As 1001 Noites, de Miguel Gomes (Portugal/França/Suíça/Alemanha, 2015)

janeiro 25, 2016 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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Remissões do presente
por Pedro Henrique Ferreira

Em “Tudo e Nada”, parábola de Jorge Luis Borges, Deus consolava Shakespeare dizendo a ele que sonhou o mundo como o artista havia sonhado a sua obra, e que, neste mundo, estava justamente ele, o artista, que era ao mesmo tempo muitos e ninguém. Tinha muitas faces, e no entanto nenhuma. Na leitura do historiador Hauser, o poeta inglês foi a égide do maneirismo literário, para quem “somente Cervantes pode ser posto ao lado”, graças à sua multitonalidade, à sua propensão sem fascínio às convenções. Foi justamente esta frase de Borges que foi escolhida por Leos Carax para o prefácio do release de seu mais recente longa-metragem, Holy Motors (2012), não somente por uma adesão do diretor francês ao suposto maneirismo cinematográfico, mas possivelmente por conta de sua percepção de que os muitos passados se tornavam aos poucos máscaras que escondiam cada vez mais o rosto do protagonista, que a história se tornava eventualmente grilhão, fardo. Diante deste panorama, a grande crise oitentista era a crise de inspiração (ou de temas, para ficar com Bergala); a grande busca, uma procura de si mesmo.

Não é que As 1001 Noites sugira em princípio alguma filiação. Diante da geração oitentista e seus dilemas, Miguel Gomes é no máximo amaneirado. Mas há uma certa importância, inclusive para sua apreciação, em situar historicamente seu cinema frente a um panorama mais amplos das artes, perseguindo, para o bem ou para o mal, justamente a sua contemporaneidade. Porque ser contemporâneo não é um estado fixo, mas algo que se constrói a cada instante. Diferente do caminho perfilado, por exemplo, por Hou Hsiao-hsien ou Claire Denis, o de Gomes parece herdar mais a mesma crise de inspiração de Carax e sua geração. Ainda que haja uma diferença bruta – diferença de idade, que nos lembra a relação entre um velho, sábio e cansado, e uma criança, jovial e inconsequente – e uma diferença de respostas, embora recorra também ao passado, eventualmente também a Borges.

As 1001 Noites, como outros filmes do diretor português, sugere em princípio a metalinguagem. Nos momentos iniciais, o diretor aparece em cena fugindo à responsabilidade de fazer um filme por não saber como, por se sentir incapaz ou inapto. Sentado em uma mesa tomando café, encontra uma brecha e foge. O mesmo motivo já presente em Aquele Querido Mês de Agosto (2008) reaparece: como na crise oitentista, o que está em jogo é a falta de inspiração, a exaustão da narrativa diante de um mundo em convulsão, o desejo de escapar a toda a responsabilidade que lhe é imbuído. Enquanto no filme de 2008 o produtor iria persegui-lo em uma casinha no interior, onde montava peças de dominó para os supostos créditos do longa-metragem, aqui o diretor é capturado e enterrado na areia até o pescoço junto de outros dois membros de sua trupe, e é conduzido a recorrer ao compêndio de histórias árabes como forma de se salvar. Forçados perpetuamente a narrar, a Sherazade de As 1001 Noites é como o Levant de Holy Motors: ambos reflexos da condição de seu realizador – ele, forçado a vestir mil e uma máscaras a cada manhã; ela, a contar uma história a cada noite.

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Mas a diferença brutal talvez esteja naquilo que perseguem e como reagem a este drama. Um maneirista oitentista procuraria meios de reinterpretar uma tradição à qual chegou tardiamente, encontrar-se e inserir-se como artista nesta tradição; imitando, porém deformando, o modelo. O cinema, seu cinema, seu estilo, são fruto de e destinados à história das formas e das imagens, uma corrente artística, cultural e espiritual mais ampla. A meta é de certo modo descobrir seu próprio rosto, ou, no gesto de procurar seu próprio rosto, desvendar o mundo. Por outro lado, o cinema de Gomes persegue o mundo, e não a si mesmo (encontrar a si mesmo pode ser consequência). O que importa não é o elã vital das correntes da tradição, mas dar forma a um presente que grita e suplica explicações; é achar no mundo as histórias que fazem justiça a ele, e indagar-se não quais imagens devem ser solicitadas neste repertório de iconografias, mas quais as formas para transmitir estas narrativas descobertas na vida.

À persistência do produtor de Aquele Querido Mês de Agosto, Gomes respondia tornando em trama o cotidiano que descobriu naquela cidade. O que era austero e dramático se tornaria rapidamente jocoso e espontâneo. As 1001 Noites, por sua vez, se faz a partir um compêndio de histórias descobertas em Portugal durante a crise econômica e as medidas de austeridade entre 2013 e 2014, e uma investigação contínua sobre as formas possíveis de pô-las em cena. Da compilação de rapsódias árabes, Miguel Gomes retira não o conteúdo, mas o seu caráter de compêndio. A história não é grilhão; não é a forma perfeita. É ferramenta de trabalho. Por mais que atravessados por todo um passado, filmando, estamos sempre na estaca zero, recomeçando. É o presente e suas próprias dúvidas que redimem e servem de inspiração. Neste sentido, a investigação de Gomes não é frontalmente uma investigação do plano, das figuras e das imagens compostas tanto quanto das estruturas narrativas que as põem em movimento, as muitas e inúmeras formas de transmitir histórias e pelas quais o cinema transforma a realidade em algo fantástico, mítico e sobrenatural.

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A trilogia passa por registros das mais diversas naturezas, das entrevistas com operários perdendo os seus empregos no porto a encenações absolutamente artificiais de atores vestidos como animais; da metáfora direta e evidente da crise sob a ótica dos representantes do FMI à reflexão mais indireta de seus efeitos sobre a vida de pessoas comuns com desejos e sonhos particulares; do companheirismo silencioso de vizinhos à guerra alardeada entre eles por causa de um galo; do dramático ao trágico ao épico ao misterioso ao cômico e então ao dramático novamente; histórias contadas vias registros documentais, interrompidas continuamente por letreiros, histórias de adultos encenadas por crianças; imagens belas e estonteantes substituídas por imagens pouco ou mal cuidadas. O rocambole não reúne toda a história do cinema; é, antes, uma tentativa de reunir formas possíveis de se capturar o fugidio do mundo e recontá-lo, num esforço que persegue este momento inaugural da invenção. Não somos reconduzidos a uma origem remota, mas à origem presente do que é o próprio gesto de se filmar. A sensação é que a cada imagem tudo pode novamente se esvair (e eventualmente se esvai), que o que importa não é exatamente cada uma das imagens, mas a soma final, a relação entre os algarismos, os laços que eles estabelecem ou não entre si.

Em Carax, há o deslumbre. Em Gomes, o rascunho, que pode ser epifânico, ou pode não ser nada. A imagem é despida de seu manto aurático e trazida à sua condição mais mundana, fragmentária. O que surge na tela vem para rapidamente dar lugar a uma outra coisa, e todas estas coisas se amontoam, se atropelam, gritam, e eventualmente se silenciam. Perseguindo os labirintos estruturais e a realidade fantástica de Borges, As 1001 Noites encontra o registro múltiplo e efêmero de um Joyce. Flutuamos e reagimos, como espectadores, diante destas imagens, a todo momento entre a revelação e o nada, sem saber o quanto devemos levar tudo aquilo a sério. O que está em jogo, a cada instante, é justamente o pequeno salto que transforma estas imagens brutas, nascidas das mais diversas fontes e moldada das mais diversas maneiras, em narrativa. Ou em arte. Não há o esforço pela elegância (como em Tabu), nem pela graça (como em Aquele Querido Mês de Agosto); o que há é uma contínua indagação sobre o sentido daquilo que está se fazendo, sobre o que de fato enleva as coisas.

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Chegar tarde a uma tradição significa talvez não fazer parte dela. O que por sua vez significa poder recomeçar do zero, sem os códigos anteriores, sem as concepções plásticas e as noções de beleza anteriores. É o que aqui significa ser contemporâneo. Mas então, o que nos garante sentido àquilo que estamos fazendo? O que eleva uma coisa banal a um outro estado? O terceiro filme nos dá uma dimensão do significado artístico e político de Mil e uma Noites quando, num dos mais belos episódios, Sherazade foge ao castelo e vai descobrir o mundo. É um espelho do elixir que Gomes tem a oferecer à sua própria crise de inspiração. Ao invés de concluir sua jornada aqui, Miguel Gomes passa então a um episódio longuíssimo e misterioso, que flutua entre o diáfano e o meramente casual, sobre homens que ouvem pássaros (com direito a uma digressão das mais estranhas possíveis). O episódio é continuamente pontuado por cartelas sobre as narrações de Sherazade. Ali, o diretor português nos recoloca o dilema de narrar e de até que ponto aquilo tudo significa alguma coisa para alguém, até que ponto é um signo que ilumina e arrebata, ou não passa de um grande repertório silencioso de nadas.

O que impressiona em As 1001 Noites é a maneira como o filme desloca a posição confortável do espectador, forçando-o a ter um outro tipo de relação com aquelas imagens e aquelas histórias, abrindo-nos possibilidades de, nesta via de abundância e acúmulo que beira o experimentalismo, que desloca a cada curvatura a concepção do que vemos, deslumbrando-nos com outras formas de beleza e de descoberta. Neste sentido, principalmente em uma época onde imagens são produzidas em grande quantidade e a esmo, é algo libertador. Em seus filmes, Miguel Gomes vem se dedicando a dar respostas simples a perguntas complicadas, a refletir sobre estruturas cinematográficas sofisticadas e apontar possíveis rumos para o cinema e a arte sem nunca abandonar a simplicidade, o sentido de humanidade e a banalidade do que é simplesmente se estar aí, no mundo – lugar onde, aparentemente, o cinema precisa cada vez mais estar para resolver seus próprios traumas. Não é pouco, amigos. Não é pouco.

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