Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán (Brasil, 2013)

setembro 26, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

exiladosdovulcao

Todas essas imagens em que sou estrangeira
por Victor Guimarães

O que faz sentido não é assinalável em um lugar, substancial e definitivo;
o que faz sentido é a mobilidade mesma, a potência de deslocamento dos signos sobre o vazio”.

Marie-José Mondzain

A tela escura e uma voz feminina nos conta de um diário encontrado no incêndio. Em seus últimos escritos, o autor daquelas linhas já se limitava a convocar trechos de outras vozes, pertencentes a outras vidas. O que essa mulher lê – e que encerra essa espécie de prólogo – é um diálogo retirado de “O Estrangeiro”, de Albert Camus. Nele, alguém pergunta sobre como o interlocutor gostaria que fosse uma outra vida possível, ao que este responde algo como: “uma vida em que eu pudesse me lembrar desta aqui”. Exilados do Vulcão retomará alguns dos leitmotivs da carreira de Paula Gaitán, presentes em filmes como Diário de Sintra (2007) ou Vida (2008) – a relação com a memória; a conjuração das fotografias; a força dos poemas –, mas o gesto desse filme singular consistirá em inaugurar uma sensibilidade, em produzir um modo radicalmente distinto de articular esses elementos e, nesse movimento, engendrar um outro espectador.

Em um primeiro contato, a tarefa de decifrar os enigmas dessa narrativa é fadada ao fracasso. Resta então, ao gesto crítico, acompanhar algumas das operações estéticas do filme, no desejo de produzir, quiçá, um provisório testemunho espectatorial. “Experimente, não interprete jamais”, dizia o conselho de Deleuze retomado como “fórmula irrevogável” por Nicole Brenez em “De la figure en general et du corps en particulier”. Diante de um filme como este, visto uma única vez, assumir essa demanda crítica não é apenas um desejo consciente, mas o único gesto possível. Ao final do percurso, talvez seja possível oferecer ao leitor um primeiro relato, uma primeira tentativa de dar conta da experiência de ver – e ouvir – essa matéria estética, algo como um diário de espectador.

Findo o prólogo, o que veremos durante toda a projeção é um fluxo ininterrupto de imagens e sons, cuja potência autônoma – e também as conexões que se produzem na fricção entre uma e outra – ainda precisará ser medida com calma, um dia. À primeira vista, Exilados do Vulcão surpreende – se pensamos nos outros filmes da realizadora – por ensaiar um gesto marcadamente ficcional, que parte de uma proposição dramatúrgica: uma mulher (Clara Choveaux), atravessada pelo trabalho do luto, rememora (ou imagina, ou participa, ou tanto faz) a vida (ou as vidas) de seu amante (Vincenzo Amato), um fotógrafo que está sempre em companhia de outros personagens (principalmente de outras mulheres). Nesse percurso – que é também o do filme –, as figuras dramáticas aparecem e desaparecem como espectros de carne e beleza, em uma construção ao mesmo tempo etérea e profundamente física. Exilados do Vulcão é um filme de corpos no espaço; uma narrativa cinematográfica que, se parte de uma verve imaginativa, nunca deixará de se assentar na materialidade dos gestos e dos lugares.

A montagem tem diante de si uma tarefa das mais arriscadas: como não há linearidade dramática, como não há causa e efeito que concatenar, sua operação terá sempre de se constituir como um gesto puramente estético, um movimento de constante conquista e reconquista do espectador, tendo como única arma possível as imagens e os sons. Como em O Intruso, de Claire Denis, ou nos filmes – especialmente os curtas – de Apichatpong Weerasethakul, a montagem parece partir da existência fílmica dos planos, não para produzir significados, mas para engendrar modulações. Nas andanças da protagonista pelos espaços abertos, nos encontros entre o amante e suas mulheres; nas poses diante da câmera, nas cores de uma fotografia arrebatadora, no jogo de não-coincidência entre o movimento do quadro e o dos corpos, no nascimento de uma lágrima que surge no rosto, a escritura reconhece uma força e a faz vibrar em nós.

Mesmo que o que vejamos em cena seja um espaço vazio, um plano quase nunca é esvaziado da presença humana, uma paisagem quase nunca é um objeto de contemplação. Nos raros momentos em que o filme esbarra nesse gesto mais distanciado (como no plano da teia de aranha que se entranha na cerca de arame), a intensidade das imagens é ameaçada pela auto-suficiência, mas a montagem logo retoma o gesto que faz de cada corpo, de cada lugar um espaço povoado de afetos (no sentido deleuziano). Ainda que a significação dessa afetividade permaneça um enigma para a busca (certamente improdutiva) de um sentido último, o que importa é que o olhar que faz existir essas imagens é sempre um olhar implicado, e está sempre em questão: um afeto fílmico não é algo explicável pela ordem da psicologia, mas uma existência plástica que dispara nossa sensibilidade. A presença de alguns dos poemas – nos momentos em que o filme considera que estes são significativos a ponto de legendá-los – também nos distancia brevemente, pois nos obriga a um gesto de conjugação entre texto e imagens que faz com que estas percam, por um instante, a multiplicidade de sentidos que reside em sua autonomia. O filme é sempre maior quando não há uma mediação dessa natureza, e a montagem é sábia o bastante para reduzir esses instantes ao mínimo e retomar, logo em seguida, o fluxo sensorial que nos arrebatava.

A figura decisiva do filme é a da mutação ininterrupta: mudam os lugares, mudam os corpos em cena, mas muda também a enunciação, a perspectiva do olhar que os faz existir. Trata-se de uma escritura estrangeira, de um olhar que, se parte das projeções da personagem de Clara Choveaux, nunca será puramente subjetivo. Por vezes, é a ela que a câmera se dedica, como no inesquecível plano em que seu corpo nu é atravessado pelas luzes do quarto, da cidade que entrevemos pela vidraça e, por fim, por uma outra imagem que incide sobre sua pele. Noutros momentos, uma cena entre o homem e outra mulher será interceptada por sua presença, em um jogo de substituições que tem seu ápice na sequência do laboratório de revelação, povoado por um vermelho intenso e pela canção pop na voz de Karen O, que surge na trilha sonora para fazer o filme renascer uma vez mais. Entre a música que atravessa os ouvidos e as imagens que enchem a tela, é o cinema que é convidado a dançar uma vez mais.

Trata-se de uma canção do exílio, de um canto – decididamente feminino – dedicado a esses corpos e a esses espaços por uma escritura variante, múltipla, dilacerada, em contínua reinvenção de si. Exilados do Vulcão faz do movimento uma dança entre o olho da câmera e a densidade do espaço; do corpo, um poema em língua desconhecida; do deslocamento, uma errância alegre do sentido; da sala de cinema, um lugar em que todos nós somos docemente obrigados à poderosa tarefa de nos dedicarmos, plano a plano, a ser estrangeiros(as) de nós mesmos. 

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