Branco Sai, Preto Fica (Brasil, 2014), de Adirley Queirós

junho 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Filipe Furtado

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Mix tape para uma guerra pouco visível
por Filipe Furtado

A última coisa que se vê em Branco Sai, Preto Fica é uma cartela escrito “Da nossa memória fabulamos nóis mesmos”, assinada com local (Ceilândia) e data (Jan/14). É tanto uma declaração de princípios do cinema de Adirley Queirós – todo ele voltado a reencenar a Ceilândia com ela mesma, de buscar uma ficção que dê conta da exclusão da cidade satélite – e o último passo do processo demonstrativo do filme. Tudo em Branco Sai, Preto Fica existe para jogar uma luz sobre seu próprio mistério, e colocar seu processo às claras.

Se A Cidade é uma Só? (2011), longa anterior de Queirós, tinha uma grande força, isto se dava em parte por ser ao mesmo tempo um filme que evoluía naturalmente desse desejo de fabular a história e a condição da Ceilândia, presente nos curtas e médias anteriores do realizador (em especial o excelente Dias de Greve, de 2009), mas que também se desdobrava num quase acidente, fruto da constatação de um fracasso de um projeto de DocTV. A ficção existia como uma forma de resgatar o documental: era um filme que se erguia a partir das ruínas da história local. As idas e vindas do faxineiro Dildu (Dilmar Durães) e sua campanha eleitoral comentavam as dificuldades de dar corpo a um espaço fragmentado violentado por anos de história cordialmente sublimada.

Branco Sai, Preto Fica é quase uma inversão do filme anterior. Num primeiro momento, é notável como a imaginação de Adirley Queirós propõe filtrar nosso estado policial. A simplicidade de recursos e suas várias soluções criativas para representar esse estado de relações tão próximo sob a chave da ficção científica lhe emprestam um frescor. Esse estado resiste no filme com um peso especial na maneira como Branco Sai, Preto Fica ilustra nossa herança maldita do regime militar, nossa incapacidade de se afirmar diante deste estado policial. O resgate da violência do estado para além dos limites 1964-1985, dentro dos quais o cinema brasileiro costuma se colocar de maneira até certo ponto confortável, não é exatamente inédito, mas poucos filmes o fizeram de forma tão contundente e tão clara sobre o seu caráter institucional.

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Surge daí um dos paradoxos mais curiosos do filme: se a apresentação de ficção científica lhe serve de gancho com um verniz próprio, é sempre o material documental que se revela mais notável. Se desde Dias de Greve era claro que o uso preciso das ruas da Ceilândia ajudam a encobrir as limitações dramatúrgicas de Queirós, com o espaço organizando o sentido que o drama somente tateia, isto vale ainda mais neste novo filme – a tentativa da ficção cientifica permanece sempre incompleta, travada por uma montagem dura que emperra o drama. São os corpos de Marquim e Shokito, as ruas da Ceilândia, as fotos que retomam a história, que resgatam o filme e o mantém vigoroso. A ficção fraqueja e o documental a resgata, e os traços de um processo de destruição são o que o filme carrega consigo.Tudo remonta de volta ao Baile de 1986. Não é à toa que o personagem 100% ficcional do viajante no tempo, encarnado pelo mesmo Dilmar Durães, exista no filme como alguém cuja função é o de catalogar as coisas, produzir um testemunho, desdobrar o resgate histórico que os próprios realizadores promovem no seu filme dentro da ficção. No momento que a sua missão sai da catálogo para a ação, que o drama poderia ganhar força, restam-lhe o fracasso e o imobilismo. Seu último plano, catatônico em meio à destruição, é o réquiem possível para o projeto do filme.

Ainda mais do que A Cidade é uma Só?, este é um filme erguido em meio a ruínas, e que delas extrai sua força; um filme de permanência de espaços e corpos, e de uma brutalidade internalizada por todos nós. Não deixa de ser simbólico que o baile com intervenção policial, que segue como um espectro a assombrar a ação, se dê no primeiro momento de restruturação democrática. Neste sentido, existe algo muito forte nas sequências com Shokito e as sugestões de experimentos futuristas nas pernas mecânicas, aos poucos dando vazão a uma idéia de vanguarda do atraso, e na forma como nossa capacidade de inventar parece incapaz de se livrar da de destruir.

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Branco Sai, Preto Fica é dominado pela lógica do mix tape. É uma mix tape que permitirá à Ceilândia expor seu ressentimento ao plano piloto, e boa parte da segunda metade do filme é dedicada à gravação dela, com o diretor frequentemente assumindo o segundo plano diante de vários músicos locais. O filme é construído a partir do recolhimento de detritos culturais e a própria ideia do “fabular sobre nóis mesmos”, central em todo o cinema de Queirós, sempre deveu muito ao hip hop, este gênero musical dependente tanto da apropriação como forma de expressão como da auto-mitologia como método de fabular. Branco Sai, Preto Fica é todo mediado por estas ideias: o MC substitui o cantor de protesto; as várias partes do passado de violência local são combinadas com toda uma herança de cultura pop para desenvolver uma mitologia própria; e mesmo a idéia da mix tape, em si, pressupõe a apropriação sem grandes preocupações legais e comerciais – um álbum fora da lei. O filme é como uma mix tape conceitual sobre a permanência da violência na Ceilândia.

Isso não impede, porém, que ele sofra um tanto da síndrome de segundo longa: há momentos em que o ato da auto-fabulação parece existir como exercício, por vezes dando a impressão de que assistimos um filme sobre esta ideia de fabulação, mais do que um filme que lance mão dela. Mas esta relação com o hip hop ajuda a explicar como os exercícios de auto-ficção propostos por Queirós a seus atores passam longe das limitações de muitos filmes híbridos brasileiros. Se, por um lado, o filme escorrega frequentemente no drama, por outro ele nunca se contenta em somente localizar personagens dotadas de vitalidade e se escorar nelas. Por vezes o jogo do filme corre o risco de emoldurá-las em excesso dentro do espaço de luto pré-batalha proposto, mas há sempre um corte, um gesto de respiro que evita afundar nisso.

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Branco Sai, Preto Fica parte do clima de confronto anunciado em A Cidade é uma Só? e tornado inevitável após a sequência final na carreata: se no filme anterior tínhamos a constatação da violência simbólica, agora ela se torna física, exposta no corpo dos seus dois protagonistas. Marquim e Shokito são os Robocops que o cinema brasileiro merece – figuras de ficção cientifica que fazem coro à ideia de que Brasilia seria um espaço cujo estranhamento, a ausência de civilidade prevista no seu próprio projeto urbano, seria ideal para o distanciamento do gênero, e que a viram do avesso, expondo-as pelo que têm de mais duro e físico. Branco Sai, Preto Fica é um relatório de guerra. Seu principio é o da impossibilidade do equilíbrio, da constatação de que nossos bons modos cordeais, nossas migalhas na direção da inclusão, só varrem para debaixo do tapete a violência que a mantém. Nesse sentido, o processo de violência que os filmes apontam é ilustrado de forma inocente por jornalistas e cinéfilos bem intencionados: tanto A Cidade é uma Só?, como Branco Sai, Preto Fica seguem sendo frequentemente descritos na imprensa como filmes de Brasília, a despeito de a assinatura final deixar clara a sua filiação bem distante do plano piloto.

Por isso mesmo, é notável seu ritmo moroso, seu tom velado. Assim como o Distrito Federal é sempre um campo de batalha nos filmes de Queirós, e como aqui esta guerra é inevitável, isto é contraposto a uma melancolia que prenuncia o fracasso. Se Branco Sai, Preto Fica é um filme frustrante, isto se deve muito a como seus momentos de inventividade são entrecortados pela inoperância. Se A Cidade é uma Só? era a constatação de um fracasso de um projeto desenvolvimentista com inclusão do qual Brasilia segue o monumento mais grotesco, Branco Sai sugere o momento seguinte: o da revolta inevitável, mas inútil. Neste pouco mais de um ano desde a primeira recepção entusiasmada em Tiradentes, passando pelos prêmios em Brasília e a boa carreira internacional, o filme permanece para nós menos um triunfo do que um fascinante filme-problema (e creio que nenhum outro filme brasileiro tenha rendido tantos artigos aqui na Cinética desde a reestruturação da revista), e isto se dá muito por esta condição de filme interrompido, nessa sua revolta velada tão bem representada pela opção do uso das ilustrações no clímax.

A sequência final do filme parece hoje especialmente problemática, por razões diferentes daquelas de quando foi filmada. No contexto de 2015, a política do ressentimento que guia Branco Sai, Preto Fica parece inseparável justamente de certo cinismo destrutivo de uma parcela da esquerda brasileira que se descobriu sem representação política oficial depois de Junho de 2013. A raiva palpável que guia este ressentimento tem uma força inegável para muito além disso, transpondo o simples gesto de vingança, mas sob o contexto atual ela acaba engolida pela inoperância. É menos questão de a morosidade do filme o entregar ao pessimismo do que a impossibilidade do gesto. O filme, que até ali encontrava toda sua força na presença física do espaço e dos atores, precisa se rearticular por uma representação muito mais indireta: mesmo seu ressentimento só pode ganhar forma por via da imaginação e do sonho. Diante do fracasso político, cabe somente o fracasso de representação.

O próprio filme, de forma inteligente, busca entrecortar a catarse fracassada, ao suspender toda ação para um plano final, para que Dilmas, a testemunha do futuro, possa absorver os efeitos do gesto ressentido. Ali, o filme suspende a música e reforça sua reflexão fúnebre: o que permanece é menos o ato de destruição do que o sentimento de paralisia posterior. Estamos bem distante, é bom dizer, do fetiche pelo derrotismo de um Avanti Popolo (2012), outro filme moroso que apresenta as vitimas da violência oficial frequentemente em recesso; mas a paralisia final de Dilmas é similar, se reconhecida pelo filme como trágica. Parte desse sentimento sempre esteve presente no filme, mas em 2015 esta entrega à inoperância acaba massacrando a explosão de raiva que Branco Sai, Preto Fica procura dar vazão. Se nenhum outro filme brasileiro realizado no período entre 2010 e 2012 capta tão bem as mudanças de humor do país na passagem dos governos Lula e Dilma quanto A Cidade é uma Só?, o mesmo não pode se dizer deste novo filme; ainda assim, ele é contaminado pelo seu entorno de formas positivas e negativas. A paralisia é parte do seu diagnóstico, mas também é parte do seu limite. Esquadrinha-se um campo de batalha, reconhece-se uma situação limite, mas a convalesça e o torpor por fim contaminam as imagens. Poucos cineastas brasileiros são tão hábeis no diagnostico quanto Adirley Queirós, e esta qualidade não se pode tirar de Branco Sai, Preto Fica; é um filme que sabe olhar, tirar testemunho, mesmo que tenha dificuldades em organizá-los posteriormente.

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