O cinema de Cláudio Assis: quem tem medo do lobo mau?

setembro 26, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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Baixio das Bestas (2007), Cláudio Assis

por Luiz Soares Júnuior

Os homens existentes necessariamente em comunidades não são pensáveis como simples corpos e,
quaisquer que lhes correspondam de forma estrutural, eles não se esgotam, em todo caso, em seu ser corporal”.

Edmund Husserl, “A Origem da Geometria”.

(…) penso em substituir a idéia de abandonar este mundo por outro pelo desejo de abandonar um outro mundo por este aqui”

Hölderlin, “Observações sobre a Antígona”, 1804.

Desenha-se aqui a idéia estranhamente poética de uma Etnografia das almas que sofrem”.

Paul Valéry, “Prefácio a James Frazer”, “O Medo dos Mortos”.

Geralmente, acho de mau-tom um crítico relatar experiências pessoais na tentativa de reencontrar em si a obra outra. Mas quando vi Amarelo Manga (2002) pela primeira vez e ainda numa segunda, (cercado de uma fauna citadina mais do que popular, no central Teatro do Parque, em Recife), tive uma sensação que oscilava entre a fascinação e o maravilhamento. Ambos os afetos não são necessariamente positivos, mas nos turvam e al-terizam. Lord Henry Wotton, no livro de Wilde, já alerta o seu pupilo e discípulo, Dorian Gray: “Fascinar não quer dizer gostar, Dorian”. A própria origem da palavra – fascino, feitiço – já designa a via-crucis de sua ambiguidade semântica… encanto e captura. E, das maravilhas a que Alice e tantos outros personagens de contos de fadas sofrem, sabemos que são bailes de máscaras para fetiches e interditos que não ousam dizer o nome – ou tirar a máscara. Horror e maravilha coabitam uma única fresta: o olho da fechadura, por onde vislumbramos a chocante revelação de sermos um Mesmo refratado em Dois, ao flagrar nossos pai e mãe na cama? Que em nós coabitam outros dois, que compartilhamos um corpo e uma história em comum com Aqueles a quem devemos, a todo custo – se quisermos ser um Mesmo (ser nós Mesmos) – aniquilar? História abjeta e feérica, sempre, a das profundezas…

Voltemos a meu fascínio e maravilha diante de Amarelo Manga. Da causa: era a primeira vez – desde ao menos o ciclo do Recife nos anos 1920, uma vez que não tivera acesso geracional ao ciclo do cinema super 8 nos 1970 – que não via Recife representada, mas ali, presente, enfim presente. E o que é um ser presente, um ser com uma aura indissolúvel e fremente, um ser infinitamente ali? É um ser que sofreu a ação, a contrafacção, a irisão, o bombardeio, o desvario de habitar um lugar e um tempo onde, nas palavras precisas de Durgnat, “coincidem uma reminiscência e uma percepção: a aura”. E acrescento um terceiro elemento, que talvez seja o elo mediatório entre os anteriores, aquilo que permite sua síntese de apercepção transcendental, nas palavras de Kant: o imaginário. Nada é realmente, para um ser simbólico como o homem, se não for, ao mesmo tempo e a posteriori, imaginado, revisto e rememorado. Tudo só é plenamente um tempo depois e re-figurado pela Memória (Musa das Musas na Grécia, aliás) e pelo trabalho das imagens, trabalho aliás que todas as noites os processos primários do inconsciente exercem durante o sonho, com o intuito justamente de transformar o conjunto de nossas experiências em uma constelação de imagens. O ser só se mostra absolutamente nesta encruzilhada dialética na qual o presente é revisitado pelo passado e burilado pelo imaginário. E o que faz a montagem no cinema, afinal, com intuito sequencial – ou seja: com o acréscimo de ordenar estas imagens passadas-presentes numa sequência que busque a totalização de seus elementos imagéticos num Telos, num fechamento do círculo – encantatório, demonstrativo, elucidativo, etc – no delineamento de um (vários, outros) sentido(s), cuja foz é o espectador? Assim, que meio mais totalizante (e diria muitas vezes totalitário) de restituir uma presença senão narrando-a? Afabulando-a?

Voltemos e voltemos. Recife, enfim, Presente: documentada, rememorada (em mim, que por tantas vezes fora percorrido por aqueles lugares, como Louis-Schefer pelos filmes que viram crescer sua infância); e finalmente imaginada, aqui em geral de forma caricata e paródica, mas deliciosamente idiossincrática, à disposição de um adolescente (que já não era, e aspirava a jamais ser): masturbada, cuspida, escarrada, vomitada, necrofilizada, xoxotada, enculada, endedada… uma fauna de clichês fetichistas e de poluções travestidas de manifestos “de refoulé” (“Já não aguento mais! Que porra é esta? Que merda de vida”) indicavam dois caminhos, recíprocos e complementares, que há muito nós, periféricos econômicos (não mais) e culturais, adoraríamos enfim fazer coincidir numa obra que tivesse na escatologia a aura gloriosa e des-sacralizante que esta teve nas girândolas panssexuais de Sganzerla, na demiurgia polimorfa-perversa de Glauber, na divinização do Negativo em todas as suas dimensões e frações que o cinema marginal celebrou…

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Amarelo Manga (2002), Cláudio Assis

Pensei reencontrar no cinema a minha cidade (fabulizada, ou seja: enfim, Recife presente novamente) e ao mesmo tempo estar tête-a-tête com um filme que diagnosticava o que há muito nós – habitantes de uma periferia esquizo do Brasil que falou francês desde os primórdios, foi sede e fonte de inauditas riquezas, foi palco de mise en scènes de decadentismo que não ficariam mal num Schniltzer, Wedeking, Visconti ou Astruc, e que hoje vivia aquartelada entre uma esquina vomitada e uma cagada – vivíamos. Esta Recife, mapeada e entomologicamente dissecada em Amarelo Manga, é uma cidade em franco estado de entropia, de ruína física e espiritual. Ambos os diagnósticos encontravam em mim um ponto de ressonância, de empatia e de fúria santa. Mas havia algo ali que desde então…

Freud reflete sobre a relação (mediação) fundamental de dois pólos constitutivos do psiquismo humano: o Logos (a Representação, geralmente a partir de uma imago, origem de toda elaboração mental) do que vivenciamos; e a pulsão, a energia vital ou mortal que investe nossos objetos de Desejo, tantos e tão indefiníveis, no espaço de um segundo. Em suma: a Boca e o Cú. O problema em Amarelo Manga é que, a rigor, deste constructo de que toda obra se nutre e se mata, só sobrou o Cú. Porque as brisas, os tráfegos-travellings-trânsfugas dos personagens (Dira Paes pintando a boca; Bloch ao som de Roger no carro que cruza a Marquês de Pombal; a velha em contra-luz na janela; Dunga a caminho da casa de Dira Paes para consumar a piccola misera tragédia que ordena e acaba por cristalizar as micro-narrativas do filme; o padre no concílio com os cachorros famintos; enfim, as digressões visuais e em voz off, aliás com textos de duvidosa qualidade literária) parecem pertencer a um outro filme.

Amarelo Manga é o típico filme doente que Truffaut identificou em Marnie, de Hitchcock (e não ouso comparar Marnie a Manga, pelo amor de Deus!). Filme doente é aquela obra que, por desleixo da montagem (imaturação – pecado de que padece um outro filme pernambucano, Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão), interferência do produtor ou incompetência do diretor em gerir o seu próprio projeto (no sentido existencial e formal) até o final, acaba por não dar certo. Virtualidades, potencialidades, “o filme que poderia ter dado em algo” permanecem à espreita aqui e ali, mas para o olhar paranóico – ou o olhar que, como o do paranóico, é ubíquo: o do crítico. Que espreita atrás e muito à frente, escaninhos e desvãos, à cata daquele Outro que finalmente vai levá-lo novamente junto a si (Lacan: “Le paranoïac, il ramène tout a soi” – “No paranóico, tudo remete a si”)… Enfim, do olhar que insiste em se concentrar no oxigênio dos travellings e i tempi andante de certas sequências que tentam salvar nossa experiência da cidade da lixeira e do necrotério – nossa experiência enfim, no meio daquele monturo de cores berrantes, cacofonias e pontos de vista “elos de cadeia causal de tese” com que o diretor tenta se intrometer entre nós e o filme.

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Amarelo Manga (2002), Cláudio Assis

Sequer aliás chamaria Amarelo Manga de filme doente, mas de filme na UTI, porque não chego a ver nas digressões com que o filme oxigena seu quod erat demonstrandun apocalíptico do ser “periférico, recifense e pobre” como uma base suficientemente bem assentada para enxergar ali resquícios ou indícios de uma obra “meio-acabada” ou “em potência”. A vitalidade quase carnívora dos personagens e a emoção de ver minha cidade enfim afabulizada, os choques e alternâncias de tom com que o filme parece querer mostrar-se, em um único e outro movimento, modelo inacabado de art house e diagnóstico terminal “do que somos” hoje são para mim indícios de condições contrárias das que vislumbrara a princípio.

Para começar, Amarelo Manga inaugura uma estratégia de chantagem, (exercício ilegítimo, porque não assumido, sub-reptício) de Poder e de cabotinagem de que há muito tempo não vejo espécime vicejar sobre o Brasil com tamanha envergadura. Explico-me: sua estratégia-mor, modulada ou gerida de forma mais ou menos congruente e talentosa ao longo dos três longas-metragens, consiste no que chamaria de mimetismo-terrorista. E Assis não está só neste cabotinismo, devo dizer, mas talvez nenhum diretor atual o pratique com tamanho método e senso de “profissionalismo”.

Do que se trataria o mimetismo-terrorista? Peguemos um exemplo até mais radical, e radicalmente perspicaz, um exemplo de uma outra categoria, com a qual depois poderemos cotejar o Mimético-terrorista; Travesti-mimético-dialético: o filme Petit à Petit (1970). Jean Rouch leva para Paris um conjunto de negros, habitantes de uma comunidade africana, e os encarrega de entrevistar os parisienses, seus modos de vida e de gestão da vida, seus prazeres e seus terrores, seu anódino e seu extraordinário… a câmera é quase-transparente – porque o tom do filme é “espertamente” jornalístico, embora os pontos de vista, entre pasmos e hesitantes, dos entrevistadores em relação a uma cultura “tão estranha” fiquem claramente delineados nas intervenções minimais que Rouch (fora de quadro) faz, ao indagá-los de suas impressões sobre os parisienses…

Petit a Petit, Jean Rouch

Petit à Petit (1970), Jean Rouch

Rouch ali não é um parisiense, não é um cosmopolita, um cineasta engagé, um antropólogo.. ele é aquele que habita o fora de quadro – como as câmeras, os microfones, a equipe de reportagem. Ele não pode estar no fora de campo, porque fatalmente interviria no processo – o fora de campo é o lugar da Significação, da Diferença temporal, do a posteriori que escava, viola, dirige o que se mostra no campo. Ele ocupa a legítima e legal posição (embora como ruse) daquele “objeto a” que Lacan identificou nas construções do Inconsciente: aquele que estrutura e ordena tudo, sem Aparecer propriamente, sem existir propriamente. Sob a cúpula de uma construção em aparência tão simples e diretiva, dialetiza-se um processo seminal, em que o fora de quadro vira o lugar de inervação das mediações técnicas (questão fundamental, já que fora a invenção do pequeno microfone Nagra, por exemplo, que permitiu, ao menos infra-estruturalmente, a emergência possível da Nouvelle Vague e do Cinema Verité); ao mesmo tempo, o fora de quadro adquire o status de um Fora de campo: Rouch é o Fantasma enunciador de onde tudo advém mas sem ousar dizer o nome; ele media, torna disléxica, parataxixa o tête-a-tête citadino e antropológico(fágico) entre parisienses e africanos, mas a rigor a sua transparência e neutralidade são impecáveis.

À transparência e neutralidade “interventoras” de Rouch (intervencionistas no sentido kantiano de “transcendentalistas”, estruturantes, pois o cineasta ocupa unicamente os lugares constitutivos da Representação no cinema: o Fora de quadro e, indiretamente, o Fora de campo), em Cláudio Assis temos o mimetismo-terrorista, técnica particularmente violenta de submissão/subsunção do espectador. A violência mimético-terrorista consiste em estabelecer uma série de atmosferas e personagens devidamente atiçados com o tônus expressionista e o pathos apologista – velhos aliados de sistemas de persuasão demagógico-alegorista, como o “Lohengrin” de Wagner, o Metrópolis (1927) de Lang, o Judeu Suss (1940) de Harlan, o Malombra (1942) de Soldati, La tour de Nesle (1955) de Gance, Os Deuses Malditos (1969) de Visconti – que esperam, a grossas pinceladas e frementes berros, a “terroristas” intimidações formais, familliarizar o espectador, custe o que custar (sobretudo com um entusiasmo demencial), com o que se vê, e o autor como aquele, como um daqueles entre os quais se vê, entre aqueles que se vê – em Amarelo Manga, não apenas a figura do diretor entra em cena com mais um proverbial leitmotif canastrão-demagogo (o pudor é a pior forma de perversão), como também todo o carnaval – da câmera, das posições dos personagens, de seus urros e berros – serve a manifestar, a cada contracampo, que os personagens (e, por que não, nós?) são (somos) as marionetes/teoremas do que a personagem de Cavalli, espécie de alter ego, enuncia no começo do filme: “Eta vidinha besta! Só se ama errado”. E dali não se sai. Django Livre, de Tarantino, é outra amostra recente desta estratégia terrorista, evidentemente com muito maior maîtrise formal.

O Poder do diretor como fonte da Enunciação e orquestrador da encenação – o Poder, enfim – é mistificado, e a única estratégia dialética a que temos acesso é a constatação de que, embora subversivo e marginal “como nós”, Assis detém o direito (e quiçá o dever) de falar por nós, já que cumpre a cartilha mais do que pequeno-burguesa do domínio das mediações formais – do ponto de vista, do travelling lento e central, dos travellings-trânsfugas, nos quais a Cidade enfim emerge como pano de fundo das figuras características de seu Bestiário -, enfim, de uma série de elementos que pertencem de direito não ao diretor, mas ao fotógrafo…

Nesse sentido, Febre do Rato (2011) é o acabamento – claro que com um domínio maior do ritmo, das transições, dos pontos de vista, do contracampo – deste “marginal que quer se fazer passar” por nós, mas que não passa da máscara da máscara de um diretor de fotografia qualificado. Mas eis o nó górdio ideológico, que transforma o enfant terrible em enfant gaté, que esteriliza e cobre de irrisão a persona pública do diretor, que a esta altura já não se pode distinguir de sua obra, visto que temos aí a terceira encarnação da demiurgia-messiânica modernista que assombra a consciência infeliz do cinema nacional – os outros dois sendo Gláuber Rocha e Rogério Sganzerla. Falei em nó górdio, nó que nem Alexandre, com sua espada indefectível conseguiu destrinchar, e que tem um caráter flagrantemente ideológico. Cláudio Assis põe em cena o marginal, o escroque, a puta, a bicha, os habitantes (habitados) pelas margens – enfim, todos aqueles udigrudis que nos encantaram com seu desencanto no cinema dos anos 1970, do Sem Essa Aranha (1970) à bicha currada em Os Monstros de Babaloo (1971); dos Messias pé de chinelo em Orgia ou o Homem que Deu Cria (1970) aos filmes de Candeias; de Câncer (1972) de Glauber a Copacabana Mon Amour (1970)…

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Febre do Rato (2011), Cláudio Assis

O fascínio é o mesmo, o menino intimidado na cadeira (eu, enfim) é o mesmo, o susto e o gozo do susto são os mesmos, a punheta é a mesma, o parricídio e o incesto entrevistos pela proteção de uma tela-cache de cinema são os mesmos… mas a transparência é a mesma? Sou eu mesmo este Eu que se desnuda no Eu do papel, aqui – quer dizer: aí? Os tempos são os mesmos? A quem assustam e fascinam aqueles monstros, a quem excitam e arrastam pelos mangues aquelas bucetas e paus (no meu caso), a que interdito somos enfim confrontados, em qual tabu somos sôfregamente violados – a que totem, com o horror das “vítimas“ da primeira violação que inaugurou o cinema (o trem dos Lumière), somos ainda amarrados, lancetados, vazados os olhos, arrancados os testículos, numa operação anamórfica-ritualística de que o mestre Fulci nos ofereceu o paradigma definitivo: a de que ser um espectador, antes da versão idealista-hipnagógica de ser um sonhador de olhos abertos, é ser antes de tudo a tabula rasa onde o sádico inscreve a sangue e urina, na carne consentante do masoquista, seu cúmplice e contratante, as indeléveis marcas de sua maldita presença? De uma maldição: ser aquele que recebe o Dom da Significação e da Presença?

Não, já não somos os mesmos. Nossa inocência se perdeu entre a Embrafilme e a corporação dos projetos. A boceta xerocada de Nanda Costa em Febre do Rato é a imagem-arquetípica de Amarelo Manga: um filme pálido, exausto, semi-putrefato (no máximo), demencial à custa de cansaço… como os sádicos que Sade nos apresenta em “Os 120 dias de Sodoma”, e que, na justa medida de sua exaustão, fodem e fodem, num ritual auto-expiatório do que já não podem… talvez porque o cinema que Assis tenha na mente e os meios de que se sirva já não nos sirvam mais – ao menos com os propósito mimético-terroristas de que se serve -, já seja um cinema que chegou tarde demais… Os maneiristas deram uma solução a isto, Godard idem, Kluge idem, Otto Muhl e Kurt Kren idem, Saraceni. Mas Assis parece apegado demais a suas punhetas do final dos 1970, aos primeiros comparsas de bares dos 1980 para ver o que o Príncipe Luis II da Baviera (em 1865) não viu, e isso lhe foi fatal: que ele, que se sonhava um príncipe merovíngio, um fantasma medieval, atravessando o Como à noite, vivia a época da Realpolitik, a época do Segundo Reich, dos Birmarck e futuramente dos Himmiler…

Ao contrário dos maneiristas, Cláudio não soube dialetizar este deságio entre o tempo subversivo no qual parece ainda habitar e o tempo corporativo, apático e mass media para o qual temos de achar outras soluções – outras perversões, outras dissensões, outros monstros… Vejamos Febre do Rato: o talento é evidente, o aprimoramento do esboço onívoro (em dizer e em mostrar tudo o que não se viu de Recife em 70 anos) de Amarelo Manga está muito melhor mediado, justaposto, aparado, urdido; um filme elegante, na justa medida entre o que se vê e o que se vela – a justa medida do grande cinema. Há um plano-sequência que me parece belíssimo, quando acompanhamos a negra requebrando os quadris, espraiando pelo plano-sequência a sequencial exuberância de alguém finalmente presente – enroscando-se, retraindo-se e projetando-se, ninfa e deusa iorubá, metamorfoseando-se – e sobretudo , cumprindo a grande lição clássica, que para mim é a grande lição de cinema: encobrindo com uma carne e um tempo uma linha geométrica, um traçado longitudinal, uma estrutura. Velho truque renascentista que serviu – e eis a necessidade de toda genealogia – a uma arte tardia, votada à técnica e aos arquitetos. Mas que os artistas souberam usar – dar um valor de uso, um desvio dos fins, como Deleuze chamou a perversão.

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Febre do Rato (2011), Cláudio Assis

O corte que Assis infunde ao barato da deusa serpenteante é índice de algo característico: em Febre do Rato, é preciso cortar porque é preciso narrar.-, a qualquer custo. Mas narrar é aqui, como em Amarelo Manga, índice de demonstrar. Narrar, para ele, é sinônimo de demonstração. Há um filme a se terminar, há mediações ideológicas a implicar (por mais chanchádicas e dionisíacas, “nossas” com que se travistam), há um manifesto a agitar ao vento, há um poeta a se sacrificar (a Cidade martirizada em Manga agora adquire um Messias à altura), há corpos a se desnudar para provar que precisamos nos desnudar – de todas as cadeias e mediações que parecem ser justamente as que Assis celebra, já que cumpre paradigmaticamente o percurso demonstrativo desta estrutura menos do mais… O ritmo, o plano-sequência, os personagens que tanto nos têm a silenciar e gritar, a figurar e anaformizar (Maria Gladys, sublime sereia pós-pós) – são os verdadeiros Messias crucificados pela necessidade a priori de um martírio “embalado para presente”, pensado e montado “apesar do filme”.

A xoxota xerocada de Nanda Costa é, não um índice, mas uma “bandeira”, no sentido popular: é preciso concluir e propor, é necessário divulgar e persuadir, é absolutamente indispensável matar o filme em nome da Idéia – uma versão particularmente original da noção de sublimação em Freud (em que um objeto de desejo que nos é interdito é substituído por outros mais elevados, menos imanentes, mais ideais) tem aqui sua ilustração, mas já não teria desde Amarelo Manga (deixo Baixio das Bestas para um “segundo parênteses”)? Se não fodo a boceta, fodo o mundo com minha Ideia. E que se foda também o fato de que este mundo já não precisa de minha Ideia, de que este povo necessite de outros heróis (“Pobre do povo que precisa de heróis, Andrea!”, lembram?), que se foda a platéia que vive um outro espaço e um outro tempo e que necessite de outras soluções estéticas (e em cinema, arte do ponto de vista, isto implica necessariamente em soluções éticas e ideológicas, mas isto não se “clama, impõe e exclama”, pois um grande artista sabe disso em surdina, e consegue burilar meios de inserir organicamente estes espinhos supra-estruturais nas vértebras da obra).

Minha impressão é de que Assis chegou tarde demais e, embora tenha talento, não soube encontrar meios de estar à altura de nossa época, de nosso Desejo e Necessidade, de nossa infra e supra-estrutura – enfim, de nós, e eu me incluo novamente naquele menininho (agora horrorizado) que voltei a ser com o final escandalosamente demagógico do Poeta martirizado nas águas do Capibaribe… A sua Revolução passou, mas o cara perdeu porque tava fumando maconha no quintal, voilà!

Febre do Rato é um filme completamente natimorto – apesar de golpes de gênio aqui e ali, como o uso do plano-sequência, as pontes fotografadas em xilogravura, as “soirées” de bamba de Gladys e Angela Leal, soberbas como sempre e tão mal aproveitadas – porque idolatriza e crê não no cinema, mas numa Ideia de cinema. Mas é uma Ideia defasada, uma ideia que já não é presente, uma Ideia que paira num tempo e num espaço que já não nos diz respeito – do modo como foi feito pelo menos, pois há mil e um tratamentos de fora de campo que possibilitariam a infiltração dos hippies, do udigrudi, do idealismo beira de calçada e outros ismos no século XXI, se um trabalho neste sentido fosse feito… É um filme acadêmico, porque fala de um tempo morto como se fosse nosso – em vez de, como os grandes filmes, fazer presente o passado, presentificá-lo: “Effie Briest”, La Frusta e il Corpo (1963), Senso (1954), Othon (1970), A Mocidade de Lincoln (1939), A Inglesa e o Duque (2001), Joanna d’Arc de Rossellini (1954)…

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Mas façamos o referido parênteses para Baixio das Bestas (2006), filme que parece apontar caminhos e retrilhar com felicidade outros. O filme é, antes de tudo, uma experiência de exílio e deslocamento: da Cidade para o Campo, do olhar que manipula e discursa para o que contempla e inquere. Há uma extensa bibliografia tentando provar que as diferenças entre Lumière (mostrar, documentar) e Méliès (artifício, mise en scène) são mais superficiais do que se julga a princípio, mas eu prefiro ficar com a assertiva lapidar de Godard, quando diz: “Os filmes de Méliès são documentários sobre representações teatrais ou Féerie, gênero de teatro muito popular em Paris dos anos 1830, antes da popularização da ópera”. Em Baixio das Bestas, Cláudio Assis encontra um meio (de cultura, de contato) para dialetizar estas instâncias, e fazer da neutralidade entomológica de Painlevé a plataforma sobre a qual se assentam os “desvios e desníveis” perversos dos filmes mexicanos de Buñuel, infiltrando-se em melodramas de gênero para, em migneur e devagarinho, ir minando-os de dentro, aos poucos, como a cocaína à célula benfazeja… até que a heroína frágil acaba por comer os homens de toda uma família (Susana), o herói do capitalismo ascendente e exemplar (El), estigma acabado do pequeno-burguês, acaba por exemplificar o paranoico paradigmático – aquele que “ramène tout a soi” segundo Lacan – aquele para quem a Mulher, a comunidade, a Igreja são unicamente meios (ênfase na dimensão materialista, infra-estrutural, pois em 1957 Buñuel já anunciava o Inconsciente do Anti-édipo de Deleuze e Guattari) para avantajar a sua demoníaca vontade de potência.

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Baixio das Bestas (2007), Cláudio Assis

Em Baixio das Bestas, Recife, velha e arruinada experiência do Inferno, toma de assalto (exila, expropria e desapropria) o sertão – lugar de Revelação, da Contemplação mística e da ascese, da comunhão e do Sunsun corda – como em todo mito e arquétipo, desde Moisés no Sinai às provações de Cristo sob o império do Diabo. O Deserto – e, não por acaso, as vivências eminentemente espirituais dos personagens de Guimarães Rosa se entrincheiram neste lugar in extremis, lugar onde coincidem o Cronos e o Kairos, o Tempo cronológico e a Eternidade. Quando a grande epifania cristã reside na Ressurreição, já sabemos de seu introito, do In hoc signo vincis (dístico que representa a conversão de Tertuliano ao cristianismo: Por este signo – a cruz – vencerás) que a anuncia: “Deus habita agora o coração do homem”. E sabemos com ele que a experiência primeva e última do deserto foi fundamental para esta Revelação, para esta radical subjetivação do Divino que distingue notadamente o cristianismo do judaísmo, Deus jurídico e comunitário…

Este deserto expropriado e violado por esta imanência monstruosa que é índice indissociável do cinema de Assis – Só se ama errado! É o cheiro da podridão do mundo! -, no entanto, permanece preservado por uma espécie de véu de Maia. A distância do cadre em relação às presenças, o justo ajuste do plano-sequência (em funcional, nem estertórico) ao que se mostra, a iconicidade incrustada no seio da degradação (a visão-aparição da neta do avô corrompido, que repete aqui em surdina o “Nogli me tangere“ de Cristo, pouco antes de ascender, a Maria Madalena)… tudo aqui indica uma cisão, uma separação, uma Diferença. Assis não filma os seus monstros e deserdados com os toscamente expressionistas (toscos porque excessivamente auto-complacentes, ciosos e gozosos de si e dos outros) meios com que identificava nós a eles e a eles ao filme e mergulhava a todos na mesma lama, com o parêntese de que a lama que o diretor habitava possuía um status de controle e soberania muito superior ao nosso, embora isto não fosse dito. Aqui, se instaura de fato e de direito um espaço de distância onde a fábula, o documentário e o olhar do cineasta não se confundem, e onde a nós é dada finalmente a liberdade de transitar (e transfugar, intransitar, excitar e ascender) de uma dimensão a outra. Não há (ao menos de forma evidente, como nos dois anteriores) interesse soberano em demonstrar ou manipular, mas em recuperar aquele velho ofício (e arte, assim como produto, tem no grego poiésis a mesma origem em artesanato, no ato de fazer emergir um sentido ou uma experiência invisíveis numa obra) exemplificado por Godard quando, em algum trecho do História(s) do cinema, ele nos mostra a decupagem inicial de Greed (1924), de Stroheim. Um plano para cada coisa, cada coisa em seu tempo e em seu espaço, cada tempo e cada espaço em seu mundo: na decupagem de Stroheim, a irredutibilidade entre as coisas (e seus respectivos espaços-tempos) dá a precedência ao mostrar do plano sobre o narrar da sequência – e, ao enfatizar as coordenadas do plano sobre a sequência, Greed difere retrospectivamente a história aventuresca, sequencial e “diretiva” do olhar do espectador que foi a história do cinema clássico americano numa história outra, onde a “Primeira vez”, o “surgimento”, o desvelamento, a observação desinteressada (Kant novamente), e finalmente o olhar do espectador possui um lugar ativo no plano – e a coisa, protegida em seu espaço-tempo inaugurais, instaura uma cratera de Dom na consciência do espectador.

Num outro diapasão e com outros meios, Fritz Lang (no entanto, identificado como o mestre da manipulação do ponto de vista, juntamente a Hitchcock), com sua repartição dos planos para investigação (notadamente no Testamento do doutor Mabuse, e em M – o Vampiro de Dusseldorf, seus dois e primeiros filmes falados mais experimentais), e dos objetos a serem investigados pelo Comissário Lohman, acaba por reencontrar esta precedência do plano sobre a sequência, e por fixar, na vivência perceptiva do espectador, que o cinema é antes de tudo uma arte na qual se ordenam, repartida e sequencialmente, trechos do mundo… que esta talvez seja a arte mais originária (ontologicamente) que se possa imaginar, apesar de tão tardia, apesar de ter chegado depois de tantos domínios técnicos… Por que? Porque se o pintor tem à sua disposição todos os meios espirituais para a confecção de sua obra (tem os meios espirituais à mão, ou seja: na própria cabeça), no entanto, para fazer Deer Hunter (1978) Cimino teve de implodir minas, avançar com a equipe sobre uma montanha para caçar veados, ou seja: transtornar e afrontar a matéria do mundo, e enfim vencê-la. No cinema, o mundo vem antes, o homem depois. E, quer seja de forma diligente e violenta, quer seja de maneira inquiridora e entomológica (como em Baixio das Bestas, Terra sem Pão de Buñuel, India de Rossellini), este confronto agônico tem no plano o seu ponto de partida (e quiçá de chegada; de fonte e foz).

Vamos a alguns exemplos. A relação figura e fundo, que vem acompanhado, não sem polêmicas cognitivo-gnosiológicas, a história da Arte ocidental, aqui é fundamental. Ela assinala distâncias, perspectiva, centraliza e verticaliza, ela sobrepõe e difere, estabiliza e desequilibra, dinamiza e arquitetura a obra de arte, em sua história. A menina sentada de fundos para a câmera, esperando o Ônibus, ou distanciando-se no fundo da estrada (no cinema, o tempo torna ainda mais complexa esta relação); a belíssima sequência, em plano geral, em que um caminhão que sai do plano pela direita é substituído, ao cabo de alguns segundos, pela Kombi que advém pela esquerda… os planos médios frontais, entre “caras de pau” e cirúrgicos, da cena em que as putas se desnudam; as digressões entre os velhos e as putas – mero e insubstituível instância de presença, elegante e misericordiosamente elididos, os comentários off poéticos, restritos agora aos diálogos – secos, esqueléticos, presentes, lavrados no cartório dos corpos; a caracterização dos personagens, restrita aos planos médios e à profundidade de campo (cena em que Natchergale conclui para a câmera: “é que no cinema tu pode fazer o que quer”), urdida agora com gestos e movimentos de corpos, semântica e sintaxe irredutíveis ao cinema, substituindo a barafunda de Living Theatre com pastoreio lisérgico que povoam Amarelo Manga e Febre do Rato.

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Baixio das Bestas (2007), Cláudio Assis

O tom e a medida certa – na distância da câmera e dos personagens, dos tempos e dos corpos que os tempos transbordam-, e sobretudo esta transparente divisão entre o demoníaco dos personagens e a soberania significativa do diretor (ordenadora, orquestradora, detentora dos poderes de conhecimento com que Jean Douchet caracteriza a mise en scène de Losey). Assis assume seu Poder e seu Saber, desnuda suas potências de demiurgia e expõe seus limites, comme il fault, ao se desnudar: um quê de retórica e de metáfora evidentes aqui e ali (o buraco como “foz” do Apocalipse iminente).

É impossível a um cinema da crueldade como o de Assis não usar como meios a neutralidade, a distância, a inquirição e observação desinteressadas; o Divino marquês já nos ensinava a lição: suas enrabadas e chupadas eram antes de tudo laboriosas construções newto-kantianas, pirâmides de corpos nas quais o Desejo se concentrava e sublimava no esquema transcendental da Figura; quando do estupro de Dora, o teatrinho de sombras que precede e origina o cinema intervém – e há meio mais adequado para encher nosso corpo de terrores, tanto mais inadmissíveis porque povoados de desejos interditos, porque cruel e sub-repticiamente identificáveis, a contragosto e Logos, com aqueles animais?

Crueldade, consciência, é lucidez; é um instrumento de conhecimento, não de manipulação ou de identificação. Quando Buñuel filmou Las Hurdes (1933), representou seus fetiches da forma mais distanciada que lhe era possível: como um ensaio antropológico-entomológico, no qual bichos, crianças e serras adquirem o mesmo e indiferenciado status de istmos de presença a serem inventariados… a uma certa distância, sempre. O cinema nasceu e agoniza como uma arte cruel – uma experiência do conhecimento, da observação e da inquirição que se exerce sobre a imanência. Da fascinação e do epifânico igualmente, mas uma coisa não exclui a outra: a cena da morte da escrava, mordida pela cobra no Tigre de Bengala (1959), é uma lição paradigmática desta possível e lúgubre síntese… ou da morte da criança, mordida por uma outra cobra, no Rio Sagrado (1951) de Renoir: tudo parecia transparente, escorreito e sereno – qualquer e causal, documental… até que uma cobra, tão qualquer e causal quanto tudo o que jaz sob a Natura, morde e mata a criança… nada de mais natural. Nada de mais cruel e perverso igualmente, já que aquilo fora representado para uma câmera, o que torna as coisas ainda mais complicadas.

Las Hurdes

Las Hurdes (1933), Luís Buñuel

Um filme em que esta síntese me parece apresentar uma faceta ideal (embora nem naturalista nem impressionista, como em Rio Sagrado) é O Medo (1954), de Roberto Rossellini. Um cientista desconfia das traições da mulher, contrata uma outra que passa a chantageá-la. A mulher é perseguida a tal ponto – pela chantagista, paga pelo marido, e pala câmera incansável que frequentemente a acossa e entrincheira contra os becos sem saída do campo – que acaba por tentar se matar. O toque expressionista do clima paranóico do filme está na profissão do marido, um investigador das ciências naturais; a mulher para ele se transforma num objeto a ser inquirido, em um ser para o qual são criadas condições ideais para reprodução em laboratório (o filme). Mas Rossellini consegue, alternando o tom esquelético da estrutura do filme e a labirintite expresssionista da câmera (em aparência, sem ponto de vista), engendrar um filme de horror feito com os restos das usinas e câmaras de gás do maior empreendimento de crueldade lúcida (tautologias à parte) de nossa História: Treblinka, Dachau, Auschwitz…

Aqui, Assis encontrou o seu próprio modo de crueldade, feito de alternâncias entre murmúrios e berros, distâncias e furores pulsionais, Contemplatio e Inquirição cerrada. Heidegger tem um termo determinante em seu pensar, termo muitas vezes mal entendido porque mal contextualizado, apreendido sem as chaves de leitura necessárias: é “o passo para trás”. O passo para trás é uma retomada das Origens, geralmente a partir de um presente inóspito, difícil. Mas não é uma retomada nostálgica ou retrógrada, reativa ou reacionária: uma mera reação ao que nos destrói hoje. Justamente o contrário. Trata-se de revisitar o passado para desencavar (genealogicamente) uma dentre tantas outras possibilidades de ser e de agir no mundo, possibilidades que foram encobertas pela História, pelo ser e pelo agir que somos hoje, e assim achar um outro caminho para um outro (possível) futuro… Em Baixio das Bestas, Assis deu o passo necessário para trás (as origens contemplativas e inquiridoras do cinema) e para fora de si (chama-se ês-tase isto) e nos deu, senão uma obra-prima, um belo filme. Uma esperança paira no ar – senão, um possível; vamos ver se estará um dia à altura deste pássaro de Minerva que volteja sobre os auríferos escombros de Baixio das Bestas

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