Educação Sentimental (idem), de Julio Bressane (Brasil, 2013)

dezembro 20, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Paulo Santos Lima

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Fugir do sono eterno
por Paulo Santos Lima

O oceano sumiu, constata o plano inicial de Educação Sentimental, com a câmera descendo do céu à terra e avistando uma piscina, versão artificial e domesticada desse mar. É uma situação estranha para o cinema de Julio Bressane, cujos trabalhos, dos antigos aos mais recentes, como Viola Chinesa (1977), Brás Cubas (1985), Miramar (1997) e Cleópatra (2007), quase sempre conferem à imagem oceânica uma presença fundamental, de origem e de agulha orientadora da ação – a ação cinematográfica, presente na bela cartografia visual que singulariza a arte de Bressane e que também recupera uma outra ação, bem maior e fundamental: a da História do Homem. O clássico, esse original que dá conta de representar o estar no mundo do homem, e que é uma presença no cinema de Bressane assim como as águas marinhas, também coincide com esse oceano, pois é dele que se extraiu uma estética a ver com a aventura da descoberta, essa na qual o homem descobre o mundo e, por consequência, saca mais sobre si e seu lugar neste mundo. Graças a Bressane, o oceano pode ser a grande rótula que o movimento da vida e sua representação pelo cinema. Uma relação sensorial, sentimental, espiritual. E, diante daquela piscina e sua água morta de tão parada, Educação Sentimental anuncia qual será a grande aventura: ir ao fundamental de nossa cultura, ao nosso conhecimento, às origens, para ensinar a lição mais difícil, porém mais existencial: sentir e perceber as coisas, por conseguinte flutuar e descobrir a razão sem perder a emoção. É educar, e não reeducar, pois não há nada, nenhuma sensação e constatação, desde que o sono eterno tomou conta dos seres.

O grande herói dessa epopeia é a professora Áurea (Josi Antello), que surge à direita do quadro nessa primeira tomada do filme e avista Áureo (Bernardo Marinho), que flutua na piscina, descansado em sua ignorância e ingenuidade tão típicas da juventude, e que será ensinado, ou seja, convidado a se aventurar no mundo, conhecer, sentir, perceber e se situar no cosmos. Bressane é um universalista, no sentido de perceber (mais que compreender, perceber mesmo) as coisas junto a uma história geral, numa duração que relaciona a origem à condição. Áurea faz parte desse todo que reúne vários específicos, e nessa lógica as coisas ecoam, espelham-se além do tempo e do espaço, como as porcelanas francesas do século XVIII e suas flores delicadamente pintadas com as quais ela consegue acender mais a sensibilidade ao rapaz, que reconhece ali o belo através do tato e da visão. Trata-se de uma experiência sensorial, mas emocional e existencial.

É dessa relação entre os objetos, inclusive em sutilezas como duas vogais, “a” e “o”, estabelecerem uma profunda distinção entre professora e aluno, mulher e homem, sedutora e seduzido, sabedoria e descoberta, Áurea e Áureo, que o filme firma bem uma certa ideia de movimento, de dinâmica de olhar, deslocamento, busca, gesto, respiro, contato físico, luz, sombra, cores e texturas. Um movimento como o das águas oceânicas. E capturado pelo cinema. Nesse entrosamento cósmico, Educação Sentimental não deixaria de transitar pelo cinema. As escrituras, a história da arte, as grandes narrativas da era clássica, a física, a óptica, a anatomia, tudo isso reverbera como cinema. Há a básica recriação tão característica das artes, como ilustrar, por exemplo, uma passagem mitológica. O mito grego de Endimião, tão belo que é admirado por Zeus e torna-se objeto de desejo de Selene, a Lua, encontra projeção no casal Áurea e Áureo, na imagem encenada por Bressane com seus dois atores. Este mito versa sobre a beleza, passa pelo poeta John Keats, que morreu jovem e que, por isso, poderia ser mais outro dos escritores fantasmas citados por Áurea.

Essa fluência entre objetos e ideias é o que o cinema de Bressane faz há tempos, dentro dessa base universal: apresentar as coisas fora dos espaços fetichizados dos museus ou dos livros que são lidos como recitais morféticos, mostrá-los junto ao mundo (no mar aberto que bate livre na costa continental, e não numa piscina), trazê-los da redoma à casa. É voltar ao momento da descoberta, do encantamento com o primeiro encontro, e não com a domesticação e controle da experiência. É repetir o que os cientistas fazem a cada feito, a tal ideia da aventura, de pegar na mão e descobrir a vida, como Áurea faz com Áureo. E como Bressane faz conosco, quando faz um milagre conhecido do cinema mas nem sempre executado à perfeição de recriar o que já foi.

Graças a Josi Antello (atriz que dá à personagem Áurea um corpo que coloca em cena uma beleza suprema – a das grandes esculturas da Antiguidade, a das pinturas pós-renascentistas, a da arte moderna do início do século XX e até mesmo da mass cult das pin-ups pré-arte pop), é possível reencenar uma história esquecida. Josi é todo um universo: o da comédia e o do drama, de formas e linhas geométricas, e também matéria carnal e sensual, do amor platônico ao sexo selvagem, do real feminino ao ideal universal. Áurea pode dançar sitiada no Tabu (1931) de Murnau, ensinar lógica, ser a Salomé de Oscar Wilde na versão cinema mudo, servir a um experimento óptico-auditivo, emprestar seu corpo para nossos olhos adormecidos encontrarem a paixão e o encantamento.

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A Áurea de Josi Antello é um invento cinematográfico que habita a tela, dá movimento às coisas, chama para percebermos o belo, a harmonia, a dança e a luz. É uma convocação para estimularmos os sentidos – sentidos, sensações, sentimentos. Em dado momento, ela inclusive diz que “hoje é obsceno ser sensível”. O tom é o da resistência, bem mordaz e genioso, como sempre foi no cinema de Bressane, mas está claro que há mortos caídos no caminho, inclusive o mar, cuja única aparição neste longa é ligeira, jogado a escanteio no fundo de um plano, inacessível, sem o usual moto das ondas que Julio sempre gostou de capturar.

Nesse exílio do mar na tela de cinema, a crise está junto à perda de sensibilidade – inclusive de sensibilidade fotográfica (cinematográfica). Áurea faz um precioso adendo à aula para apresentar ao seu aluno amante um item que já fora apaixonante: a película. Apaixonante e imprescindível para roubar algo do mundo, e que agora é um “item em extinção”. A película enlaça toda uma situação contra a qual esse filme tão amoroso se coloca, pois era uma outra relação que o cinema capturado e projetado em 35 mm (8 mm, 16 mm etc.) estabelecia com o mundo. Uma relação mais sensorial, mais pedinte de uma certa abstração e elevação de espírito do espectador para sentir os grãos projetados na tela, uma maior gama de cores e volumes, uma estética mais a ver com a pintura do que com a máquina. Educação Sentimental foi dos raríssimos filmes exibidos em película na 37ª Mostra Internacional de Cinema, em outubro e novembro agora. Julio Bressane não é um fetichista, e é um pensador com senso histórico para saber que o digital é uma realidade indesviável. Mas, ao contrário da película, que parece sentir melhor o movimento das águas marinhas, a tecnologia digital ainda pena em capturar e reproduzir com certa dignidade a dança mágica dos litros oceânicos, deixando seu ritmo e cores esquálidos, senão falsos. Em Educação Sentimental, o ponto é abrir o espírito para o mundo, conhecer onde estamos para reconhecer quem somos, negar esses tantos pontos zeros que são colocados na história – na nossa grande narrativa, iniciada lá atrás, bem antes da descoberta do fogo ou dos navegadores procurarem a si na grande aventura pelos mares.

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