Pasolini, de Abel Ferrara (França/Bélgica/Itália, 2014)

janeiro 25, 2016 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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O Pater familias morto e venerado
por Luiz Soares Jr.

“Apesar disso, escutem bem: todos os homens matam a coisa amada; com o galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada; os covardes o fazem com um beijo, os bravos com a espada!”

Balada do Cárcere de Reading, Oscar Wilde

 “A tua vontade reside em ultrapassar todo limite, eu bem sei; mas eu não vou te seguir”.

Filho em Affabulazione, Quinto episódio

 

No início do Pasolini de Ferrara, a voz off de Pasolini, errática e desoladamente, dirige um carro pelos arredores de Roma, até chegar naquele que seria o seu futuro campo fúnebre: Ostia, refúgio da sacralidade clássica como das oferendas profanas. A câmera acompanha o ponto de vista “ocluso”um tanto trôpega – ou seria o efeito de tantos filmes e escritos de Pasolini, pensiero selvaggio de nossa civilização, que nos induzem ao erro? Na verdade, ela é um esquadro, sinuoso e cadenciado, cujo travelling nos permite circunscrever esta linha de sombra e esta iminência de caos cujo apanágio é comum a todo poeta: a celebração de que o poeta é o lugar seria, em um mesmo movimento, o efeito de um olhar de Apolo (cujo fito é justamente dissipar as trevas montantes, e erguer um templo iluminado à palavra na clareira do ser) e de uma oblação a Dionísios, na medida em que o Abracadabra poético também mimetiza ritos de libação trágica.

Mas a quem seguimos, nesta noite tão promissora? Pasolini – sempre em off, recitando uma carta para um amigo na qual descreve o personagem que vai substituí-lo dentro da cena que veremos -, clarividente passo que não se deixa perturbar pelos detritos da passagem, encaminha-se para sua estrela, e perde-se no lusco-fusco da profundidade de campo; é um outro homem de costas que se volta para nós, e suplica um boquete ao jovem ragazzo di vitta que se aproxima; talvez Carlo Levi, amigo, amante, ou personagem de Pasolini, um ponto entre outros nesta intricada teia,  entre parábola reverente, alegoria alquebrada e portrait demasiado icônico que é o filme de Ferrara. O que devemos reter é o fato de que Ferrara hesita no último momento, e não nos ousa mostrar um Pasolini que, ao contrário  das estrelas, os rapazes inebriados que dançam ao fundo, o michê de passo cambaleante, parece não estar ali, pois permanece, a todo momento, entrincheirado em seu busto de três quartos de perfil, julgando-nos como ao mundo: o fellatio jamais seria para ele. Esta substituição premeditada do personagem Pasolini por um transeunte erotômano ( “embora ele possua uma analogia com a minha história, me é repugnante”), esta elisão do corpo de Pasolini pelo corpo de um qualquer, permite-nos deduzir a chave de acesso estrutural do filme: uma fobia de contato a tudo o que em Pasolini não seja mito, efígie, iconicidade. A fidelidade untuosa de Ferrara ao mestre de Bolonha não lhe permite aproximar-se, com o beat e a intensidade alucinógenas que lhe são habituais, deste “corpo de Pasolini”, deste Pasolini fremente, presente, partícipe da equação Eu e tu de Buber, pois o polemista catedrático do set de Saló e do inacabado Petrolio já lhe tomou o lugar, e nos dita os códigos e os enquadramentos adequados para uma abordagem “segura” da figura sacra: um movimento da câmera para baixo revela o peito do personagem enquanto toma banho mas, com exceção do corpo desfigurado do poeta assassinado, não teremos mais do que isto; e é irônico que justamente um cineasta (Ferrara), senão do corpo entendido como extensão (res) narrativa, mas como Figura – instância de presentação onde o determinante é, não a linha mestra em suas circunvoluções teleológicas, mas a curva truncada e retinta de água-forte, onde os vetores de intensidade do ser (acuado, exaurido, violado) se manifestam, devidamente conflagrados pela retórica do fondu enchaîné e do travelling lateral – recuse-se justamente a nos revelar o Pasolini como este corpo que, nos melhores filmes de Abel Ferrara, é antes de tudo uma arena de forças, de energia acumulada ou desperdiçada, de precipitações e recuadas magmáticas, virtù agonística do Aquiles em luta que Jean-Pierre Vernant tão vivamente descreveu.

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Deleuze sobre Francis Bacon: “Bacon com freqüência se detém sobre a violência de uma cena descrita: espetáculos de horror, Crucificação, (…) mutilações, monstros. Mas estes são claramente fáceis desvios. O que interessa diretamente a ele é uma violência diretamente envolvida com cor e linha; a violência da sensação, e não da representação”. Excetuando-se o risco de formalismo implicado nas análises de Deleuze – jamais poderemos, sem a dificuldade judiciosa de levar em conta suas mediações características, aplicar diretamente ao cinema as categorias utilizadas para a inquirição pictórica -, podemos afirmar que o cinema de Ferrara realiza-se sob a égide da Figura, cujo corolário é a sensação: o que lhe interessa é menos a trajetória retilínea do corpo que se descreve e narra, do que a pressão (de sombra, movimento, ritmo) que ele exerce sobre o plano, sendo por sua vez o objeto recíproco da intimidação que o mundo e os outros corpos exercem sobre este; pressão esta sempre centrífuga, índice de uma exterioridade radical, de uma noção muito problemática de noções metafísicas como identidade, sujeito, substância (ousia) etc; e, evidentemente, todas as implicações estéticas destas noções transgressoras acabam por ser igualmente assumidas: simetria, centralidade, frontalidade em Ferrara, cineasta energético, são solapadas pelo impetus e pelo dynamos da Força vorazmente desencadeada. Esta exuberância diferencial do corpo em seu cinema chega sempre a sugerir uma mais-valia do significante trabalhado, uma economia geral opulenta: seus filmes protéicos percorrem uma prodigiosa diversidade de rotas paralelas, de dimensões virtuais e experiências atuais in extremis, de perversões dos códigos de gênero, de leituras interditas (a interpretação tripartida de Nicole Brenez para Body Snatchers, onde o tema arquetípico do incesto da filha com o pai acaba por se prolongar “em um ensaio futurístico sobre a poluição industrial e a global militarização, e uma meditação retrospectiva sobre o ‘Homem de Hiroshima’ (…), onde cada silhueta pode ser visada sob o ponto de vista de sua iminente desaparição”).

Mas o que acontece propriamente com seu Pasolini? A princípio temos, como nos filmes anteriores, a coabitação de dimensões, ou a inervação e reverberação de uma pela outra: a crônica hebdomadária, que se concentra exclusivamente (com exceção de um fugidio flashback, onde vemos um Pier Paolo mais novo jogando futebol) em seus últimos dias: o filme começa com a entrevista que concedeu na França quando estava trabalhando na dublagem de Saló, e termina com a repercussão familiar (a mãe, Laura Betti, e uma agregada reunidas para uma cena melo-patética) de sua morte; um círculo dialético, que encerra vida e obra em malhas recíprocas, se descreve aqui. E a rêverie, que tenta materializar personagens, metáforas (personagens-metáforas, como o Epifano encarnado por Ninetto Davoli) presentes em seus escritos, operação de síntese da “apercepção transcendental” onde a palavra inspirada e a coisa intuída esposam um mesmo espaço flutuante de analogia: Petrolio e Porno-teo Kolossal (romance e roteiro inacabados) são as referências. O fondu enchâiné, figura retórica comum nos filmes de Ferrara, é o irregular meio de contato e interposição entre ambas as dimensões, mas atua essencialmente no domínio do “devaneio”.

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E o que nos revela a imbricação de ambos os domínios, de que o filme constitui o “efeito” especular? O Pasolini “crônica” é de um academicismo crasso, pontual, pontualmente anedótico. Na medida em que não consegue aprofundar o seu portrait pulsional, energético, presente (em suma: à la Ferrara) de Pasolini, Ferrara permanece na sua vizinhança: saberemos de todos os lances jornalísticos daquela noite impossível (Ostia, 1 de novembro de 1975), o registro de seus agentes e pacientes, conferiremos com retidão cartorial a cenografia dos atos (casa de Pasolini; penúltimo e último restaurantes; Idroscalo), as coordenadas do caso. Mas Ferrara não consegue ir além do instantâneo fotonovelesco, pois este é todo Pasolini que ele pode nos oferecer, um Pasolini que não ameace arruinar o busto idólatra, que permaneça emoldurado – e de Ferrara sempre esperamos mais, pelo menos em termos de intensidade imanentista; esperamos um cineasta que faça justiça a um gênio profético, a um taumaturgo do verbo iracundo (Pasolini), mas igualmente a um poeta da Energeia underground (Ferrara): “(…) porque na repressão vivem-se as grandes tragédias, nascem a santidade e o heroísmo. Na tolerância definem-se as diversidades, analisam-se e isolam-se as anomalias, criam-se os guetos. Eu preferiria ser condenado injustamente a ser tolerado”. (Il giorno, 1973, Dialogo armato com Pasolini).

Alguém um dia disse (D’Annunzio?) que em obras trágicas ninguém nunca pergunta pelas horas; pensemos mesmo no trágico moderno: Racine, Kleist, Corneille. Jamais saberemos, pelo menos pela boca de Fedra, de Pentesileia ou de Polyeucte, das circunstâncias casuais ou efeméricas que assistiram à eclosão de sua paixão: Fedra e Hipólito, como os personagens dos melhores Ferrara, permanecem fiéis a sua Hybris, jamais às demarcações do calendário ou do Codex social. O Pasolini de Ferrara, pelo contrário, impõem-nos o conhecimento penoso de detalhes comezinhos, de rasgos de pitoresco: sabemos do cardápio consumido por Pasolini no restaurante a que acorreu pouco antes do encontro com Pelosi; Maria de Medeiros (Laura Betti), em sua rentrée frivolamente triunfal, conta-nos da sua filmagem com Jancsó, mas também do apetite sexual e do profissionalismo dos atores socialistas, etc.

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Mas é ao abusar do quociente metafórico do alegorismo de Pasolini (nos planos e sequências de devaneio a que me referi acima) que Ferrara mais se equivoca: o impulso para mimetizar a vocação pasoliniana de equacionar mito e metáfora traduz-se em um simbolismo de opereta, pesado e demonstrativo; pensemos na sequência desastrosa (que aliás é um dos “arremates” do filme) do rei mago Epifano, em sua perambulação noturna pela Roma orgíaca, acompanhado do jovem Nineto: sejam bem-vindos a Roma, uma cidade que celebra o amor livre gay! Pensemos no desastre de avião, com sua superposição do belo rosto de Levi, da caveira e da tribo autóctone: Ferrara intenta manifestar de forma orgânica, em planos osmóticos (o fondu!), as grandezas, igualmente relevantes e dialeticamente sinérgicas para a obra de Pasolini, do arcaísmo do Desejo edipiano e da instância repressora da Lei (Laius), do Velho (o deserto, a tribo) e do Novo (o avião), os Pais e os Filhos; mas só consegue nos transladar para um imbroglio de língua, onde a relação entre a metáfora e a coisa nunca está devidamente ajustada, e a metáfora, em sua pujança atabalhoada, com freqüência mata a coisa, operação de alto risco em cinema: falseia-se uma inspiração trágico-dialética superior, onde o rigor axiomático e as libações do imaginário barroco se aliavam exemplarmente.

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Nicole Brenez, em seu livro sobre Ferrara, deu-nos a chave para entender a importância do negativo para sua obra que, como a de Pasolini ( em outra chave de significante, de tônus e de estrutura, é claro), dá ao niilismo um sentido plenamente afirmativo. Mas o Pasolini de Ferrara é indigno deste legado, do próprio Ferrara como de Pasolini, por seu excesso paralisante de reverência, talvez de clemência hagiográfica para com este Homo sacer genial. Porque um Pai, para permanecer sacramente presente para a posteridade, precisa ser necessariamente comido e cagado pelo Filho; e não, como aqui, venerado no altar-mor de sua dignidade de Pater familias.

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