Papo (de bar) com Claire Denis
outubro 1, 2013 em Em Campo, Entrevistas, Juliano Gomes
por Juliano Gomes, com colaboração especial e foto de Jô Serfaty
A conversa com Claire Denis aqui publicada aconteceu em Junho de 2011, após o debate com a presença da cineasta, durante a Mostra “Claire Denis, Um Olhar em Deslocamento”, no Rio de Janeiro. Em menos de uma hora, em um bar barulhento da Cinelândia, numa mesa cheia, o papo prolongou algumas questões surgidas no debate logo antes e na experiência acachapante de ver sua obra em um curto espaço de tempo. O diálogo abaixo traz traços deste contexto bastante vivo e um pouco confuso.
Cinética: Queria falar um pouco sobre a relação dos teus filmes com o cinema de gênero. Você disse no debate que O Intruso (2004) é um pouco como um Western, e isso me surpreendeu e me abriu essa chave de pensar teus filmes. Neste caso, essa atmosfera, os espaços amplos… O caso de Desejo e Obsessão (2001) é talvez o mais óbvio, pois é na sua superfície um filme de horror, mas Sexta Feira à Noite (2002) é uma espécie de comédia romântica, S’en fout la mort (1990) como um filme…
Claire Denis: Noir…
… e me lembra o Assassinato do Bookmaker Chinês, do Cassavetes, no sentido de construção de um mundo subterrâneo.
Sim.
… Bom Trabalho (1999) como um musical, um filme de dança… Enfim, percebo uma relação muito forte com o cinema mais convencional, de uma maneira muito particular, mas que está lá.
Eu sempre acho mais interessante que esqueçamos os “filmes de arte”. Não acredito nessa definição. Acontece que quando o filme não é muito “comercial” ele se torna “de arte”.
Mas não é exatamente culpa deles, né?
Não, claro…
Esse legado dos filmes B americanos também é de alguma forma importante pro teu trabalho? Talvez, quando você esteja escrevendo roteiros, você tenha como referência alguém como… não sei, Jacques Tourneur?
Sim, sim, Tourneur sim. Quando eu fiz Desejo e Obsessão eu realmente pensei em filmes de gênero e a liberdade que eles têm e que não existe nos filmes mainstream. Especialmente em relação à sexualidade, porque a censura nem ligava para eles, ninguém ia lá ver os copiões. Eles conseguiam sugerir muitas coisas com poucos meios, sem muito dinheiro, e é muito forte o que conseguem dessa maneira.
Sinto isso nos teus filmes, o uso de elementos muito simples, de uma estrutura básica, como por exemplo, dois personagens, um carro, um engarrafamento… e alguma coisa “explode” ali, a partir de elementos muito simples. Assistir teus filmes juntos torna essa impressão muito forte mesmo, isso é recorrente, e isso me traz o cinema de gênero à cabeça. E no debate você falava também de cinema feminino, e penso em S’en fout la mort, e é óbvio que ninguém irá pensar que aquilo é dirigido por uma mulher. É cru, obscuro, enérgico…
Eu vi rinhas de galo na Martinica. Eu nunca tinha visto, e talvez nem soubesse da existência disso. Fui convidada por pessoas em Saint Martin, que é uma ilha perto de Guadalupe, mas que era tão chata que fui embora. Paramos na Martinica e no avião eu estava com um cara que criava galos para briga, e ele começou a falar. Eu estava indo pra França, não tinha intenção de ficar em Saint Martin. Ele me convidou e me mostrou o treinamento dos galos. Fui a uma rinha e vi aqueles homens todos apostando, como homens apostariam em cavalos.
E é muito masculino, porque o galo é uma espécie de metáfora da masculinidade. E, lendo, aprendi que, durante a escravidão, o escravo era proibido de lutar, como jogar capoeira, por exemplo, porque o dono não queria que a “mercadoria” deles se machucasse. Então lhes era permitido fazer rinhas de galo para lhes dar a excitação da briga, mas sem brigar. Isso antes de eu escrever o roteiro. Aí veio a idéia do filme.
Consegui o dinheiro porque Chocolate (1988) foi muito bem recebido na Alemanha, e arranjei uma pequeno financiamento em Berlim. E eu comecei a pensar em toda essa coisa de rinha clandestina. Porque em Paris existem rinhas clandestinas e no Norte também. A comunidade caribenha faz muitas em Paris, Nova Iorque, Miami. E aí o muro (nota do entrevistador: de Berlim) caiu em Novembro e eu supostamente filmaria em Janeiro, então tive menos dinheiro. Mas estávamos prontos pra rodar. Alex (Descas) tinha passado dois meses na Martinica, treinando.
Me impressiona muito a atuação dele no filme, porque em geral eu o vejo em personagens mais contidos, intensos, mas menos explosivos, e no filme ele está com essa marca da ira, de um transe raivoso do personagem, quase louco mesmo.
Sim. Aí eu falei com o produtor que mesmo sem o dinheiro alemão nos poderíamos fazer o filme nos arredores de Paris. E filmamos rápido. E… nunca pensei o filme como masculino, mas ele lida com a masculinidade sim.
Você falou uma coisa sobre Isaach de Bankolé, em Chocolate, que me pareceu interessante, que ele tem uma presença, uma intensidade “política” na cena.
Sim. É um ator político. Porque os personagens do filme, diante dele, são obrigados a pensar duas vezes. Ele não se mistura àquele contexto dos personagens. Ele está fazendo o trabalho dele e sua presença está dizendo a todos onde eles estão. Ele não é apenas o empregado. Ele olha de um jeito livre, é alguém que pensa por si mesmo realmente. É alguém que nunca parece submisso a nada, que tem livre arbítrio, sempre. Gosto disso.
Quando vi Chocolate pela segunda vez, me lembrou India Song (filme de Marguerite Duras, de 1975), talvez pela atmosfera.
Crescer no exterior, não ser parte, saber que você é de um outro lugar, faz você olhar para as pessoas com um espécie de diferença… Você sabe que você não pertence àquele lugar e isso te dá algo que não pode ser compartilhado. Mas posso compartilhar com Marguerite o fato de que nunca pertencemos. Ela era uma criança num lugar onde a maioria era vietnamita ou chinesa e, portanto, ela se sentia, de alguma maneira, diferente. Às vezes se pensa que alguma pessoa se sente diferente porque é um artista e tal, mas, no nosso caso, é um pouco o contrário, pois conhecemos esse sentimento antes, nessa condição de estrangeiras.
Queria falar um pouco de uma maneira de cortar que percebo nos teus filmes, onde, logo após mostrar ações, você mostra olhares voltados para aquelas ações, mas que aparecem depois delas. Muitas vezes, é o olhar de alguém que nós espectadores não sabíamos que estava lá, e isso modifica o que vimos. Desejo e Obsessão termina assim. A grande cena da dança em 35 Doses de Rum tem uma permanência desses planos das pessoas olhando o que acabamos de ver. O quanto isso foi planejado? Na filmagem você já imagina esta função para estas imagens, de modificar nossa maneira de ver as cenas pela adição de um ponto de vista?
Por exemplo, em 35 Doses de Rum (2008), o pai percebe ali que ele vai ter que tomar uma atitude. Ele está percebendo que é a hora, naquele momento. Ele está assistindo e percebendo o que sua filha não quer. Talvez seja algo que acontece um pouco comigo. Enfim, acho que se aprende muito assistindo, observando as situações.
E há personagens como Bruno Forestier (Michel Subor em O Intruso), em que ele é aquele que assiste, essa é sua ação. Ele não faz tantas coisas, mas ele está sempre lá, implicado, presente. É o terceiro elemento.
Acho que isso veio muito da minha observação da Legião Estrangeira, onde os coronéis, os comandantes, nunca são parte dos soldados. Eles não se misturam, pois todos os soldados são de países estrangeiros, e o comando é feito por oficiais do exército francês. Nunca há um comandante que seja da Legião, que seja estrangeiro. O mais alto que chegam em termos de patente é sendo capitão. E pensei que esse cara é o mesmo que vemos no final de O Pequeno Soldado (Godard, 1963), que mata alguém, foge… enfim, ele está se escondendo lá e é o fim para ele. Mas ele não está fazendo parte daquilo, sabe?
E há uma espécie de crueldade em assistir a isso e não fazer parte. E o jeito que ele se comporta é… um pouco terrível, entende? Quando você vê o personagem de Denis Lavant tentando tanto seguir as regras, é como em (Herman) Melville, em “Billy Budd” (nota do editor: conto de Melville que serviu como fonte para o roteiro de Bom Trabalho). Quando eu li, muito tempo atrás, eu antipatizei com o personagem Billy Budd, porque me parecia o anjo da Beleza, mas eu gostava do mestre Claggart. Ele era meu personagem preferido, porque ele é aquele que quer sempre manter tudo em ordem, e ele quer proteger o capitão do navio, não quer que o capitão seja atraído por um marinheiro jovem. E é ele quem é derrotado. Porque o capitão está se lixando. A patente o protege.
Eu acho que os Descas cumpre um pouco essa função no 35 Doses de Rum, porque ele está sempre lá. É um cara um pouco cool, silencioso, as pessoas gostam dele, mas ele está sempre lá, exercendo sua presença, interferindo, mas de um maneira aparentemente “passiva”. Sentimos que algo que está em curso, talvez dentro, talvez fora… algo um pouco como Hitchcock, talvez, esta introdução deste elemento que percebe também a cena. Identificamos-nos com isso, nós espectadores.
Sim, sim.
Jô Serfaty*: Quando você vai filmar, você posiciona antes os atores ou a câmera? O que você trabalha primeiro? Pelos filmes, não consigo saber…
Eu coloco a câmera. Escrevendo o roteiro, eu meio que imagino onde eu deveria estar. Eu acho importante saber onde a câmera está, e então só depois se pode oferecer o espaço ao ator. Se eu tentar fazer o contrário, não funciona pra mim. Funciona para outras pessoas, mas não para mim, porque eu teria que seguir a ação, e eu realmente prefiro já estar lá e dar um espaço a eles. Não quero ser obrigada a seguir o que está acontecendo ali, mas estar lá antes.
Como é sua relação com improvisação?
É algo que me amedronta um pouco. Eu realmente não trabalho muito com improvisação.
Juliano: Seus documentários são principalmente sobre trabalho – músicos, dança – e fico pensando se não são também uma reflexão sobre seu próprio trabalho.
Acho que no trabalho você se aproxima das pessoas.
Quando se está ocupado…
Preocupado (risos). Na verdade, eles estão tentando atingir, conseguir algo. Gosto disso.
Algo que noto com muita força é como muitas vezes você filma alguns atores de maneira muita próxima, usando a textura da pele, como Denis Lavant, Michel Subor, usando lentes teleobjetivas e…
Na maior parte só uso lentes normais, 40mm e 50mm.
É mesmo? Mesmo quando é muito perto? Mesmo nos closes em Subor em O Intruso, suas rugas, seus poros?
Em O Intruso, só usamos lentes de 40mm e 50mm. Uma ou duas vezes eu usei uma lente teleobjetiva de 100mm, na floresta… Eu prefiro estar perto. Se você está filmando um cara que, por exemplo, está sofrendo, você está ali, com ele. Não gostaria de estar distante. Usar uma lente teleobjetiva me faria distante. Você não pode assistir isso à distância.
Em Sexta-Feira à Noite, a mesma coisa?
Sim, no carro. Usamos lentes normais também. Doze pessoas no carro. Eu nuca uso 30 ou 20mm pois não queria distorcer os rostos.
No Sexta-feira à Noite, eu muitas vezes me perco quando se filma as peles de perto, perco a referência dos corpos.
Porque, no livro, a autora escreve que quando eles transam no hotel a mulher não sabia se estava por cima ou por baixo na hora. Eu pensei que poderia explorar isso.
Vou repetir a pergunta que Serge Daney faz a Rivette no teu filme (Jacques Rivette – O Vigilante, 1988) em relação à maneira de filmar os corpos. No caso de Rivette, a preferência por filmá-los por inteiro ou em sua maior parte dentro do mesmo quadro, e, no seu caso, o oposto. Ele diz que não poderia separar o corpo em partes. E quanto a você?
Eu entendi o que ele estava dizendo a nós ali, mas eu acredito mais em Godard quando ele diz que… talvez o melhor exemplo esteja em Pequeno Soldado, quando Anna Karina está acendendo um cigarro, e ouvimos a voz de Michel Subor dizer que não há nada mais atraente do que uma mulher acendendo um cigarro. E algo assim você tem que filmar em close. Porque é um pensamento. E Rivette não está filmando pensamento, ele está filmando algo como… o balé da vida, então ele precisa mostrar mais. E Godard está interessado em pedaços, porções, de pensamentos…
Você também?
Não sei, mas eu acho que me sinto mais atraída por isso. O que um filme é tem a ver com a possibilidade de ir de um plano muito amplo, de quase “vida real”, para um plano muito fechado de “o que eu penso”…
Voltando um pouco na questão dessa proximidade, eu sinto um pouco a pele desses atores que mencionei, Lavant e Subor, na maneira como você as filma. É uma espécie de paisagem. Como por exemplo o deserto de Djibuti (locação de Bom Trabalho). Mesmo com Isabelle Huppert, em Minha Terra, África (2009), percebo uma exploração da pele como relevo, com geografia…
Eu falei com Isabelle antes de nós começarmos a filmar que, pelo filme, nós não deveríamos usar maquiagem nenhuma nela. Ela disse: nenhuma mesmo, nada? Eu disse que o calor iria tornar sua pele quente e vermelha, porque ela é muito clara, e isso seria ótimo. Só no final ela usa batom, que significa que ela está preparada para o pior. E acho que por causa disso ela parece, não feia, de nenhuma forma, mas parece… frágil. Com maquiagem eu acho que ela não ficariam tão bem.
Você falou em batom, e em Minha Terra, África, os objetos são bastante importantes na condução do filme, pra narrativa. Os vestidos que ela veste, por exemplo. E também penso em 35 Doses de Rum…
A panela de arroz…
Sim. Acho que eles se tornam um pouco personagens às vezes. A comida em Nenette e Boni (1996), as roupas em Bom Trabalho… Quando você escreve, você imagina esses objetivos de alguma maneira específica? Como isso nasce?
Diz algo sobre os personagens, eles possuírem essas coisas. Há algo sobre a solidão deles nisso. Com Michel Subor e o barbeador elétrico, o barulho que faz em contato com sua pele, se barbeando na floresta… Eu acho que objetos algumas vezes tornam as pessoas mais frágeis até. Eles possuem as coisas, mas as coisas possuem eles, na verdade, entende?
Acho interessante que em Nenette e Boni há uma fronha num travesseiro que tem olhos de gato estampados, e parece que o travesseiro está olhando pro personagem.
Eu adoro isso também.
É uma espécie de piada, uma ótima piada… E em Sexta-Feira à Noite, essa coisa da vida dos objetos se torna literal com eles realmente tomando vida, o letreiro do carro…
Isso estava descrito no romance, que é narrado em primeira pessoa, pela voz da mulher, e ela estava dizendo que… ela estava sempre imaginando coisas.
Sim, e o filme tem de fato essa atmosfera quase onírica mesmo. É um filme gasoso, diria, tudo é um pouco etéreo, o uso das fusões reforça isso também. Noto também uma certa importância das cenas nas quais os personagens estão em movimento, nos meios de transporte: trem em 35 Doses de Rum; avião em Desejo e Obsessão; ônibus em Minha Terra, África; helicóptero em Noites sem dormir, carros em Sexta-feira à Noite…
A cena do Noites sem Dormir é realmente uma brincadeira, para mim. Quando eu comecei o filme, o caso real dos assassinatos estava encerrado. A polícia procurou os suspeitos por oito anos, porque eles começaram a matar no começo dos anos 1980, e eles foram pegos, por acaso, seis anos depois. Eu fiz uma brincadeira porque eles foram pegos como batedores de carteiras, e só depois perceberam que eles eram os assassinos que estavam procurando. Então, era divertido para mim ter os dois policiais no helicóptero no início brincando, fazendo brincadeiras idiotas, infames. Havia um certo humor na situação toda, porque eles mataram dezoito mulheres, durante um longo tempo e não eram pegos.
Voltando aos carros, nos filmes na África, Chocolate e Minha terra, África, é bastante importante o papel deles, ali há uma mudança temporal nos filmes, eles avançam ou retrocedem no tempo.
Sim, como um curta que fiz com (Jean Luc) Nancy, Vers Nancy (2002). Quando se está em movimento, há algo a ver com o tempo… o movimento te dá realmente uma oportunidade de se mover nele, sabe?
*Jô Serfaty é cineasta e produziu a Mostra “Claire Denis, Um Olhar em Deslocamento”
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