares feitos no país daquela época são pornochanchadas (…)

(…) Cometer este erro equivale a dizermos que toda música popular brasileira é samba. Ora, o samba é parte do amplo espectro da música popular brasileira, não seu todo e limite. Equivale a dizermos que músicos como Roberto Carlos, Belchior e Milton Nascimento são autores de sambas, apenas porque fazem música popular brasileira. O cinema popular brasileiro contém em si a pornochanchada, mas ela é apenas um aspecto do todo (…)”.

As questões da pornochanchada são tão complexas que venho escrevendo, tentando gerar uma nova fortuna crítica, há mais de uma década e não sinto que tenha dado conta sequer de uma parte de tudo que possamos evocar. E vou mais longe: a pornochanchada brasileira nunca deixou de existir. Com a liberação da pornografia em 1981, pouco a pouco se diluiu na nonchalance dos closes explícitos, até da bestialidade, sem, no entanto, ser interrompida. Já nos anos 2000, produções despreocupadamente explícitas, como Brasileirinhas e similares, ainda continham narrativas que emulavam os jogos e o discurso das velhas pornochanchadas. Lembro de assistir, ali por volta de 2003, a uma cena pornô com o falecido Fábio Scorpion (confesso que vejo) em que o personagem depilava sua esposa, para, digamos, deixá-la transar com outro homem (que era o carioca Rogê Ferro). O diálogo do “casal”, e o desfecho da cena, eram pornochanchada pura. Não fosse a ambientação hi-tech do motel e o sexo acrobático, poderia ter sido rodada em 1973 sem nenhum prejuízo.

Karen Meneghel e Rogê Ferro em cena da série Brasileirinhas
Karen Meneghel e Rogê Ferro, em cena da série Brasileirinhas

Se pararmos para pensar, o que falta é um diretor de talento, que entenda esse cadáver insepulto e o sintetize, levando-o de volta para o lugar de onde nunca deveria ter saído: as delícias da tela grande e da sala escura. Teria que vencer a grossa cortina de ferro mental e moral da intermediação politically correct e o catecismo “mundo perfeito” da classe média, fã do juiz Moro. A moneychanchada é a pornochanchada dos coxinhas, e um bom híbrido foi De Pernas Pro Ar (2010-2012), de Roberto Santucci. Outras raras comédias sobre sexo, como O Último Virgem (2014), de Felipe Bretas e Rilson Baco, prestam tributo grosseiro e direto ao cinema norte-americano, estando muito longe da revista sociológica que a pornochanchada era capaz de mobilizar. Pornochanchada autêntica, de raiz, quem diria, no século XXI seria coisa de gauche e anarquista. É uma bola que Carlos Reichenbach, Afranio Vital, Waldir Onofre já haviam cantado lá atrás, e que vai continuar quicando até que alguém volte a chutá-la com vontade.

De Pernas para o Ar (2010), Roberto Santucci
De Pernas para o Ar (2010), Roberto Santucci

Falei diretor talentoso? Pois vejam, que porca chauvinista do machismo eu sou. Eis que uma mulher, a cineasta Fernanda Pessoa, resolveu adentrar pelos caminhos tortuosos da pornochanchada. Tendo um acervo fabuloso em mãos, Fernanda só erraria se repetisse com paixão os capciosos preconceitos. Mas ela sempre me pareceu hábil o suficiente, desde que trocamos e-mails sobre o projeto, em Maio de 2013, para não transformar uma boa ideia em uma ideia boba. Realizou em Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2016) uma colagem de cenas das seviciadas pornochanchadas. O resultado é um mashup agradável, que não entedia. Às vezes parece alguma obra perdida da Belair, um achado que Rogério Sganzerla não encontrou. Sob qualquer ponto de vista, o esforço de Fernanda precisa ser visto e discutido. E quando peço para discutirmos é com fartura, a abastância dos novos parâmetros que proponho neste ensaio e nos textos desde 2005.

Claro que, iluminando o tema, Fernanda amplifica seus vícios e virtudes, além de comprar para si mesma o enorme telhado de vidro em que reside esse sincretismo tropicalista chamado pornochanchada. O que notamos, de cara, é que, ao pretender inventar uma história do período através da colagem dos filmes, Histórias… presta, na realidade, um tributo aos símbolos do Brasil 70 em todas as suas plumas: estão lá as mulatas, a cocaína, Décio Piccinini, a androginia, Martim “Vai Pra Casa, Padilha!” Francisco, a euforia do tri, o sotaque carioca da Maria Lúcia Dahl. Lembra de mais alguma outra coisa? Pode acreditar, ouvimos presente. Isso porque, como eu disse no início, a pornochanchada foi (e continua a ser) um grande resumo do inconsciente nacional. O ethos dominante não quis esquecê-la à toa, Dorian Gray evita mencionar Basil Hallward. Um título bonito seria: A Vingança da Pornochanchada. E não façamos julgamento maniqueístas dessa “vingança”. Ela é tão jocosa, melancólica ou demoníaca quanto o discurso do ex-presidente impeachmado Fernando Collor, na tribuna do Senado, ao votar “sim” pelo afastamento de Dilma Rousseff, devolvendo o mal-estar que sofreu em 1992. Talvez o Brasil vá se aprumando para a reincidência da pornochanchada, agora sob a égide da farsa.

Aquém das analogias políticas e históricas, gostei da escolha dos títulos selecionados. Faltou Giselle (1980), o apogeu do gênero, mas sobra As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975), sua obra-prima. Em compensação, As 1001 Posições do Amor (1978), outro petardo de Carlo Mossy, dá as caras. Mossy até hoje desconfia que este e os outros dois filmes – Bonitas e Gostosas (1979) e As Taradas Atacam (1978) –, que compõem a sua “trilogia do rádio”, são cult-movies, e talvez tenha razão. Um chato pode afirmar que há Antonio Calmon em excesso – até o policial Terror e Êxtase (1978) entra na festa –, porém o mundo seria um lugar bem melhor se tivéssemos por aí uma overdose de Calmon.

Giselle (1980), Victor di Mello
Giselle (1980), Victor di Mello

Plausível reprimenda ao esforço de Fernanda Pessoa é notarmos que, ao gerar colagem de dezenas de filmes, ela trafega no fio da navalha entre a homenagem e o deboche. Deturpa, de forma deliberada, a intenção original dos realizadores, ressignificando aquilo que no original tinha qualquer outro significado. Como diriam os norte-americanos, bullshit. Se estamos maduros para reavaliar a importância histórica da pornochanchada, também estamos para lembranças amplas de seus bastidores. Sujeitos como Victor di Mello e a turma da Boca do Lixo eram costumeiros “retalhadores” de trechos de filmagens e histórias mal aproveitadas. O que era gravado hoje, poderia reaparecer três anos depois em novo contexto, em novo título, completamente diferente do que havia sido combinado anteriormente entre o elenco e a equipe. Cito Victor por lembrar de seus indefectíveis Assim Era a Pornochanchada e Os Melhores Momentos da Pornochanchada, ambos de 1978. Até o venerável Walter Hugo Khouri assim agiu, aproveitando em As Feras (2002) um curta-metragem que realizara no início dos anos 1980. Logo, o que o trabalho de Fernanda abrigaria de mais oportunista e picareta é, na verdade, uma repetição dos artifícios que os próprios diretores de outrora usaram sem pudor: retirar friamente de contexto e criar novos objetos para trechos de filmes aleatórios. No Brasil de sempre, cara de pau pouca é bobagem.

Do verbo, fez-se a carne. Esse “efeito” da colagem é outro bom tópico a ser discutido Na sucessão das cenas, aos poucos, Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava ganha ares de enredo de escola de samba, naquilo que a manifestação carnavalesca tem de mais original: remoldar o passado, os grandes – ou pequenos, tanto faz – vultos da cultura, adequando-os a uma linguagem exótica, própria. De repente, surge em um carro alegórico a Elke Maravilha pulando e o narrador insone informa que ela representa a Princesa Isabel assinando a Lei Áurea. Igualmente, em Histórias… você pode se deparar com Arlindo Barreto, futuro ex-Bozo, posando de guerrilheiro revolucionário. É nessa lógica tão nossa, tão confusa, que o filme busca sua razão. Creio, ao final das contas, que a diretora consegue a bizarra façanha por não ter qualquer relação de memória afetiva com a matéria-prima. Um nostálgico tiozão, que tenha assistido às sessões de meio-dia no Marabá ou no Odeon, que tenha comprado a Playboy da Matilde Mastrangi só para descobrir que ela ficava mais nua nas lentes da Dacar, nunca seria capaz de tamanha iconoclastia.

De resto, você ouvirá diatribes banidas da prosódia, como “crioulo”, “bichona” e tutti quanti, sem medo da catarse incorretíssima. Em uma cápsula do tempo, horríveis palavras ainda existem, e foi essa cápsula que Fernanda Pessoa reabriu, brincando de aprendiz de feiticeira. Se foi um bálsamo ou uma caixa de Pandora, cabe ao espectador julgar.


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