Carol, de Todd Haynes (EUA, 2015)

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Fábio Andrade

* Cobertura do 53o New York Film Festival 

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Através de um vidro coberto de chuva
por Fábio Andrade

Há um motif central em Carol que é retomado de tempos em tempos feito um portal que leva ao momento do trauma, ao instantâneo que se vê mesmo quando se fecha os olhos (nesta escuridão auto-imolada que permite que a mesma imagem luminosa imprimaimprimaimprima, 24 vezes por segundo, em loop, e que atormenta aquele que já chega atrasado e que não consegue se livrar do cinema que carrega dentro do crânio). Este portal, na verdade, é uma janela, mais precisamente a janela de um carro, emoldurando o rosto de Therese Belivet (Rooney Mara, que não consegue evitar as feições de Audrey Hepburn, em mais uma camada de auto-reflexividade em um filme composto por uma pilha delas) olhando para fora do carro, através da distorção prismática causada pelas gotas de chuva que acumulam sobre o vidro feito túneis que levam a um tempo e um lugar diferentes. É por esta janela que uma imagem corrompida do passado é remontada, mas quando falo do passado aqui é para dar conta de mais do que o que acontece no mundo diegético, se esparramando para antes de o filme ter começado. Na verdade, em Carol a linha que separa o mundo do filme do mundo do cinema é também vista através desta janela coberta de chuva, com suas gotas que distorcem e imprecisam (uma linha cheia de picos e vales, como a impressão de um eletrocardiograma). Mesmo assim, este momento, espatifado em partículas que flutuam dentro de cada uma dessas várias contas de água, é extraordinariamente vibrante e vivo, chegando a adquirir cores, pintadas pelos anos de recordação romantizada sobre a base em preto e branco…

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Para Therese e para Todd Haynes, o momento do trauma visto por esta lente acidental se passa em um café, que pode bem ter um duplo de si mesmo em uma estação de trem, ou trancado em um estúdio de cinema em algum lugar da Grã Bretanha, pouco antes do final da guerra, no princípio de 1945. Este café (será este o lugar? Ou apenas o seu duplo?) não está lotado nem totalmente às moscas, mas a despeito da ação coreografada ao redor, duas mesas fisgam nosso olhar. Em uma delas, Therese tem o que parece ser a sua última conversa com Carol Aird (Cate Blanchett). Na outra, Laura Jesson (Celia Johnson) conversa com seu amante, o médico Alec Harvey (Trevor Howard), pela ultimíssima vez, na obra-prima de David Lean, Desencanto (1945). As duas conversas são conectadas por uma mesma interrupção, que obriga a performance a se reorganizar, disparando um gesto totêmico e silencioso: quando Carol e Alec se levantam para ir embora, eles colocam uma mão no ombro de suas amantes.

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Se David Lean fez um filme inteiro apenas para conferir o devido significado àquele gesto aparentemente casual, repetindo-o ao final do filme como a quarta capa que se fecha sobre um livro (mas neste estranho livrinho há mais peso depois da última página do que em sequência à primeira), Todd Haynes faz todo um filme para atualizar esta experiência cinematográfica e o mundo de afeto depositado nesta imagem de uma mão sobre um ombro. Em um momento aparentemente desimportante do filme, conversa jogada fora desembrulha este relacionamento obsessivo, revendo compulsivamente Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, até poder se concentrar “na correlação entre o que os personagens dizem e o que realmente querem dizer”. Quando vemos esta mão repousando sobre este ombro pela primeira vez aqui, já a vimos antes (no meu caso, muitas vezes); por isso mesmo, sabemos bem o que ela significa: se Laura e Alec foram os adúlteros românticos de sua época, agora a mesma canção embala o amor aparentemente impossível entre Carol e Therese. Choremos por elas, pois elas falam por nós.

Desde que Todd Haynes surgiu como uma das grandes novas vozes do cinema norte-americano, com Superstar: the Karen Carpenter Story (ainda não tive a chance de ver seus dois primeiros curtos), ele vem esculpindo um interessante equilíbrio entre o maneirismo explícito (Carol alude a Desencanto tanto quanto Longe do Paraíso se referia a Douglas Sirk, ou Velvet Goldmine a Cidadão Kane) e ao recondicionamento crítico de estruturas cinematográficas tradicionais (o filme biográfico no brilhante I’m Not There; o drama de dona de casa suburbana em Safe; a sitcom em Dottie Gets Spanked; os três gêneros que formam o alicerce de Poison) a preocupações urgentes próprias à sua época. A imagem resgatada de David Lean aqui serve a ambas as causas: ao mesmo tempo em que invoca o momento em que a retina é queimada pelo instante de revelação – experiência que é dramatizada em Dottie Gets Spanked – ela atualiza a fundação desta imagem às lutas do presente. Se Todd Haynes é um maneirista – e a imagem memorial vista através da superfície distorcida da janela coberta de chuva é uma tradução poderosíssima deste impulso maneirista – sua relação com estas gemas do passado não cheira a (ci)necrofilia; o rosto do trauma só parece reconhecível por já ter sido disparado e ativado por novas formas da mesma opressão convencional, mas também pelo mesmo e sempre novo amor. Temática e formalmente, Carol é cravado no centro da cruz onde estes dois caminhos opostos interseccionam.

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Esta tensão é vital para um filme que se propõe a reapresentar o melodrama não pela beauté du geste – inevitável que seja – mas porque apenas o melodrama pode contar esta história no presente do indicativo: Therese é esta personagem estranha que de fato age e diz exatamente o que pensa. Em época em que mesmo o cinismo já foi agraciado com o triste prefixo “pós” – carregando A Imigrante (2013), de James Gray, como porta-estandarte da derrocada do drama sob o peso do academicismo auto-consciente (mesmo que dotado de inegável talento) – é não só um refresco conhecer e se apaixonar por uma personagem como Therese; é sinal que algumas coisas não foram totalmente perdidas. Toda a meticulosidade com que Haynes recria este abraço fílmico, do décor enfumaçado à textura palpável do grão do super 16mm, só encontra lastro porque a vida contemporânea já reivindicou as convenções do melodrama (adicionando um ponto final de otimismo, como o epílogo atesta política e esteticamente). No mundo de hoje – o que significa que Carol é tanto um filme lançado após a legalização do casamento gay nos Estados Unidos que se passa em época não tão distante quando histórias de amor como esta não eram permitidas que florescessem, quanto é um passo decidido a uma modalidade de auto-reflexividade contemporânea que opta não se encerrar em cinismo esclarecido – a missão da heroína é não exatamente aprender a dizer “não” para poder descobrir quem é, mas escolher dizer “sim” à sua própria maneira. Na história de Therese e Carol, é possível ver a reencenação do romance fracassado de Laura e Alec, mas também a chance de presenteá-lo com outro final; é por isso que esta história precisa ser contada desta maneira, mesmo que seja pela última vez.

Embora certamente existam tons sociais e políticos monitorando este desejo de reabilitar as dores do passado, Carol só é um filme realmente belo por conseguir encontrar espaço para vida nova nas convenções mumificadas do gênero (mesmo quando a múmia calhava de ser bela, como em Amor Profundo, de Terence Davies). O arco emocional regido pela ação da protagonista é muitas vezes interrompido por stacattos de flutuação em experiências puras de tempo, luz e som, seja por conta de um plano que não parece ter qualquer função além de deixar o sinal do fim do turno de trabalho soar, seja na escolha de manter a câmera rodando após uma porta se fechar, observando a silhueta de um personagem visto através da janelinha da porta sendo afetada pelas mudanças de luz na cena. A beleza da arte narrativa dominada por David Lean encontra, por meio de Haynes, a expressividade da experiência subjetiva redefinida por Hou Hsiao-hsien (Millennium Mambo vem sempre à cabeça – outro filme que, como Desencanto, tem um dos melhores usos de narração em voz over da história do cinema), e o faz porque personagens que desafiam o tempo e filmes que confrontam seu próprio lugar na história precisam de mais espaço para que as implicações de suas ações reverberem livremente. Purificado por esta saturação de fé, o cinema encontra novamente o tempo e o espaço para contemplar a única questão verdadeiramente vital: como uma mão pode repousar sobre um ombro de maneira a carregar não apenas o peso de toda mão que já repousou sobre qualquer ombro, em qualquer lugar, em qualquer momento, mas o de todo gesto tão cheio de significado quanto este já realizado no mundo?

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