Já Visto Jamais Visto, de Andrea Tonacci (Brasil, 2013)

fevereiro 10, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Dalila Martins, Em Campo

javisto

Saber de cor ou o exílio do verdadeiro reino
por Dalila Martins

Não faço uso de pautas encadernadas; raramente anoto diante de imagens e sons em duração. Quando me comprometi com a escrita sobre Já Visto Jamais Visto, de Andrea Tonacci – um desejo que brotou espontâneo -, deparei-me justamente com tal sensação de ‘já visto jamais visto’, assim sem vírgula, coalescente. Vi o filme duas vezes, no Itaú Cultural e na 17ª Mostra de Tiradentes, mas seu significado permanece misterioso, imerso na fusão de lembranças e estados de espírito encadeada pela montagem de Cristina Amaral. Entretanto, um desenho fulgura muito claro: a relação entre pai e filho, interesse talvez despertado anos atrás, pela história do reencontro do índio Carapirú com seu filho-intérprete, Bemvindo, reencenada em Serras da Desordem (2006) – a obra mostrando ao realizador quem ele é, não mais o contrário. E, se antes a experiência pessoal de desmantelamento do núcleo familiar do cineasta fazia da alteridade indígena um laboratório de emoções frente a secessões e reconciliações – a última sequência de Serras demonstra tanto a manipulação engendrada quanto a consciência dela -, agora é a vez de sua própria intimidade se tornar estrangeira. O que pode ser catalogado como filme de família ou filme amador, uma revisão afetuosa de registros pessoais que acaba por desvelar costumes de época e classe, aprofunda-se no ofício do cinema como modo de, nas palavras de Roberto Rossellini, citado por Tonacci no debate de fechamento, Processos de Criação: Trabalho, Método e Circunstância, “ser homem no mundo” – um estado em que, como bem explicou Jacques Rivette, “o corpo é alma, o outro eu, o objeto verdade e mensagem” e “em que a passagem de um plano [cinematográfico e existencial] a outro é perpétua e infinitamente recíproca”.

A relação entre Andrea e seu pequeno filho Daniel, com quem deixaria de morar ao se divorciar, de férias no sítio em Extrema, Sul de Minas Gerais, e a relação entre Andrea, ainda criança, e seu pai Renato, ex-militar italiano, antes da imigração, formam a camada superficial de um rito masculino de passagem à maioridade, que engloba separação, exílio, medo, solidão, liberdade e independência. Esse rito sintetizado pela micro sequência do pássaro que cai machucado ao bater no vidro, através do qual o menino Daniel olha o nascer do sol ao despertar e acaba em pranto, lançando a ave de volta ao ar. Afastando-se de possíveis interpretações psicologizantes, baseadas em causas e consequências em nível individual, a lógica do filme é fabular e elíptica, tensionada por dois focos não coincidentes, mas estritamente relativos entre si, um dependente do outro para se auto-regular: o foco da força, da disciplina e da autoridade, representado pela farda, pelos batalhões da ditadura e pelo museu da inquisição, e o foco da delicadeza, do encantamento e da contemplação, representado pelo sono, pelas brincadeiras dos garotos e pelo Parque dos Monstros, os Jardins de Bomarzo.

A duplicidade focal forma uma órbita de intenções que se imiscuem, suspendendo-se, nos sentidos de elevação e de revogação a um só passo, o que incita um cruzamento de eixos, responsável pela ovalação da estrutura – o ovo como figura da origem. Pois é justamente do amálgama das características de cada um dos focos apontados que advém a riqueza de Já Visto Jamais Visto e o que confere à frase mais uma leitura: a reprodução da espécie é o motivo condutor da humanidade – aquilo ‘já visto’; contudo, sua repetição é geradora de perenidade e improbabilidade – aquilo ‘jamais visto’. As tendências nuançadas aparecem logo no começo, quando, no que se assemelha a um sonho, o pequeno Daniel defende sua casa na árvore da personagem de Joel Yamaji – um tipo de inteligência clínica, o portador da lupa, o articulador do tempo – empunhando uma pistola, a mesma com que brada sua conquista, ao abrir os braços para o horizonte. Ou então, quando da alusão à rebeldia insolente do cinema marginal, nas sequências dos jovens amigos em um apartamento em São Paulo, regada a samba e rock’n’roll, num contexto de repressão política. O elemento lúdico apara as arestas do exercício de poder, ironizando seu abuso, sua condição de absoluto. Por outro lado, o poder é a medida do faz-de-conta, o motor e a referência das transpassagens e insurgências de todo movimento da imaginação.

As múltiplas dimensões do rito de passagem à maioridade são acionadas sutilmente por meio de objetos de poder que, sistematicamente, colocam o espectador em estado de sensibilidade, livre para associações não lineares,  intuitivas. Já na cartela de abertura, a iluminura de um castelo medieval, que retornará em alguns outros momentos, apresenta a esfera temática de Já Visto Jamais Visto: o estabelecimento de um domínio, de um reinado. Considera-se também a expressão “castelos no ar”, uma metáfora para utopia. Outra literal chave do filme é aquela feita de ferro, antiga, guardada cuidadosamente no vaso de barro pelo menino Daniel, após ter sido descoberta num monte de terra revolvida por um trator, um símbolo do progresso – conotação acentuada pela montagem acelerada de fragmentos maquínicos. Das entranhas do barro de Extrema, a chave que não tem serventia imediata, mas que é reativada pela fechadura de uma grande porta de madeira do século XV, no Castelo Sforzesco, em Milão. Seria uma conexão com o sagrado, um passaporte para os registros akáshicos? Quiçá seja simplesmente um fruto da prática de atenção à vida, determinada capacidade visionária ou vidente de antecipação do futuro que propicia a consciência do espírito, nos termos da filosofia de Henri Bergson. Tal prática de atenção à vida, porém, é uma arte da espera. Retém-se o passado no presente e, simultaneamente, projeta-se em direção ao futuro, sem espaço para ressentimentos ou tabula rasa, à espera do acidente e da torrente do inevitável. Eis justamente a postura da retomada de realizações prévias e projetos interrompidos ou inacabados para compor a tessitura do novo não tão novo filme de Tonacci.

Além dos objetos de poder, apresentam-se também animais de poder: o já comentado pássaro, ferido por não perceber a superfície transparente, cujos pio e sombra animam as cartelas de abertura e encerramento, e a cobra, abatida e conservada num pote vítreo como sinal de perigo e superação. E há até mesmo objetos menos emblemáticos, mas fundamentais, como o próprio vidro que, de maneira análoga ao papel paradoxal adquirido na relação com os bichos, isto é, revelar ocultando-se, funciona como reflexão da câmera e do sujeito por detrás dela. A intercalação desse tipo concreto de pensamento – a opacidade e transparência da substância vidro referindo-se também à questão cinematográfica – com certa vocação animista e panteísta do olhar – o céu do sítio repleto de peixes, numa sobreposição de imagens, por exemplo – parece definir todo o cinema de Andrea Tonacci. Sua linguagem beira o onírico, como tantos outros estilos e obras, mas de um modo muito peculiar: a evocação mágica de materiais cotidianos, para o enredamento ensaístico de uma filosofia da história e de uma metafísica próprias, nutre-se tanto da fonte rosselliniana comentada no início do texto, quanto (aqui me arrisco), ao narrar a perambulação pelo dia na vida de um homem comum e forjar um dialeto para deixar manifestar-se o inconsciente, nutre-se da modernidade de um James Joyce e, especialmente, da matriz indígena com que teve contato ao longo de décadas.

O método de criação de Serras da Desordem, Tonacci resumiu em uma palavra: respeito. Eu a estenderia para o campo do reconhecimento, do reconhecimento em sua constelação de intenções: corroborar a existência de algo ou alguém; distinguir afinidades entre quem reconhece e quem ou o quê é reconhecido; admitir responsabilidade ou confessar falta. Sua ligação com os índios é selada por essa tentativa contínua de medir a distância e sentir a aproximação entre seu mundo e o deles. Magnetizado pelo encontro e despido da mentalidade analítica, aprendeu o costume da sabedoria partilhada ou exemplar, pelo qual inexiste detenção desigual de conhecimento e todo erro é também ensinamento ou todo pai é também um filho e vice-versa. Seu clamor pelo cinema experimental, ou melhor, pelo cinema que busca a experiência e resiste ao automatismo, aí também tem seu lugar. No fim do debate, ao lado de Luiz Rosemberg Filho, seu amigo de longa data e cineasta também eclipsado pelo mercado, num ato similar ao de Jean-Luc Godard em entrevista acerca do lançamento de Nossa Música (2004), para a revista Les Inrockuptibles, declara fazer parte dos indígenas do cinema brasileiro – a minoria que luta para escapar do esquecimento exterminador. Já Visto Jamais Visto termina com a forte declamação de um trecho de O Desprezo (1954), de Alberto Moravia, o mesmo livro adaptado por Godard em 1963, cuja vulgaridade, ambientada no métier audiovisual, nos é, infortunadamente, por demais familiar.

Share Button