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Meu coração está perdido em sete bocados

“Os anjos, pelo som da voz, conhecem o amor de um homem; pela articulação do som, sua sabedoria; e pelo sentido de suas palavras, a sua ciência”. A frase de Emanuel Swedenborg recitada sobre a tela preta é o preâmbulo que abre Correspondências, um mote que serve de alicerce às experimentações de Rita Azevedo Gomes. Inspirado nas cartas trocadas entre dois poetas, Sophia de Mello e Jorge de Senna, entre 1957 e 1978, durante o exílio dele do regime salazarista, o longa-metragem tem como dispositivo realizar um conjunto de operações justamente na pronúncia da fala, na incorporação do texto pelo corpo do ator, na expressão do dizer e nas múltiplas maneiras como a palavra vêm à tona. Basicamente, um filme que opera na misè-en-scene do texto.

Isto poderia não significar muito, visto que quase todo o cinema ficcional é de alguma maneira perpassado por operações sobre um texto que lhe dá origem. Mas aqui o problema, além de se tornar transparente e centro das atenções contra a opacidade tradicional do clássico-narrativo, ganha duas dimensões que raramente vemos colocadas em jogo, criando um tipo de experiência deveras singular. A primeira delas é que, a rigor não há uma narrativa diegética. O pouco de trama que existe é conduzido única e simplesmente pela leitura das cartas. O que o filme exibe é uma quimera de múltiplos registros em caráter de esboço, que vêm de lugar nenhum e não vão para lugar algum, algo próximo à espectralidade derridadiana, rastros nem vivos e nem mortos que fogem à dialética metafísica, pedaços reunidos mais por um sentimento ou memória que os perpassa que pela lógica linear e evolutiva. São quadros de entrevista, encenações de declamações, leituras dramáticas, offs sobre paisagens nebulosas, diálogos entre personagens, sketches de cena, imagens de arquivo reais ou simuladas, making ofs, sons radiofônicos, sobreposições, etc. Todos sem um encadeamento evidente entre si, conduzidos unicamente pela leitura das cartas, de modo que cada uma destas imagens isoladas se coloque como um exercício, experiência ou prática da diretora em investigar as muitas possibilidades cinematográficas de dispor corpos no espaço, de entonação e movimentação. Um trabalho de perscrutar à cada instante novas possíveis formas de composição e declamação das cartas.

São fragmentos que, como as cartas, acontecem em lugares e tempos distintos, ora evocando, ora não, aquilo que está sendo lido no texto. Mas que, sobretudo, reúnem-se por suas afinidades ou correspondências (como o título faz menção) uns com os outros, do mesmo modo como Sophia e Jorge se reconheciam à distância, há anos sem se verem. As imagens, assim como os dois poetas, se reconhecem no tom de exílio, isolamento e busca por liberdade, no humanismo sem pontos de contato com o mundo exterior, dominado pelo pragmatismo e pelas muitas formas ditatoriais de totalitarismo. “Por nós, por ti, por mim, falou a dor”, diz uma das citações. A forma expressa o conteúdo em um dispositivo cinematográfico hiperbólico que tende ao infinito ao à repetição, expandindo-se à partir deste único centro propulsor, criando uma multiplicidade que nasce de um uno – o uno como sentimento comum que transforma todas as coisas longínquas em correspondentes, todas as leituras como visões do mesmo. Que, enfim, transforma todos estes registros isolados em uma obra de arte.

Essa lida com o texto remete ao trabalho de Bressane na última década, embora aqui haja mais preocupação com a fidelidade e menos subjetivismo. Também com a tônica de um Moscou, de Coutinho, em sua procura pela expressão de uma força amorfa em registros aparentemente banais. Com a liberdade operacional de Miguel Gomes em relação ao clássico Mil e uma Noites, embora aqui a preocupação de desvendar uma Portugal contemporânea, múltipla e vívida seja substituída pela necessidade de lidar com o vespeiro de sua herança cultural. Porque, em certos momentos de Correspondências, fica evidente que o esforço de Rita Azevedo Gomes é também por narrar os escombros de uma ideia de nação baseada no uno.

É neste ponto que nos vemos diante da segunda dimensão que o filme abre diante do problema da dramaturgia do texto. Isto porque muito do imaginário cultural português é fortemente povoado pelo classicismo, pela reverencia à literatura como forma artística superior, pela palavra como suporte da poesia; uma estabilidade dos elementos que faziam anos João César Monteiro combatia. E, aqui, Rita Azevedo Gomes confronta o modo tradicional da declamação e composição, lançando ambas ao abismo do sentido, ou melhor, procurando fazer com que tornem-se o invólucro desta experiência de ruína. Trata-se de, através dela, libertar um sentimento de esfacelamento, de multiplicidade, para que uma nova forma de unidade, menos hirta e autoritária, possa ser procurada.

“A dor é evidente quando liberta”, recita uma das personagens na sequência final. A proposição não é uma superação da literatura por um cinema como a arte total de Canudo; e, não à toa, Correspondências é pontuado por um esforço multimídiatico tremendo, recorrendo à música e à pintura, por exemplo, e apontando o cinema como mais um veículo de expressão artística, capaz de estilhaçar os grilhões de uma tradição hirta, na qual quiçá o próprio salazarismo se baseou, que sufoca o esfacelamento da identidade de uma nação e procura impor a imagem do que ela deve ser. Entre os escombros, uma nova forma mais liberta de unidade talvez possa ser encontrada para que, assim, a própria ideia de Portugal seja efetivamente reinventada.


No dia 13 de Abril às 18h30, a Sessão Cinética exibe Correspondências, de Rita Azevedo Gomes (Portugal, 2016) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Correspondências será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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