the war, de James Benning (EUA, 2012)
dezembro 1, 2013 em Em Pauta, Juliano Gomes
Breves notas sobre a guerra
por Juliano Gomes
Como boa parte da filmografia de Benning, the war é fácil de descrever: material de arquivo filmado pelos grupos ativistas russos Voina e Pussy Riot, montado do mais recente ao mais antigo, começando e terminando com uma foto em cada extremo desse segmento maior. Tirando uma narração em inglês que ouvimos sobre a primeira foto, os vídeos mostrados não são legendados. A parte seguinte é constituída pela descrição, na ordem, dos vídeos que vimos e das legendas dos diálogos, todos sobre tela preta.
1. Infância: imagens de crianças pontuam o filme. O olhar da criança: inacabamento, abertura, atenção. Há algo de simplório na armação do filme. Ordena-se os materiais, ordena-se as informações, cada uma no seu lugar. É como brincar de não saber, de ignorar que o “lugar certo” dessas coisas é junto. Brincar, afinal, de não saber a lacuna correspondente, talvez, a tarefa da arte. Infância como potência de ignorância e anarquia. Fazer uma fila com as imagens, enfileirá-las. Tal ato de serialidade parece suprimir efeitos intencionais de montagem no choque entre planos de diferentes segmentos, que parecem não ser montados internamente por Benning. A estrutura é também uma brincadeira. Jogo. Vemos a primeira imagem, estática, a primeira criança: homem deitado, bebê com cordão umbilical, mulher por cima e balde azul. Um nascimento. Ouvimos a narração que fala das ações do grupo Voina. Corta para uma imagem em movimento, um homem deitado ao lado de uma criança pequena. O menino está com um caderno de desenhos. Logo ele pega uma faca. A iluminação não deixa ter certeza se é uma faca de verdade. Mas talvez seja uma falsa questão. A criança ataca, com vêemencia e graça, as imagens na folha de papel. Através de uma língua que não entendo, só posso ver a cena “ingenuamente”, sem dominar o código. O que pode ser a imagem mais pregnante do filme (é disso afinal o que ele trata, desse processo, dessa sobrevida) é a dessa criança atacando o caderno de desenhos com a faca, enquanto falam;
2. Segunda infância: uma criança brinca com uma bola. Através de um claro falso raccord, que muda do dia pra noite, a bola vai pra debaixo de uma viatura da polícia. Um grupo de homens vem e vira o carro de cabeça para baixo. Pegam a bola e correm. Travessura. Grande parte dos atos mostrados tem uma grande força lúdica e violenta. Há gozação e agressão, inconveniência afinal. Crianças no colo são uma constante no filme. Um misto de escudo e de reserva poética, um totem, uma metáfora viva, ou mesmo um talismã. Bebês de colo;
3. Guerra: terceiro personagem, a polícia. Polícia como figura mesma da ordem, da vigilância e punição. Mas qual guerra é essa?
4. Segunda guerra: a guerra de Benning parece ser a guerra da resistência. Do menor, dos ruídos, da persistência. Como o balde azul da placenta inicial, que retorna num plano geral de um homem que atravessa rua, coloca a cabeça no balde e sobe numa viatura. O conflito é na cidade, é a cidade: estacionamentos, viaturas, mercados, pontes, câmeras de segurança, delegacias. Muitas imagens noturnas. Vê-se pouco em boa parte do material, nos perdemos. A guerra é quebrar o jogo do Estado e do jornalismo: separar imagem de informação, isolá-los. A mistura só pode se dar na memória. Ao começar o segmento final, percebemos a presença das imagens anteriores. Alguns títulos são mais fácies de ligar, alguns diálogos talvez possam ser correspondidos, mas alguma hora se entra naquela zona de confusão. A sequência de títulos é quase como o fantasma, o esqueleto da reunião do material em vídeo, porém um esqueleto deslocado, já não sabemos a quem pertence. A persistência da imagem é um tema recorrente da obra de Benning. O que sobrevive? A imagem da mulher inserindo um frango na vagina, os beijos desesperados nos policiais… o que fica, o que resiste na memória, que lampejo sobrevive? É essa verificação que estrutura the war. Testar, jogar, para ver o quanto resiste de fato um ato de resistência;
5. Terceira infância: um homem com um bebê na mão açoitado pela polícia, ao redor de um camburão. Ele não larga o bebê. A polícia insiste. O bebê, de vermelho chora alto. Câmera tremendo, muitos diálogos que não podemos entender. Uma mão segura o bebê, a outra quer abrir as portas do camburão. O bebê continua chorando. A outra mão tira um quepe de um policial e o clima esquenta, muitos policiais encurralam o homem com o bebê nos braços;
6. Terceira guerra: arte ou ativismo? O homem do bebê de vermelho agora está no chão e em seguida é colocado num ônibus. Outro parece xingar os policiais da estreita janela do veículo, todos cantam com ele. O som permanece, tela preta e começam os créditos e diálogos pelos dezessete minutos seguintes. Benning atua no terreno da ordem, sua estrutura é de ordenação, incorpora a cronologia para justamente criar deslocamento, fissura, nos acontecimentos mostrados. Explicar é matar o acontecimento. É a ação policial agindo sobre o vivo: cruzar a imagem e sua respectiva informação, origem. Benning investe no fundo preto, numa espécie de moldura negativa para destacar os elementos da imagem, em sua força primária. É preciso ser primário, the war parece dizer. Tudo no seu lugar mesmo, reunir por afinidade das coisas mesmas e não por correspondência, o sangue e o vermelho, a palavra com a palavra seguinte;
7. Sugestão: a inutilidade. Benning precisa preservar cada imagem, escrita ou fotográfica, para cultivar sua ingenuidade e sua violência. Sem dúvida, a importância de um filme como the war hoje, no Brasil, é fundamental. Pois nos desensina, com clareza e precisão, com violência e doçura, a restituir a força das imagens de intervenção, enquanto intervenção na imagem. Trata-se também de um filme de paisagem. Câmera tremida, baixa definição, zonas escuras. O território da noite é a zona onde o filme se instala, abstrato e arbitrário como toda paisagem, inventado e opaco. Benning insinua um caminho para fazer as imagens resistirem, um caminho pela ordem, por dobrar a ordem, dar-lhe uma volta e envolvê-la com ela mesma. Não exatamente bater na polícia, mas atacar-lhe com um abraço apertado e um beijo sufocante;
8. Infância, guerra e fim: o último bebê. Não é possível perceber se alegre ou triste. Aperta os lábios e estica os braços pro lado, como se quisesse afastar algo ou alguém. Algo pequeno, frágil, e que talvez cresça, ainda por se formar. Ainda fora da lei, como tudo nasce. Alguém que não lembra. Um prólogo de algo que virá, e que não se lembrará desse primeiro estado. A guerra é a do estado de pura exterioridade da imagem e da língua que o filme evoca como ferramenta política, como força de vazio, que cria esse lugar radicalmente comum, que precede o logos e a ordem sem ignorá-los, fundando diacronias, na esperança de uma nova língua, muda.
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