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Seguir respirando

Numa passagem de seu novo filme, Abel Ferrara começa a falar com entusiasmo sobre Paris, onde está sendo filmado naquele momento. Aí é perguntado sobre Roma, a cidade onde mora atualmente, e fala também das qualidades daquele lugar, finalmente refletindo que também gosta muito de Nova York. Afinal, ele conclui: “quer saber? O melhor lugar do mundo pra mim é onde eu estiver, simplesmente respirando.” Alive in France, título que parece remeter principalmente a uma brincadeira com a maneira como as bandas de rock costumavam nomear os seus álbuns gravados ao vivo (uma vez que é um filme essencialmente em torno da preparação e realização de uma série de shows por Ferrara e seus colaboradores musicais), revela nessa passagem a profundidade do seu duplo sentido: no fundo, o que o filme celebra é mesmo que Abel Ferrara está quase chegando aos 70 anos, ainda vivo – o que não é pouca coisa em se tratando da vida radical vivida por ele e muitos dos seus grandes amigos e colaboradores, como Joe Delia e Paul Hipp, os dois músicos que o acompanham nessa turnê.

Alive in France é um filme não apenas sobre o prazer de (ainda) estar vivo (e não é acaso que a filha de 4 anos de Ferrara apareça tanto no filme), mas especialmente sobre seguir fazendo arte como forma de permanecer vivo. Se é verdade, como diz alguém no filme ao fazer uma apresentação da retrospectiva dos filmes de Ferrara, que todo o cinema dele seria em torno da questão do vício (“addiction”), o que Alive in France reitera é a potência do impulso criador (e aí não importa se ele venha da música ou do cinema) como vício último e como a droga que, paradoxalmente, permite que o corpo siga funcionando. É um filme sobre envelhecer, também (a sequência em que Ferrara e a banda vão distribuir flyers do seu show para estudantes em uma universidade é ao mesmo tempo tocante e de um sarcasmo extremo, como é marca do realizador), mas acima de tudo sobre uma pessoa que não consegue parar de pensar e viver como uma constante forma de arte.

Visages Villages (2017), Agnès Varda & JR
Visages Villages (2017), Agnès Varda & JR

Curiosamente, o filme foi exibido em Cannes no mesmo dia em que o novo filme de Agnès Varda, Visages Villages, para o qual, e de maneira muito mais frontal, uma das questões centrais é esta: para Varda, chegar aos 90 anos de idade só pode ser possível a partir do impulso criador. Melancólico e jocoso ao mesmo tempo, e a cada sequência, é um filme que não esconde a profundidade do gesto de alguém que se sabe mais perto de morrer do que de começar uma vida, mas que se sente igualmente curiosa e fascinada pelo mundo e pela criação como era nos seus primeiros trabalhos (e também não é coincidência que o filme faça menção direta a vários antigos filmes de Varda). Na verdade tanto Alive in France quando Visages Villages parecem satisfeitos em questionar o que, afinal, é a juventude, no que se refere a um artista. Sem negar que a idade é um dado essencial, o impulso criador parece se fortalecer com a certeza da urgência do tempo que passa.

Mas para além da questão da idade e da manutenção do impulso criador, ambos os filmes têm um outro tema central em comum: seja pelo gesto de Ferrara ao decidir juntar seus antigos colaboradores para mais uma aventura (com um deles, ele não falava há quase vinte anos), seja pelo gesto de Varda, que busca renovar seu olhar para o mundo a partir da associação com um jovem artista de pouco mais de 30 anos, o fotógrafo e muralista JR (que assina junto com ela a direção do filme), ambos os filmes falam muito de colaboração e amizade como elementos centrais na criação artística. Nesse sentido, a sequência final do filme de Varda e JR é especialmente tocante. Embora seja ruim revelar muito sobre ela, para que os espectadores que venham a conhecer o filme possam assisti-la com o máximo de desconhecimento possível, a maneira como ela reflete sobre passagem do tempo, amizade, manutenção e perda de laços pessoais, memória e criação funciona quase como a síntese perfeita daquilo tudo que de mais forte fica desses dois pequenos filmes realizados de forma quase autossustentável (o filme de Ferrara foi todo bancado por um produtor sem acesso a fontes de financiamento; o de Varda e JR começou com um crowdfunding). Viver não é fácil, mas certamente é a melhor opção que ainda existe.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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