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Formas da deriva

Rever Aloysio Raulino hoje é descobrir um continente inexplorado. Sua obra como diretor é, ao mesmo tempo, um inventário de figuras singulares do povo, esse emblema tão duradouro na história do cinema, e um manancial exuberante de pensamento cinematográfico. Entre os habitantes desse continente (que tantas vezes teve um epíteto: São Paulo), destaquemos três: Deutrudes Carlos da Rocha, baiano, lavador de carros na periferia; Arnulfo Silva, o Fenômeno, escravizado quando criança, hoje “físico orientador da paz de espírito universal”; Rosendo, jovem trabalhador paraguaio, que vem tentar a vida na grande metrópole ao lado de outros (i)migrantes. É em torno deles que se constroem os curtas Jardim Nova Bahia (1971) e Teremos Infância (1974) e o longa Noites Paraguayas (1982).

Em torno: Deutrudes conta a história de um amor malogrado, enquanto Raulino filma os rostos de outras moças no forró; Arnulfo disserta com seu léxico particular, enquanto a câmera descortina a multidão nas ruas da cidade; Rosendo emigra, e o filme faz chegar até ele, em associações livres, a saga de outros irmãos de sina – os conterrâneos paraguaios, o garçom nordestino, o pedreiro negro. Embora se concentre frequentemente num protagonista, a dramaturgia em Raulino é descentrada por uma energia coral. O um é povoado por muitos. O singular é sempre plural. Não estamos longe da alegoria moderna: Deutrudes e Arnulfo são também o Brasil, e Rosendo é também Latinoamérica, mas o impulso alegórico em Raulino é sempre fragmentário, inacabado, perturbado por uma dialética sem síntese.

O que vibra nesse cinema é o embate incessante entre duas paixões simultâneas. De um lado, a necessidade da revelação de um país submerso: “Recentemente foi aberta uma avenida em São Paulo. Ela nos obriga a ver a cidade por dentro”, dizem as cartelas iniciais de Lacrimosa, de 1970. De outro, o mergulho visceral nas vicissitudes do encontro, que desestabiliza os olhares e faz estremecer a forma, até que ela se dobre sobre si mesma: a errância desencontrada com as crianças de Teremos Infância, a aventura experimental de Jardim Nova Bahia, o antinaturalismo de Noites paraguayas. Em Raulino, a reflexividade não é um fim, mas uma das forças de uma deriva poética que consiste em se lançar ao mundo para retornar ao cinema. Ou vice-versa.

Deriva que acontece no espaço (da periferia paulistana ao centro de Assunção, da estação do Brás à aldeia Guarani), no manejo da câmera (é Raulino quem a leva nos ombros em todos os filmes, em coreografias surpreendentes), no laboratório (as fascinantes variações fotográficas só são conseguidas porque o cineasta se lança às desventuras da revelação) e também na moviola: a montagem vertical se faz errante, desvia o sentido das imagens, conjuga encontros musicais improváveis – Luiz Gonzaga e os Beatles (Jardim Nova Bahia), Brahms e o cancioneiro religioso popular (Teremos Infância), Moraes Moreira e Odair José (Noites Paraguayas) –, até o ápice, a cena de Noites… na qual um pedreiro “executa” o estudo Revolucionário, de Chopin, transformando em piano uma tábua de construção.

Não é à toa que os dois filmes explicitamente citados em Noites… sejam Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968). Raulino começa a filmar em 1969, quando – segundo a historiografia corrente, embora contestada – as esperanças do Cinema Novo já foram atropeladas pela História, dando lugar ao desencanto dos primeiros filmes do Cinema Marginal. Mas seu cinema será sempre o palco de uma batalha campal irresolvida entre a utopia e o desespero. Raulino filma como quem carrega tardiamente as aspirações dos anos 1960 na América Latina – a descoberta das nações usurpadas, a intervenção na realidade –, mas com uma consciência tão aguda das contradições de seu meio, que não pode se lançar ao encontro sem se dedicar, no mesmo gesto, a interrogar o cinema. Filma com “uma câmera numa mão e uma pedra na outra”, como diziam Solanas e Getino, mas com a certeza de que o primeiro alvo da pedra deve ser a própria câmera.

É assim que Teremos Infância e Jardim Nova Bahia são filmes partidos ao meio. No primeiro, o que marca a interrupção é o abrupto chicote da câmera, que, de súbito, abandona o protagonista e passa a acompanhar as crianças que observam a cena, para recomeçar outro filme – igualmente inacabado – com elas. No segundo, são as fotos still de Luna Alkalay e a posterior irrupção das imagens feitas por Deutrudes, que instauram um regime visual outro – as panorâmicas, a precisão do enquadramento, o balé elegante da câmera de Raulino são perfurados por uma visualidade igualmente derivante, mas errática, hesitante. E, no entanto, quando a câmera de Deutrudes se encontra na rua com uma mulher negra que segura uma criança e pede dinheiro, não estamos longe dos transeuntes do seu O Tigre e a Gazela (1974).

A famosa passagem da câmera para o sujeito filmado em Jardim Nova Bahia tem efeito duplo: documentar a imaginação dos pobres (a realidade é opressora demais para nos contentarmos com ela, eis a lição das colagens de Santiago Álvarez) e corroer a carne do cinema. Algo semelhante ocorre em Noites Paraguayas: os sonhos, tanto dão vazão a impulsos poéticos dissonantes em relação ao realismo fundador da trajetória dos personagens quanto são a ocasião de pequenos ensaios oníricos, que escapam à ficção principal e se movem entre o teatro do absurdo e Brecht, entre a cena picaresca à Boca do Lixo e o found footage. Em Teremos Infância, a tentativa de documentar o sonho (“Falar o quê?”, pergunta o menino; “Inventa uma história!”, exorta a voz do cineasta) é assombrada pelo fracasso do desencontro. Resta o olhar desconcertante, a expressão incômoda, o sorriso entredentes.

Nenhuma demagogia disfarçada de altruísmo, nenhum populismo travestido em má etnografia. “Strawberry Fields Forever” interrompe o ruído da câmera de Deutrudes e soa alto na voz de Richie Havens, enquanto o mito do “dar voz ao outro” se encerra antes de poder começar. O cinema de Raulino é a cena dissensual de um atrito entre subjetividades – quem olha, quem filma, quem vê – que nunca se encerram nos confins da identidade. E, se o olhar frontal para a câmera é o leitmotiv de sua filmografia inteira, é porque essa insurreição formal marca, ao mesmo tempo, o desejo de interrogação do outro, a ruptura da transparência cinematográfica, a colocação em relevo do conflito entre quem filma e quem é filmado e o engajamento inevitável do espectador, que não pode mais contemplar imune, não pode mais desviar o olhar.


No dia 18 de Maio às 19h, a Sessão Cinética exibe, no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro, três filmes do cineasta e fotógrafo Aloysio Raulino: Jardim Nova Bahia (Brasil, 1971),  Teremos Infância (Brasil, 1974) e Noites Paraguayas (Brasil, 1982). A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Os filmes serão exibidos em cópia digital restaurada.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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