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O autor-criança

É curioso que a competição do Festival de Cannes tenha começado sob o signo de dois filmes que podem ser chamados de “infantis”. Ainda que possa se discutir o quanto cada um deles é mais ou menos adequado para um olhar de criança como espectador, ambos certamente se irmanam a uma perspectiva de mundo totalmente construída a partir do olhar de seus protagonistas infantis, incorporando a experiência de descoberta do mundo como elemento central da composição de suas narrativas. Mas talvez seja igualmente interessante poder pensa-los/vê-los numa camada complementar, percebendo como ambos se conectam a uma ideia de cinema onde o próprio cineasta se coloca como uma “criança” – esses demiurgos, criadores de mundos fantásticos onde não apenas constroem suas próprias regras, como parecem constantemente interessados, acima de tudo, em fazer “viver” aquele universo particular de sombras na tela – e muitas vezes as histórias e personagens que engendram parecem pouco mais do que desculpas para exercitar ao máximo essas suas “brincadeiras”.

No caso de Todd Haynes, o título Wonderstruck não poderia ser mais direto sobre a importância da sensação de maravilhamento para o seu filme. E, se num primeiro momento qualquer ideia de “cinema infantil” parece surpreendente numa leitura mais direta (e rasa) dos filmes que o cineasta havia feito até hoje, no fundo as operações que ele explora neste novo filme guardam muitas similaridades com o seu cinema anterior. A começar por uma paixão transbordante pela história do(s) cinema(s), algo que acompanha a forma dos seus filmes desde os episódios radicalmente distintos esteticamente de Veneno (1991) e passa por experimentos mais diretos de espelhamento, como em Longe do Paraíso (2002). Nesse novo filme, Haynes explora especificamente as linguagens do cinema mudo (para a parte do filme que se passa em 1927) e do cinema americano dos anos 1970 (para a parte que se passa nessa década), buscando esse espelhamento entre o tempo que retrata e o cinema que se fazia então – sempre numa chave de entender que não é caso de se filmar como se estivesse fazendo um filme mudo ou um filme nos anos 1970, mas dialogando com uma estética que passou a ser a forma pela qual imaginamos ativamente esses tempos históricos. Ou seja, entender como, desde a sua criação, o cinema feito em cada época passa a ser um mediador também da construção de uma narrativa para cada tempo.

No entanto, embora essa chave explicitamente “estética” talvez seja a mais clara aproximação com outros filmes de Haynes, ela não é necessariamente a mais profícua. Pois, na maneira de se aproximar de seus dois protagonistas infantis, Haynes não demora muito tempo para demonstrar que, embora integrados a cotidianos familiares específicos, ambos são, de maneiras distintas, “órfãos” (a descoberta gradual de como o termo se aplica a cada um é uma das coisas mais fortes do filme, aliás). Para além desse sentimento do abandono e do não pertencimento, logo vão se juntar a deficiência física (no caso auditiva) e, em seguida, a fuga. Assim, os personagens passam a ser enquadrados pela chave das figuras marginalizadas, estranhas, “fora da norma” – em suma, protagonistas tipicamente haynesianos, cuja pouca idade logo se mostrará a novidade menos marcante.

De fato, talvez onde a infância se revele mais decisiva no filme seja mesmo na ideia de maravilhamento, que permite a Haynes exacerbar características que alguns de seus filmes anteriores conseguiam “sublimar” mais. Assim, ele pode liberar seus colaboradores como Ed Lachman (fotografia), Sandy Powell (figurinos), Leslie Shatz (desenho de som) e, de forma especialmente radical, Carter Burwell (música) para que juntos possam “sonhar um mundo de cinema” que se torna a verdadeira razão de ser e motor principal da sua narrativa. O filme, especialmente na sua primeira hora, parece fluir menos em função de uma relação narrativa entre suas duas tramas, e muito mais num sentido musical, rítmico, visual. Nessa construção, parece especialmente significativa a forma como ele busca cenas de rua com um sentido um tanto “espetacular” (em termos de número de figurantes, de objetos e veículos de cena, etc) para uma trama que é, no fundo, muito internalizada. Embora fosse fácil imaginar esse filme passado quase todo em espaços fechados, inclusive por “questões de orçamento”, essas cenas discretamente espetaculares se mostram essenciais para Haynes: se trata antes de tudo da ideia de construção de um “universo”, que não pode passar só pela trama nem pela estética, mas pelo sentimento que os personagens habitam de fato um mundo vivo, que respira em torno deles (e os fascina e sufoca). É essencial que acreditemos na verdade (cinematográfica, sempre) desses anos 1920, desses anos 1970 – principalmente quando as tramas confluem para Nova York (e não seria exagero ler o filme antes de tudo como um canto de amor a essa cidade, vista como o refúgio que abraça os marginais dos EUA – o desfecho em torno de uma maquete de NYC é de destroçar qualquer um).

Okja (2017), Bong Joon-ho
Okja (2017), Bong Joon-ho

Se essa crença absoluta no universo ficcional urdido é algo que vai se construindo cena a cena no filme de Haynes, em Okja, de Bong Joon-ho, ele explode na tela logo na cena de abertura (e créditos), que se constrói como um “institucional pós-moderno” para uma corporação que busca “humanizar” a sua imagem. Para além da presença sempre “super-humana” de Tilda Swinton como a CEO dessa empresa, e da premissa efetivamente de ficção científica em que se baseia a narrativa (a criação de um chamado “super porco”), o principal salto que se pede do espectador é para uma dimensão do sarcasmo e da hipérbole de uma série de características do mundo contemporâneo (o mundo das corporações; a sociedade do espetáculo; a instrumentalização das “causas nobres”; etc). Dali, o filme salta para um registro completamente distinto, nas montanhas da Coreia, no qual o elo é a criatura “supernatural” que dá título ao filme – mas que, no fundo, se comporta apenas como um bicho de estimação bastante grande (que ele pareça com Totoro – inclusive com uma cena particularmente parecida na beira de uma cachoeira – chega muito mais como uma admissão da importância de Myazaki como referência infantil do que exatamente uma incorporação do que são as bases do cinema do cineasta japonês).

A grande dificuldade de Bong nos fazer habitar seu universo da forma como Haynes consegue me parece vir justamente dessa cisão entre dois humores tão completamente distintos: o sentimento profundo, humano e físico, que une Okja, a criatura, a Mija (An Seo Hyun), a menina sul-coreana; e o cinismo absurdo de toda a trama propriamente “de ação” que se urde em torno deles, com o confronto entre a corporação maléfica e os ativistas ecológicos radicais (mas humanos). Algo se perde constantemente entre esses dois “sentimentos de mundo”, um atravancando o caminho do outro, criando uma efetiva divisão entre duas narrativas muito maior, emocionalmente, do que os 50 anos que separam as histórias paralelas de Haynes.

Que o filme de Haynes seja uma produção da Amazon Studios e o de Bong uma produção original Netflix (com toda a polêmica associada a isso na sua inclusão no programa de Cannes), muito mais do que uma discussão sobre migração de telas e afins, torna-se fascinante se pensado que os dois “gigantes virtuais” se movem, em termos de liberdade autoral e escopo de projeto, da maneira que os estúdios americanos já fizeram – mas hoje só se dedicam a seus projetos de blockbuster. Parece bastante impensável imaginar nomes (e sentimentos de cinema) como os de Haynes e Bong recebendo “luz verde” para os filmes que apresentaram aqui (com seus orçamentos e ambições enormes) no sistema atual dos estúdios. Há um sentimento algo similar com alguns projetos de Coppola, Cimino, Scorsese no final dos anos 1970 (e aqui não falamos de estética nem visão de mundo ou de cinema, pois passaram-se 40 anos e todos sabemos disso), outro momento em que os autores puderam usar o sistema para criar seus universos de sonho – na maior parte das vezes com resultados financeiramente desastrosos para os estúdios de então. Será que os autores-criança do século XXI poderão contar com um sistema mais amigável para continuar suas construções demiúrgicas – ou será essa uma outra bolha que explodirá rápido?


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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