Este ano o Festival de Cannes, como forma de celebrar os seus 70 anos, fez uma adição à sua mais que tradicional vinheta de abertura, na qual degraus saem do fundo do mar até o céu, e chegam na logomarca tradicional da Palma. Em cada degrau, foram adicionados nomes de cineastas importantes na história do Festival, de muitas nacionalidades e épocas. E, no entanto, por mais que o termo em português não tenha gênero, um chocante dado fez-se perceptível nas duas primeiras edições da vinheta (serão várias, com vários nomes): apenas uma cineasta era mulher – Agnès Varda (não cheguei a contar, mas chutaria que são entre 15 e 20 por vinheta). Claro, logo aparecerão algumas outras (Jane Campion, com certeza, por exemplo), mas é um dado chocante ver essa “micro história” gráfica do Festival passando na tela todo dia e ver que 1/40 dela, mais ou menos, foi escrita por “autoras” – o que não é tanto uma acusação ao Festival (mas também o é), mais ao cinema mundial e sua história, e essencialmente ao mundo em que vivemos até aqui, que pode considerar “natural” de alguma forma que um gênero domine de tal forma os “meios de produção”.
Com esse contexto no horizonte, assistir nos dois primeiros dias a três longas dirigidos por mulheres (entre cinco longas vistos no total) foi a garantia de poder se permitir um certo olhar (com trocadilho) mais plural. Não chega a ser acaso que os três longas dirigidos por mulheres estavam em sessões paralelas, enquanto os dois dirigidos por homens eram da Competição principal (onde, neste ano, 1/10 dos filmes é dirigido por mulheres). Ainda assim, é inegável que nessas mostras paralelas em geral um movimento bastante perceptível aumenta a representação dos olhares das mulheres, o que de uma forma ou de outra acabará repercutindo mais adiante na Competição.
Vistos os três filmes “femininos” em sequência, é impossível não chamar atenção a maneira como se aproximam de seus protagonistas e os respectivos estados de alma, partilhando com eles um estado sempre inquietante (mas nunca paralisante) de busca/incerteza/descoberta. Embora não seja desejo nem ambição deste curto texto de resposta imediata tentar perceber um “olhar feminino” comum e unificador nesses filmes (inclusive por sabermos como a questão do “olhar feminino” assombra as discussões sobre representatividade de gênero), é incrível perceber como, sendo eles filmes que vêm de cineastas em momentos de vida e produção tão distintos entre si (uma veterana com uma das mais importantes carreiras do cinema francês contemporâneo; uma cineasta com carreira promissora e errática que não filmava há 10 anos; uma estreante em longas já premiada em Cannes com seu curta estudantil), essa sensibilidade comum parece tão menos afeita a certezas (seja da parte do olhar do filme, seja de seus personagens) e ao mesmo tempo tão pouco interessada em apresentar esses estados de inquietude como “crises” – ao menos no sentido negativo do termo. Se há considerável dor e sofrimento em cada um(a) do(a)s protagonistas, ao mesmo tempo eles não se definem por esses sentimentos. São filmes, em suma, que abraçam com muito mais facilidade a crise como um estado de latência e potência, ainda que nunca de forma ingênua (“vai ficar tudo bem” não é um sentimento que perpassa nenhum deles).
Mas vamos às diferenças, porque afinal são muitas. Num curioso espelhamento com relação a suas autoras, o filme de Claire Denis se foca numa personagem cuja crise é da ordem da maturidade: interpretada por Juliette Binoche, Isabelle é mãe recentemente divorciada, em busca de redescobrir o sentido mesmo do amor (ou seria melhor falar do “engajamento num relacionamento romântico”?) na sua vida. Já a/o protagonista de They, da estreante Anahita Ghazvinizadeh, vive uma crise da juventude: em confusão sobre sua identidade de gênero, toma remédios que retardam a entrada hormonal do seu corpo na puberdade, enquanto precisa entender onde encontra sua imagem de si. Sendo crises tão diferentes, em natureza e forma, é forte a maneira como as cineastas conseguem irmanar o seu sentimento de filme (logo de mundo) com as suas personagens. O que se gruda nelas não é só a câmera, não é só o foco narrativo do filme, mas todo um sentimento de construção de cinema.
Também faz todo sentido, dadas as trajetórias e momentos tão distintos de vida das cineastas, que de um ponto de vista estritamente formal seus filmes sejam tão diferentes. Un Beau Soleil Interieur é obra de uma cineasta que já construiu o seu olhar de cinema e se sente confortável, inclusive, em quebrar expectativas. No caso, falamos tanto da maneira como o novo filme de Claire Denis se estrutura claramente como uma comédia (ainda que tristíssima, mas isso não é nada novo na comédia) como da maneira como é encenada, antes de tudo, pela palavra e o jogo do timing dos atores (Denis é muito mais frequentemente associada ao chamado “cinema do fluxo”, com sua centralidade da relação entre a câmera fluida e o corpo dos atores em cena). Mesmo a princípio fora do seu “terreno natural”, é impressionante como o seu filme exala a calma e a confiança de quem, literalmente, não tem nada a perder. De quem decidiu nesse novo projeto experimentar novas buscas e caminhos, mas sem nenhum receio do salto no vazio que poderia resultar de uma aventura a princípio bastante nova.
Já They tem todas as marcas de um longa de estreia: ao mesmo tempo em que é claramente irregular, não apenas no todo da sua narrativa como mesmo no interior de suas cenas, o filme consegue fascinar e cativar o olhar justamente por isso. De fato, no sentido estrito da organização das propostas de cinema dentro da estrutura de um festival, a presença de They em Cannes se deve claramente a uma especificidade da seleção oficial do evento: todo(a) cineasta que ganha o primeiro prêmio na competição da Cinefondation (exclusiva para filmes de escola) tem o direito garantido de ter seu primeiro longa exibido no Festival. Não é nada arriscado afirmar que They jamais estaria em Cannes fora dessa circunstância, porque é em todos os seus aspectos aquilo que mesmo as seções paralelas de Cannes já não parecem mais comportar exibir: um filme frágil (como seu/sua protagonista), um filme incerto (idem), um filme confuso (ibidem). E, por tudo isso, um filme adorável de se ver em Cannes, pois faz respirar nosso olhar tão sufocado por vezes de autores que (bem ao contrário de Denis, aliás) parecem excessivamente confortáveis com seu lugar no mundo. They, que soma ao dilema original do/a protagonista outros dilemas contemporâneos por excelência (do artista criador e seu lugar no mundo; do imigrante e seu lugar no mundo), é tudo menos um filme confortável. Por isso mesmo, encanta mesmo em suas insuficiências.
No meio termo entre Denis e Ghazvinizadeh, a alemã Valeska Grisebach realiza em Western um filme bastante fascinante justamente por sua sensação constante de desconforto – que é, de novo, um estado absolutamente partilhado por seus personagens. Em jogo aqui, conflitos que são tão contemporâneos como atemporais – ao menos na história da Europa: a migração, sim, mas acima de tudo o choque constante entre “conquistadores e conquistados”, entre “poderosos e desolados”. Nessa narrativa sobre trabalhadores braçais alemães viajando e trabalhando no interior do Leste Europeu (uma curiosa e inteligente inversão do que seria a trama mais esperada ao pensar em migração hoje), Grisebach consegue modular com precisão o lado “retrato de um estado de coisas europeu” com um sentimento de mundo bastante individual do seu protagonista. Aqui é onde, aliás, o título faz todo sentido, pois esse homem é uma revisão bastante intrigante do clássico anti-herói do faroeste americano: silencioso, misterioso, marcado por um passado que não chegamos a acessar, aberto ao contato com o território novo – mas, acima de tudo, carregando um sentido do trágico que paira sobre o filme todo sem nunca chegar exatamente a atingir a superfície. É um filme curiosamente masculino em termos dos dilemas na tela (há as mulheres na tela, e elas são importantes no andamento da narrativa, mas as questões e o protagonismo são indubitavelmente masculinos), mas que traz esse olhar comum de incorporar na crise do protagonista algo de menos determinante e muito mais curioso, inquieto.
Da soma desses três filmes, tão diferentes, emerge esse sentimento claro: talvez a grande ausência de mais nomes femininos naqueles degraus da “escada sagrada de Cannes” seja a de poder olhar para o mundo e para o cinema com mais curiosidade e menos certezas. É só uma hipótese. Há outras. De certo, só mesmo que não faz mais sentido nenhum naturalizar algo que é tudo, menos natural.
Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema, formado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.
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