Bem vindo a Nova York (Welcome to New York), de Abel Ferrara (França, 2014)

outubro 4, 2014 em Em Cartaz, Fabian Cantieri

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A aporia
por Fabian Cantieri

“A mecânica das instituições que encantou os contemporâneos de Montesquieu, Madison e Tocqueville não (lhes) interessa. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições de seu poder. (…) a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado através dela.”

Jacques Rancière, O ódio à democracia.

Existe uma tese subcutânea empreendida em Bem Vindo a Nova York, uma aporia. Ferrara, como um puppet master cônscio de seus perigos, precisa jogar seu personagem aos leões de um roteiro violento para saber se seus questionamentos serão respondidos através da dinâmica cênica. Escolhe sua imagem – Strauss-Kahn – escolhe seu boneco – Depardieu. Controla-os e os deixa respirar por conta própria num ritmo peristáltico. Neste respiro, observa suas formulações tomando vida. Digere suas conclusões. Joga-as no ar. Não obtém respostas. Nem nós a teremos. Apenas especulações, tiros a esmo e esperanças.

Fiquemos no enigma: um homem poderoso, ex-idealista, perdeu suas ilusões justamente quando empunhou o poder de transformar quimeras; vive a gozar de seu poder de ter poder, vive a comer todas as mulheres e a querer sempre mais. A essa altura, perdeu o tato, a tangibilidade com o mundo, inebria-se no prazer mais mundano, mais profano e sagrado. Devereaux (Gérard Depardieu) banaliza e dessacraliza o sexo e a cena no restaurante com o novo namorado de sua filha é toda construída pra mostrar sua relação de naturalidade com o sexo, que poderia ser de indiferença cool, mas acaba se tornando outra coisa (abjeta, dominadora, objetificante) ao longo do desvelamento de suas ações. Ainda assim – e vale deixar claro essa distinção antes crítica do que moral para estabelecer parâmetros – Devereaux não é um monstro. É mais um errante errado que perdeu sua bússola moral e não quer recuperá-la. Bem Vindo a Nova York poderia ser o remake de Bad Lieutenant (1992) se seu personagem procurasse redenção como o de Harvey Keitel… mas não: o filme é justamente sobre essa falta de arco dramático, essa não-mudança por falta de vontade. Pela existência de uma doença sem o desejo de cura.

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A cartela inicial já afirmava não importar a realidade, justamente por não a conhecermos, sendo impossível recriá-la. Importa a fabulação. Importa o plano de ação de Devereaux e o contraplano ao seu redor. A obra não se interessa pela “glória e queda” trágica do personagem, mas ainda assim se organiza como uma tragédia em três atos. É um filme de internas e sobre como os elementos internos ao quadro reagem ao centro motor que a todo instante quebra a inércia. O primeiro ato é quase ausente de discurso; basicamente ação, dominação. Depois, Devereaux é preso e o segundo ato inverte a proposição: como Devereaux reage impávido à impossibilidade de movimento. Os presos e os guardas que o revistam nu não o amedrontam, não o deslocam de seu pathos (imprevisível e caótico). A impossibilidade de locomoção não perdura e é quebrada pelo poder do protagonista – ele é solto, “indominável”. O terceiro ato é a resignificação do primeiro: é ele de novo solto no mundo, voltando ao sexo (também à sua tentativa forçada, voltando a admirar a empregada da cena final), percebendo a recuperação de um poder de dominação (que é sempre uma tensão entre sedução e força). Ao fim, a câmera de Ferrara lentamente se aproxima de Devereaux e ele nos encara até a chegada de um freeze frame, nos desafiando a lidar com isso. Existe todo um passado, um misto de uma cândida doçura no tratamento dele com a empregada com a projeção de uma recaída dos mesmos velhos atos. Existe, acima de tudo, um questionamento naquele congelamento: como nós, aqueles submetidos a seu olhar final, podemos enfrentar sua presença no mundo?

No monólogo de sua tragédia, ele pensa alto: “que Deus magnífico… acreditar que tudo iria dar certo”. Devereaux tem sua faceta niilista, se preenchendo de incredulidade, ao perceber que acreditar numa solução para fome do mundo é quase como ainda acreditar na metafísica. A universidade era seu templo imaculado que se queimou. Deserdados, como ele, existem aos montes. O roteiro engendra-nos um passo falso ao inserir a moça na galeria que se interessa por ele. Tudo indicaria uma peça contingente de um golpe vingativo de alguém que tomou as dores do escândalo internacional. Mas não: assim como não há arco de mudança do personagem, não há um reduto que vingue ou faça a desforra das inconseqüências de Devereaux. “Ninguém pode salvar ninguém” porque, no fundo, “ninguém quer ser salvo”. Não há projeção de mundo que suporte a ausência de redenção.

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Bem Vindo… não é sobre a possibilidade de existir um homem monstruoso assim ou sobre a existência de uma essência maligna ou sobre a capacidade do mundo nos redimir, mas o enfretamento deste tipo de persona diante do mundo. Sabendo que eles existem – e isto é um a priori para a tese de Ferrara – como pensar num mundo que lide com isso? E pensar num mundo lidando com isso, significa um mundo que não ponha estes “cânceres” à margem, que não os isole numa prisão, não simplesmente adote a postura mais fácil de separá-los da sociedade, pois, 1) eles não se regeneram; 2) eles escapam facilmente, assim como Devereaux o fez.

É preciso lembrar que as duas entidades protagonistas assumem suas utopias. Depardieu, no jogo inicial entre ator e personagem, se diz anarquista, e Devereaux é um ex-professor socialista que pretendia se candidatar a presidente da França. Como pensar uma comunidade sem Estado ou uma sociedade sem classes ao tomar consciência de figuras como Devereaux? Como manter um ideário de civilização solidária e igualitária assumindo suas ovelhas negras como parte do jogo político democrático? Como instituir o demos da democracia sem uma inerente associação a uma liberdade excludente? Como ter qualquer projeto de sociedade, considerando a doença como mecanismo de desenvoltura do mundo?

Morre a era das utopias, nasce a aporia. Ferrara nunca teve essas respostas, assim como nunca ninguém conseguiu almejar chegar perto de respondê-las. A aptidão aqui, mais do que técnica, que cambaleia entre uns zooms sem muito sentido, está em iluminar suas crises. Mais parece com aquele primeiro filósofo, o pensador menos acadêmico de todos que jamais escreveu um livro sequer, que sempre perguntava questões que não sabia a resposta. Não ensinava doutrinas mas descongelava pensamentos. Aqui, Ferrara abre nosso imaginário e parece rir da nossa cara: “agora se vira com isso”.

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