Sob o peso da força

outubro 3, 2013 em Cinema brasileiro, Colaborações especiais, Em Pauta

Corpo Presente (2011), Marcelo Toledo e Paolo Gregori

Corpo Presente (2011), Marcelo Toledo e Paolo Gregori

por Francis Vogner dos Reis (colaboração especial)

George Orwell diz que a imagem do futuro
é a bota sobre um rosto, eternamente,
e a nítida impressão que a gente sente
é que vivemos já num tempo escuro.
O Burgess, por sua vez, também foi duro
quando pegou seu jovem delinqüente
e o converteu num ser subserviente
que só lambia sola, robô puro.
O Glauco aqui, que vive do passado,
saudoso duma infância de opressão
(só fui pelos moleques abusado),
É o mesmo Glauco agora, e lambe o chão
pisado pelo mesmo tipo sado;
só que antes enxergava, e agora não”.

Soneto Futurista” – Glauco Mattoso

O que acontece com o cinema paulista?

2013 – O que acontece com o cinema paulista? A indagação é crítica, mas não depreciativa. Ao menos não necessariamente depreciativa. Diferente de alguns de seus mais extremistas defensores de viseira (daquela usada em equinos) ou tapa olho, a categoria “cinema paulista” (que para esses se distinguiria da de “cinema brasileiro”, ao menos quando lhes convém), mais do que um rótulo ou uma identidade de inscrição regional, não é e nunca foi uma coisa só, ainda que tivesse na monumentalidade batateira da Cia Cinematográfica Vera Cruz de São Bernardo do Campo uma sina (ou uma cruz) segundo a qual o cinema de São Paulo iria se articular e se aprimorar técnica e profissionalmente afinal, muitos dos técnicos do cinema e da televisão paulista dos anos 1960, se não passaram pela Vera Cruz, foram formados por alguns profissionais que ali trabalharam. Apesar disso, a Vera Cruz se tornou um exemplo quase anedótico e desastrado (e também colonizado) de padrão de qualidade. Glauber Rocha dizia que o novo cinema não poderia vir de São Paulo, dada a herança industrialista esboçada em companhias como a própria Cia Vera Cruz ou a Maristela Cinematográfica. Ele via, nesse legado, nesse academicismo pobre, algo profundamente decadente: para depreciar Dona Flor e seus dois Maridos, por exemplo, disse ser este “um filme da Maristela”.

Vera Cruz

Cia Vera Cruz

Se não é possível renunciar ou simplesmente rechaçar a paradoxal importância da Cia Vera Cruz, é também elementar o fato de que ela foi a primeira tentativa mais sistemática de industrialização do cinema em São Paulo. Essa “índole industriosa” do cinema paulista, tal como já apontou Rubens Machado Júnior, não nasceu com a companhia ítalo-são bernardense e perduraria durante as décadas seguintes sob variados modelos e discursos. Dependendo das circunstâncias, essa demanda (ou desejo) industrial não era necessariamente má, ainda que não fosse fundamentalmente boa. Essa dicotomia não é a questão. O problema é da ordem do discurso, da prática e da mentira conveniente: solicitar um padrão de desempenho ($$$) quando não há mercado (ou quando só há um mercado virtual); pensar em políticas de fomento visando modelos de produção homogêneos (o filme de baixo orçamento mais caro do planeta é em São Paulo); falar em pluralidade quando, na prática, o estímulo maior é para um determinado modo de produção (ou seja, por um específico modelo de divisão de trabalho). Há pouco espaço – seja de visibilidade, seja de disputa de recursos – para o amadorismo, apesar de ele existir na cidade e não estar restrito somente a um gueto diminuto e nem querer se bastar em um franciscanismo altruísta.

Na história do cinema brasileiro (aqui, especificamente o paulista), sempre houve relações de força muito violentas entre os poderes (financeiros, estatais) e os realizadores. Sobrevive quem sabe acumular força política e econômica ou, em outro diâmetro, quem sabe resistir ao “peso da força” nas fissuras das contradições e transformar essas mesmas contradições em instrumentos e meios de criação estética propositiva e, nos melhores casos, agressiva. Agressão, que se entenda, não no sentido pueril (que se limita a temas, signos, repertório, estilização), mas no modo de forjar na forma, na tortuosidade à qual a matéria fílmica é submetida pelos próprios processos que possibilitam e, ao mesmo tempo, limitam sua existência. É nessa dialética complexa, porém evidente, que os filmes “irreconciliáveis” se fizeram. É a modernidade incontornável do cinema. Tentar suprimir ou escamotear essas contradições é um problema estético grave, porque é quando a ideologia se afirma violentamente se entendermos ideologia não segundo o senso comum (como um ideário político coerente), mas no sentido crítico, ou seja, como aquilo que estabelece relações de dominação e vela a realidade sob uma aparência e um discurso.

Essa é uma questão do cinema, mas também é uma questão da cidade, uma cidade que paga (literalmente) um preço alto por ser uma capital da indústria e dos serviços, das grandes – e restritas – oportunidades, da força da grana que, como versou Caetano Veloso em “Sampa”, “ergue e destrói coisas belas”, embora hoje (e talvez há muito tempo) a força da grana se limite a destruir coisas belas e erguer coisas funcionais, porque esta é expressão da economia de tempo (e logo, de dinheiro). São Paulo se tornou o inferno da especulação e uma cidade, aparentemente, com pretensões funcionais, ainda que seja ela toda cruelmente disfuncional, de disputa intransigente de espaço, de loteamento privatista, de ausência de espaços vazios e da quase supressão de espaços de convivência. São Paulo: lugar em que o trabalho responde à sua concepção mais célere e alienada e o capital financeiro à sua noção mais fetichizada. Não que outros lugares sejam paraísos idílicos livres do capitalismo voraz mas, São Paulo, por sua força, desenvolvimento e poderio econômico, faz do seu laisser faire capitalista uma eminência obscena em quase todos os processos sociais e políticos da cidade. “Paulista só pensa em trabalho” é uma frase corriqueira em vários lugares do Brasil. Mas a sentença é equivocada. É o trabalho que absorve, não só o paulista, mas quem na cidade se instalar. A subordinação ao custo de vida, aos ambientes de trabalho, ao tempo célere, às lógicas de grupo, é prerrogativa e exigência. Tentar controlar essa força racional e absurda é uma questão de resistência. É a força que deforma, com seu peso, quem tenta controlá-la.

Em torno dos elementos primordiais da violência: breve cronologia

Uma breve cronologia do cinema paulistano sobre as relações de violência: nas relações entre os entes, entre os grupos, entre o capital e o trabalho, entre o cinema e a cidade. Nesta lista não há omissões deliberadas, mas escolhas estratégicas (ou táticas, tanto faz).

1958 – O Grande Momento, de Roberto Santos: Incongruência e contradição entre demandas sociais e meios para sua realização. O dito popular de “casar ou comprar uma bicicleta” sofre uma variação que apaga a oposição (e escolha) em chave de triste determinismo: “vender a bicicleta para se casar”. Jean-Claude Bernardet definiu a trajetória do personagem como “corrida atrás do dinheiro”. A cidade é ainda mais horizontal do que vertical. Existe um horizonte, apesar de tudo.

1963 – Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri: Dois burgueses e duas prostitutas em um apartamento em São Paulo. A relação mediada pelo dinheiro na tradicional dicotomia khouriana, entre o cinismo exasperado da ostentação e dos excessos (Odete Lara e Mario Benvenuti) e os sentimentos nobres, impossibilitados pelas relações de dinheiro (Gabriele Tinto e Norma Bengel). É um dos poucos filmes de Khouri em que a cidade não é somente vista da janela do aparamento, mas sim da perspectiva das galerias de boutique e restaurantes na noite e na madrugada (quando a cidade dorme).

1965 – São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sergio Person: Carlos é demitido da Volkswagen e, em plena expansão da indústria automobilística, se emprega na fábrica de Arturo, que faz peças para as grandes montadoras de São Bernardo do Campo. Da condição de formado em curso técnico e estudante de cursinho de inglês, Carlos se transforma em um pequeno burguês. A cidade, agora absolutamente verticalizada, nunca pára, nem na virada no ano novo, em que os concorrentes da Corrida de São Silvestre saem em disparada. A cidade é uma espécie de labirinto existencial em movimento e circulação constante. Um organismo vivo que devora seus filhos, como Cronos.

1974 – Zézero, de Ozualdo Candeias – Zézero abandona a vida no campo, que nada tem de idílica, para tentar a sorte na cidade grande, que de atraente nada tem. Ali, passa a trabalhar em construções e a gastar dinheiro com prostitutas e bilhetes de loteria. Não há dicotomia estreitamente valorativa entre vida no campo e cidade grande. As duas são atravessadas pela miséria das condições e pela miserabilidade das relações. Em oposição a São Paulo Sociedade Anônima, não há psicologia, não há a impecabilidade do corte (continuidade), não há a vertigem existencial. Coisas de burguês. Em Zézero, há matéria e objetividade, os descampados, a coloquialidade da fala e a clareza nua das ideias. Os jogos de poder são violentos. O dinheiro está no centro. Depois de ganhar na loteria e constatar que não tem mais família ao voltar para o interior, Zézero pergunta: “e agora o que eu vou fazer com todo esse dinheiro?”. A resposta ecoa categoricamente: “Enfia no cú”.

1981 – O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade – Deraldo é um poeta popular nordestino que mora na periferia de São Paulo e vende seu trabalho nas ruas do centro. É confundido com um operário pelego que matou o patrão. É perseguido pela polícia e se esconde em subempregos (construção civil, manutenção em uma mansão, obras do metrô), aos quais não se subordina. É como se, nos empregos, ele se confundisse com a massa, perdesse a identidade. A cidade é como um canteiro de obras amparadas pelos migrantes que recebem salário ruim. A objetividade crua da câmera tem uma textura que amplia a aspereza da realidade. É um paradoxo: de realismo de lumpemproletariado, é tão didático que é quase delirante, mas nunca abstrato.

1982 – Noites Paraguaias, de Aloyzio Raulino – Depois do migrante de João Batista de Andrade, os imigrantes de Aloysio Raulino. Trabalhadores paraguaios tentam a vida em São Paulo. As alturas da cidade filmadas do chão, com a câmera a altura dos olhos. A realidade incitava o imaginário (que era documentado). O movimento da cidade e das ruas. Diferente de muitos filmes atuais que filmam São Paulo, o aparato cinematográfico (mínimo) não é um obstáculo para a realização do filme. É irônico, mas é verdade. A cidade nunca teve sua feiura hostil transformada em poesia gentil como no traveling que Raulino faz ao som de “Meninas do Brasil”, de Moraes Moreira. É a subversão de lógica: São Paulo, que nunca dá boas vindas, nos saúda. É um dos travelings mais bonitos do cinema brasileiro, ainda que a cidade continue ordinária, feia e acinzentada.

1987 – Beijo 2348/72, de Walter Rogério – A crítica vem por meio do burlesco, porque constata o absurdo. Norival beija Catarina em pleno expediente de trabalho. É demitido por justa causa. O número do processo era 2348/72. O trabalhador, antes vítima de um desamparo jurídico, é agora vítima da burocracia. O comentário sobre a questão segue abaixo em A Causa Secreta.

1996 – A Causa Secreta, de Sergio Bianchi – “a burocracia também é a causa da miséria”, brada Lígia Cortez, integrante de um grupo de teatro às voltas com a burocracia do “balcão” do financiamento público de cultura. É a década de 1990, e o diretor observa os trabalhadores da arte. Teatro do absurdo, de Sergio Bianchi – documento histórico sobre o início da burocratização dos processos artísticos em uma cidade intransigentemente administrada (ao sabor da incompetência). A cidade não dá o ar da sua desgraça em sequer um plano. Ela e suas instituições são citadas (verborragicamente), mas não mostradas.

1997 – Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral – Dalva, cabelereira da Mooca, ganha concurso para ir a Miami. Vítor, o namorado agressivo, quer impedi-la. As relações de poder ganham outra dimensão, íntima e de gênero. O espaço em princípio é a casa, a cidade pulsa do lado de fora, mas interfere decisivamente no seu interior via televisão. Mesmo que o trabalho não seja uma questão, o trabalhador (sabemos que ela é cabelereira, ele metalúrgico) é. A violência em huis clos.

O Grande Momento (1958), Roberto Santos

O Grande Momento (1958), Roberto Santos

Se fosse possível fazer um gráfico, é interessante observar como aspectos amplos da sociedade repercutem na intimidade em O Grande Momento e ganham maiores dimensões no filme de Person, que tem imersão na subjetividade do personagem. Do pequeno patrão de São Paulo Sociedade Anônima, segue-se para os trabalhadores em deslocamento em Zézero, O Homem que Virou Suco e Noites Paraguaias. Da exploração à comédia do operário encurralado pelo legalismo em Beijo 2348/72, se estende para o absurdo da burocracia em A Causa Secreta. Já em Um Céu de Estrelas, voltamos à intimidade doméstica. Mas aqui não há leitura mais abrangente de problemas mais gerais, mas sim a particularidade e a singularidade.

Como os filmes paulistas atuais problematizam, se subjugam ou resistem a essa força? A questão do trabalho (como problema nos filmes) ou do cinema como trabalho (como problema dos filmes) é uma questão do cinema paulista pelo menos desde os anos 1950. Hoje, existem muitas obras que partem desses pressupostos. Corpo Presente (2011), de Marcelo Toledo e Paolo Gregori e Supernada (2012), de Rubens Rewald, têm no trabalho e nas suas mediações incontornáveis problema fundante. Também Falsa Loura (2007), de Carlos Reichenbach, e Trabalhar Cansa (2011), de Marco Dutra e Juliana Rojas, são dois exemplos notáveis que partem do trabalho como constituição e descaracterização dos sujeitos.

Venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse – Itamar Assumpção

Antes que a “sociedade amigos do cinema paulista” em sua versão mais yuppie, rancorosa ou cabotina, reclame, é preciso dizer que esse texto não é uma tese abrangente, um diagnóstico totalizante sobre o cinema paulista, nem procura rechaçá-lo em bloco, mas sim arrisca identificar algumas linhas de força que refletem problemas estruturantes que condicionam determinados automatismos estéticos de um cinema que, em muitos casos, é sabotado pelos seus próprios condicionantes. E quais seriam esses condicionantes? Seriam as necessidades prévias que não diriam respeito às prioridades criativas, mas sim a um certo modelo de gestão econômica que antecede aos filmes e que não encontram resposta no mercado. Ora, a primeira contradição: como partir de um modelo econômico, se esse modelo não responde a uma demanda objetiva, ou melhor, concreta? Longo assunto e intrincado problema que realizadores mais jovens e associações de classe visam equacionar por meio de ações propositivas e enfrentamentos políticos necessários e cada vez mais inevitáveis.

Voltamos à pergunta: o que acontece com o cinema paulista? De que modo ele deixa evidenciar, nas suas formas, o peso de suas condições (materiais, profissionais, econômicas)? Como essa violência se enuncia? Ponto significativo: a violência que tratamos aqui não é necessariamente a da representação, mas a violência do próprio processo social no qual o cinema está inserido inevitavelmente.

Na última década, alguns filmes feitos na cidade de São Paulo como o díptico de Roberto Moreira (Contra Todos, de 2004, e Quanto Dura o Amor, de 2010), Corpo (2007), de Rubens Rewald e Rossana Foglia, Cabra Cega (2005), de Toni Venturi, Não por Acaso (2007), de Philippe Barcinski, Jogo Subterrâneo (2005), de Roberto Gervitz, Quanto Vale ou é por Quilo? (2005), de Sérgio Bianchi, O Cheiro do Ralo (2007), de Heitor Dhalia, e até mesmo um filme tão despojado como Bróder (2009), de Jefferson D, só para ficar em alguns exemplos paradigmáticos, sofrem de uma rigorosa contenção (e correção) estrutural e asfixia cênica. Trocando em miúdos: apreço demasiado pelo naturalismo, obsessão acentuada por uma “ciência” do roteiro, ordenação de mise en scène dos anos 1930 (rigidez cênica ilustrativa de roteiro) em um controle imobilista e asfixiante, que consiste em uma scène (cena) sem uma lógica de mise en (colocar em). Cenografia sem cena, como escreveu Serge Daney, só que, diferente do cinema clássico, sem um “desejo de mais ver” (atrás, através). O trabalho que antecede as filmagens, mesmo que não garanta controle absoluto, dita de forma muito cerceadora o processo do filme. Há, nesses filmes todos, uma busca de excelência técnica e artística que permite ver as contradições desse modelo de produção, menos pelo que escapa ao controle e mais pela tentativa de apagamento (ou ocultamento) dos problemas oriundos do modo de produção. O aceno da contradição se dá de modo reverso, como refluxo. Dissimulado.

Beto Brant (até nos seus filmes menos interessantes), Carlos Reichenbach (este que durante um bom tempo ainda será visto como um “cafona”, um boa praça que “não sabe dirigir atores”) e Ugo Giorgetti não escapam também desses problemas, com a diferença de que não dissimulam o que inevitavelmente é disfuncional no modo de produção contemporâneo. As contradições estão visíveis em uma parcimônia quase teatral de seus registros. Eles não filmam o artifício como correção do real, mas filmam o artifício com artifício, o desequilíbrio sem atenuantes. Elogio do disfuncional? Não exatamente, mas solicitação de modernidade. Isso que restitui – apesar dos pesares – uma complexidade aos filmes, que nos relembra dos paradoxos das reminiscências teatrais do cinema, da imprevisibilidade da matéria fílmica e dos corpos, dos arranjos entre o técnico e o estético, sem que o primeiro se sobreponha ao segundo e sem que este segundo ignore o primeiro. Há outros filmes, como os recentes Avanti Poppolo (2012), de Michael Warmann e Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas que também têm o mérito de serem, nesse sentido, “modernos”. Fazer afirmação do moderno, aqui, de maneira valorativa é fundamental.

Trabalhar Cansa (2011), Marco Dutra e Juliana Rojas

Trabalhar Cansa (2011), Marco Dutra e Juliana Rojas

A modernidade solicitada não ignora a violência da representação – uma violência em diversos níveis, não só na sua estilização ou no ethos e no logos do drama, mas também na tortuosidade dos seus meios de realização e na gestão econômica do seu processo, assim como no confronto com a atualidade e seus discursos e clichês (voltamos à ideologia). Conflito inevitável. Essa violência (mesmo que velada) se faz sentir, na enunciação dos seus paradoxos, na constatação de suas contradições flagrantes. O cinema é como um instrumento que conjuga poder e dá a ver – no forjamento de suas formas – relações de força, não só pelas questões que sugere, mas sim pelo modo como essas questões são desrecalcadas e denunciam (não negam, pois a reconhecem dentro de sua totalidade) aquilo que a vida social reprime. Falsa Loura, insistimos em Carlos Reichenbach, está imerso nessa reflexão crítica ativa, assim como Trabalhar Cansa, em menor proporção, e um curtinha formidável chamado Entre Nós, Dinheiro (2011), de Renan Rovida, que é de um atrevimento exemplar. Não por acaso, tratam de trabalho e de relações intermediadas pelo dinheiro. Enfim, a dimensão social. Violência pura.

Deformados pelo peso da força

Nos casos específicos de dois filmes mais ou menos recentes como Super Nada, de Rubens Rewald e Corpo Presente, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori, a violência do trabalho – e de uma cidade fundada na ideia de trabalho escasso, necessário e contínuo, no anseio de uma realização pessoal que se projeta como possibilidade, mas que objetivamente se mostra inviável (que movimenta os personagens, mas ao mesmo tempo lhes mina as forças) –, essa violência submete os corpos a uma espécie de engrenagem perversa despersonalizante. Em Corpo Presente, as duas personagens femininas são corpos subjugados a uma engrenagem perversa. Beatriz é operária e mãe solteira, personagem esvaziada que não apresenta ambição, só a disciplina ocasional de uma trabalhadora que “bate cartão”; Cynthia é manicure e stripper que sonha em ser dançarina e faz alguns programas, a fim de juntar dinheiro para fazer um curso de teatro no Japão. Beatriz é um corpo submetido a esforços repetitivos submetida a um regime disciplinar fabril. Ela sucumbe à força da cidade, na verdade, à imponderável e óbvia fatalidade da natureza (a chuva) que investe sobre a cidade. Tanto a natureza quanto a cidade são indiferentes a ela. Beatriz desaparece. Cynthia é um corpo submetido à função de mercadoria, que é o meio que encontra para a sua futura e incerta realização (intrinsicamente, profissional e pessoal). A comercialização do corpo, como modo de trabalho provisório, seria a possibilidade de um trabalho mais lucrativo, diferente do emprego de manicure feito de pequenas humilhações. Sua personagem no fim parece um rascunho expressionista (caricatura bizarra e exótica) do destino que ela projetou pra si própria. Foi deformada pelo peso da força.

A figura de Marat Descartes tanto em Corpo Presente como em Super Nada (e também em Os Inquilinos, de Sergio Bianchi) é exemplar. Ele vive personagens – corpos – que perdem o lastro do seu peso, vítimas da inércia de um mecanismo social que os despersonaliza. Em Super Nada, o personagem Guto empresta seu corpo aos pequenos papéis que representa. São papéis sem importância, que servem a objetivos bem pouco estimulantes, mas absolutamente necessários (sobrevivência). Não empreende a busca de um grande papel, mas de um papel qualquer. O primeiro plano do filme é de seu corpo inerte, jogado ao chão. Ele representa, como ator de produção, um morto estirado em cima de uma grade metálica (dessas que ocupam os arredores de estações do metrô). Em Corpo Presente, ele é Alberto, agente funerário que transporta defuntos e não deixa de ser uma espécie de morto-vivo. Tanto Guto quanto Alberto interagem em circunstâncias diferentes com corpos desfalecidos, inertes, seja quando Guto faz de um Zeca desmaiado (Jair Rodrigues) boneco de ventríloquo, seja quanto Alberto encontra e dialoga no necrotério com o corpo de sua amiga de rave. Quando encarna Valter, em Os Inquilinos, Descartes vive um personagem cheio de sentimentos reprimidos (o que o diferencia do esvaziamento parcial dos anteriores), mas vítima de uma paralisia que o limita ao trânsito casa-trabalho-escola noturna-casa, ainda que o mundo ao seu redor esteja, literalmente, em chamas. 

Supernada (2012), Rubens Rewald

Supernada (2012), Rubens Rewald

Nos três filmes, os personagens de Descartes estão submetidos, em diferentes graus, a esforços exasperantes, tendo como elemento estruturante esse cotidiano ancorado ao trabalho, não segundo uma concepção “clássica” de divisão de classes e exploração da força de trabalho como mercadoria (ainda que isso não esteja ausente). A diferença em relação a filmes como A Queda (1976), de Ruy Guerra, O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade, e Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirzsman (ambos de 1981) é que os filmes não se fazem em torno da tomada de consciência de classe e nem da reflexão quanto à precarização do trabalho no sistema. Nos filmes de Rewald e da dupla Toledo-Gregori, o trabalho deixa de ser meio e passa a se confundir com a própria identidade dos personagens.

Mas esse peso, que entorta e subjuga Cynthia, Beatriz, Alberto e Guto, se basta como questão dramática (de roteiro), ou exerce sua força também sobre os procedimentos do filme? Parcialmente. A gravidade do que narram parece ter a energia reprisada por como ela é representada. Existe, em Super Nada e Corpo Presente, uma aparência de organização e de transparência que faz com que os filmes pareçam pouco afetados pelo que contemplam. Há uma assepsia técnico-formal, profissionalíssima, mas asfixiante. Essa asfixia não é conceito, mas sim sintoma de um método derivado não somente de um modelo de produção, mas de uma lógica de realização, o que consiste – em termos estéticos – menos em um modo de se aproximar desses universos (dos personagens, da cidade) do que de “imprimir” uma imagem (seja das temáticas, seja da cidade). São filmes fortes, em alguma medida importantes (são expressões legítimas de projetos pessoais e carregam essa marca) em especial Super Nada, mas que quase sempre neutralizam algumas contradições importantes. Os personagens se dobram ao peso da força das circunstâncias, os filmes não – ou melhor, dissimulam.

O problema é dos filmes, mas também tem um caráter mais amplo. Diz respeito aos modos e meios de se fazer cinema em São Paulo. Aos valores de produção. Esses valores (ou ideologia?) podem ser considerados um encontro entre o academicismo pobre da Maristela Cinematográfica e o “cinema universitário”. “Cinema universitário”, aqui, é tomado menos pelo caráter de risco (o que é cada vez mais raro, dada a obsessão nos cursos pela formação de quadros técnicos) e mais pela necessidade de demonstração de savoir faire. Essa é uma realidade no cinema paulista, menos terrível que a do “cinema publicitário” é claro, já que ao menos pretende mais um trabalho que tenha implicações formais e não só um impacto imagético artificioso. A imagem cidade corre o risco de se assemelhar a uma espécie de cenário pré-fabricado: imagens distantes ilustram como fundo o “palco” do drama dos personagens. Filma-se a cidade e ao mesmo tempo se protege dela. Cidade como imagem pura e esvaziada. Cidade vertical e sem vertigem. O cinema de São Paulo precisa se deixar afetar mais profundamente pelas relações de força e recuperar sua vocação para o perigo, precisa recuperar a sua violência. É o único modo de fazer frente à brutalidade das convenções de toda ordem.

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