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Da cosmética da fome à gentrificação da violência

Quando Ivana Bentes escreveu no Jornal do Brasil, em 2001, seu célebre texto sobre a “cosmética da fome”, certo cinema brasileiro de forte apelo comercial buscava explorar, sob novas vestes, territórios à margem da urbanidade burguesa – nomeadamente, os sertões e as favelas – que foram paradigmáticos na constituição da identidade do Cinema Novo. Segundo a autora, ao retomar alguns dos temas tratados no célebre manifesto “Eztetyka da fome” (1965), de Glauber Rocha, alguns filmes de meados dos anos 1990 e do início da década seguinte – entre os exemplos estão Central do Brasil (Walter Salles, 1998) e Eu, Tu, Eles (Andrucha Waddington, 2000) – faziam uma passagem da estética à cosmética: “da ideia na cabeça e da câmera na mão (um corpo-a-corpo com o real) ao steadicam, a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o ‘belo’ e a ‘qualidade’ da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássica”. O que se buscava, à época, era um cinema popular globalizado, conectado com certas tendências internacionais do espetáculo audiovisual que se afirmavam naquele momento. A consequência estético-política era clara: enquanto a estética da violência (como é conhecido no restante da América Latina o célebre manifesto de Glauber) pressupunha uma internalização da violência social na carne dos filmes – sua tradução em violência da forma – esses novos filmes se dispunham a um apaziguamento da brutalidade do mundo num envelope atraente, que dava ensejo ora a uma barbárie glamourizada e palatável, ora a um humanismo dócil e inofensivo. O argumento de Ivana era agudo e profético, e seu exemplo mais paradigmático só viria no ano seguinte: Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), praticamente uma cartilha ilustrada da cosmética da fome. Em texto publicado na revista Época em 2002, já sobre o filme de Meirelles e Lund, Cléber Eduardo escrevia: “A fachada vistosa, a narração cheia de gracejos e o formato sedutor evitam ferir corações e mentes”.

Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Há muitos pontos de contato entre essa cosmética e uma outra, típica de certo cinema latino-americano deste início de século, que alcança enorme sucesso nos festivais internacionais ainda hoje e que o crítico argentino Roger Koza tem chamado de “escola da sordidez”. O fenômeno, cujo momento fundacional poderia ser atribuído a Amores Brutos (Alejandro González Iñárritu, 2000), é perceptível sobretudo no cinema colombiano e no mexicano – ainda que um notável exemplo recente seja o argentino Relatos Selvagens (Damián Szifron, 2014) – e se assenta em uma retórica que justifica a enumeração detalhada de atrocidades (filmadas à Tarkovski) por uma suposta verdade sobre o mundo, a partir de um olhar secretamente teológico. No dizer de Koza, “a sordidez parte de uma falsa lucidez que sentencia que existir é um opróbrio biológico. Daí vem sua sedução, pois nos desinibe para lançar um par de gritos sobre lugares comuns como se não o fossem. A sordidez expressa um estado anímico que imobiliza os males do mundo e os apresenta como natureza”. No contexto brasileiro, esse tipo de abordagem assentada em uma suposta revelação das iniquidades humanas pode ser perceptível em um cineasta como Cláudio Assis, mas por aqui o mais corriqueiro é que a exploração da violência seja acompanhada por uma retórica vinculada ao social, como no outro exemplo paradigmático que é a série Tropa de Elite, de José Padilha. Por outro lado, há um traço frequentemente comum entre as cosméticas, pois no caso brasileiro também é bastante recorrente que a miséria seja “consumida como um elemento de ‘tipicidade’ ou ‘natureza’ diante da qual não há nada a fazer” (Ivana Bentes).

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Amores Brutos (2000), Alejandro González Iñárritu
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Tropa de Elite (2007), José Padilha

Se o mesmo Roger Koza, que esteve presente durante toda a Mostra de Tiradentes de 2017, pôde definir o festival como um “oásis de liberdade”, isso se deve também ao fato de que, ao contrário do que acontece em países como Colômbia e México – onde a sordidez reinante invade todos os campos, do mais industrial ao mais festivaleiro –, no cinema brasileiro, ao menos no que tange ao problema que nos concerne aqui, há um abismo entre o que se exibe nas mostras Aurora e Olhos Livres e o que ocupa as salas dos shoppings. Isso não significa, contudo, que esse oásis identificado por Koza seja um reino da variação absoluta, pois no momento em que a Mostra de Tiradentes comemora vinte anos, os territórios à margem – a favela, o interior – voltam com força à tela, e novas modalidades de apaziguamento se cristalizam em vários filmes. Para muitos de nossos jovens cineastas independentes, conscientemente ou a despeito de suas intenções, o que está em jogo é uma higienização da fome e uma sorte de gentrificação da violência. E apesar de ser um dos últimos espaços em que se respira o raríssimo ar da imprevisibilidade, Tiradentes não está imune às novas vogas.

O (velho) novo primitivismo

Assim como foi o sertão para o Cinema Novo ou para a Retomada, o “interior” foi um território mítico para certo cinema mineiro de inícios deste século, de Acidente (Cao Guimarães e Pablo Lobato, 2002) a Girimunho (Helvécio Marins e Clarissa Campolina, 2011). Espaço atrativo, lugar que o cineasta deseja conhecer, mas muitas vezes também um repositório de projeções de uma fantasia urbana nostálgica. Homem-Peixe (Clarisse Alvarenga, 2017), exibido na mostra Olhos Livres, pertence a essa linhagem até a medula – até a textura videográfica de sua fotografia parece a de um filme realizado em Minas há pelo menos dez anos – e, apesar de não compartilhar dos mesmos procedimentos, perpetua alguns de seus limites mais evidentes.

Homem-Peixe propõe a Juscelino, um morador de um lugarejo no interior de Minas Gerais que nunca havia se distanciado de seu lugar de origem, uma viagem à Bahia, terra de sua mãe. Depois de uma apresentação sumária do protagonista, o filme parte para uma experiência de acompanhamento do percurso do personagem, que entra em contato com a paisagem litorânea e a geografia humana de um pequeno vilarejo baiano à beira-mar e depois retorna à casa. Na esteira do “cinema vivido” de Pierre Perrault, o filme parece crer na construção de uma experiência compartilhada entre quem filma e quem é filmado, ao embarcar em uma jornada dramática extraordinária em relação ao cotidiano – como eram a pesca do marsuíno em Para que o Mundo Prossiga (1963) ou a caça ao alce em A Fera Luminosa (1982) – que não antecede o filme e que constituirá o grosso de sua matéria narrativa.

Aquilo que poderia constituir uma verdadeira proposição de destino incerto, que apostaria na invenção simultânea do mundo e da cena (eis o coração do cinema de Perrault), no entanto, acaba por ceder muito rapidamente às limitações de um olhar meramente curioso, que se excita facilmente com cada mínima centelha de peculiaridade catalogável ao redor do protagonista, um pouco como certos turistas europeus se encantam com cada detalhe de “cor local” nas ruas de um pueblo latino-americano. Saltam aos olhos as tentativas sucessivas de encontrar uma correspondência entre a cena presente e um retrato já incansavelmente pintado: a casa interiorana como um oásis de quietude e acolhida, o homem do campo como um repositório de simpatia e graça. Uma virtude decisiva do olhar de um filme como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchôa, exibido em Tiradentes em 2014, era a de nunca enxergar a diferença – um espaço geográfico, um sotaque, um modo de vida particular – como um objeto de celebração automática para quem olha (e, consequentemente, para o espectador), mas como um ponto de partida para uma aventura cinematográfica. Embora constitua de maneira central sua premissa, a aventura é, paradoxalmente, o que falta às imagens de Homem-Peixe, que só parecem encontrar a cada plano uma nova confirmação de um retrato nostálgico já excessivamente codificado.

O motivo é longevo e resistente: nas artes fílmicas mineiras, vem do cinema de Humberto Mauro e desagua em um famoso comercial da TV Globo Minas animado pela canção do Pato Fu: “vai diminuindo a cidade/vai aumentando a simpatia/quanto menor a casinha, ai, ai/ mais sincero o bom dia”. O elogio do idílio interiorano presente na letra – que não é muito diferente do tom de Homem-Peixe – tem como contraparte tácita e indispensável a urbanidade moderna. Escrevia Glauber em 1965: “Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo”. Um sentimento semelhante se desprende de várias sequências de Homem-Peixe: a calma interiorana, a vida simples, a poesia do homem do campo, tudo isso só interessa na medida em que representa o avesso nostálgico e palatável de uma vivência urbana. Tudo aquilo que, para o personagem, nitidamente não desperta nenhum arrebato – trazer um coqueiro da Bahia para plantar em sua casa, por exemplo – adquire no filme um ar de solenidade e afetação. No momento em que Juscelino, na volta, entrega as conchinhas recolhidas na praia para as crianças da família, é perceptível o esforço hercúleo do filme para extrair poesia de uma situação que, se nos fiarmos nos olhares de todos em cena, não parece lá tão impactante assim.

Embora o motivo seja muito semelhante, a brandura imperturbável de Homem-Peixe é bem diferente do que se passa em Humberto Mauro: mesmo nos filmes realizados para o Instituto Nacional de Cinema Educativo, nos quais a catalogação era uma premissa – os Cantos de Trabalho, por exemplo –, a amenidade convive com uma força estranha a perturbar a cena, como na extraordinária montagem eisensteiniana capaz de, num corte, converter um pequeno e aparentemente inofensivo filme sobre o canto do pilão do Brasil Central e do Nordeste em uma reflexão fílmica ao mesmo tempo sutil e pujante sobre a fratura social brasileira. Nos contrastes acentuados entre as mãos brancas a dedilhar a louça fina e o contra-plongée da mulher negra que prepara a comida, no ritmo subitamente febril e na violência da inversão do ângulo – que não deixa de sugerir a iminência de uma ruptura –, a montagem de Mauro desassossega a ligeireza do inventário educativo.

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Brasilianas nº5 – Cantos de Trabalho (1954), Humberto Mauro

A mudança de tom em Homem-Peixe, ao contrário, só vem elevar a afabilidade do retrato sereno. É por estar imbuído de uma série de pressupostos cerrados – a primeira vez que alguém se banha no mar é sempre algo memorável, especial, transcendente – que o filme está à vontade para, no momento em que Juscelino efetua a ação tão esperada, abandonar o compasso da companhia e adquirir traços simbólicos grandiloquentes, com a intervenção da trilha sonora e de texturas que remetem a certa videoarte mineira hoje circunscrita ao período histórico que a viu nascer.

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Homem-Peixe (2017), Clarisse Alvarenga

Esse momento está nas antípodas de alguns memoráveis primeiros encontros com o mar no cinema brasileiro de ontem e de hoje. Na deliciosa história contada pelos conterrâneos do cineasta em Karioka (Takumã Kuikuro, 2014), o sabonete usado para o banho em uma praia carioca não é apenas uma excentricidade engraçada, mas um potente índice das bricolagens que surgem na fricção eminentemente política entre a presença dos índios e a cidade do Rio de Janeiro. Na chegada dos paraguaios a Santos em Noites Paraguayas (Aloysio Raulino, 1982), tudo o que poderia facilmente contribuir para um momento grandiloquente – a começar pela importância histórica da privação do mar para o povo paraguaio – é tensionado por uma mise-en-scène que ressalta o prosaísmo da situação, sem despi-la de seu caráter especial: a roupa social, os prédios, a maré baixa, tudo contribui para uma recusa à pieguice e para um investimento em uma beleza mais difícil, menos óbvia, mais plena de tensões e atravessamentos.

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Noites Paraguayas (1982), Aloysio Raulino

Como escreveu Arnold Schönberg em seu prefácio às “Seis bagatelas para quarteto de cordas” de Anton Webern, “cada olhar pode converter-se num poema, cada suspiro num romance, mas para encerrar todo um romance em um simples gesto, toda a felicidade num suspiro, é preciso uma concentração capaz de desterrar qualquer expansão sentimental”. O que se passa em Homem-Peixe é justamente o contrário: o afã de encontrar um poema a cada gesto é tão grande que o filme se permite uma miríade de expedientes de um sentimentalismo patente, desde a preparação cuidadosa da cena para que uma poesia fácil imaginada pelo roteiro “brote” do real (a viagem do camponês, o primeiro banho de mar, o contato com os conterrâneos da mãe) até a inclusão de trilha sonora e efeitos que se esforçam por adicionar sensações e dramaticidade a uma cena que parece não tê-las o bastante. Em momentos como esse – ou como a cena final, em que o protagonista conversa com o coqueiro ao plantá-lo –, o filme parece não se aproximar desse “outro” para conhecê-lo, muito menos para entrar em fricção com ele, mas sobretudo para melhor encaixá-lo numa mitologia amena e edulcorada, que só consegue fazer saltar da tela uma simpatia inofensiva pelo mundo retratado.

A gentrificação da violência

Ainda em 1960, escrevendo sobre a experiência das filmagens de Barravento (1962) no Diário de Notícias de Salvador, Glauber dizia: “Que adianta dar um brinquedo de Natal ao filho do pobre pescador, se no dia seguinte ele disputa um bolo de feijão juntamente com os cachorros esfaimados de beira-mar? É necessário, isto sim, dar consciência desta miséria e talvez acentuá-la o mais possível, como se acua um gato num beco”. Na teoria glauberiana, era preciso que os filmes fossem violentos também com quem vê. Só assim seria possível despertar o espectador de sua inércia fundamental. Se Candeias e a Belair, entre outros, aprofundaram a experiência cinemanovista no sentido de materializar com uma virulência ainda mais poderosa o ideal daqueles filmes que Glauber julgava serem “feios e tristes”, “filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto”, boa parte do cinema contemporâneo brasileiro se esforça para se distanciar a cada dia mais dessa sujeira e desse desespero tornado forma, que pareciam constituir nossa maior originalidade. Corpo Delito, ao tratar de um tema violento – um protagonista às voltas com a privação de sua liberdade por uma tornozeleira eletrônica –, é um exemplo notável desta tendência à higiene, com seus enquadramentos fixos e sua fotografia límpida, com sua abordagem fria e distanciada que nos faz passar pelo filme como observadores desapaixonados de um mundo apartado do nosso.

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Corpo Delito (2017), Pedro Rocha

A dramaturgia busca a aproximação (há personagens, família, momentos de intimidade), mas a câmera se afasta, indecisa entre o olhar agudo sobre um processo social e a paixão por seus personagens. Logo no primeiro diálogo entre Ivan e a terapeuta, o filme anuncia que seu motor dramatúrgico será movido pela tensão entre um corpo inquieto e sedento pelas “loucuras da vida” e um sistema que cerceia suas pulsões. Mas a imobilidade das composições em plano fixo e a sobriedade do olhar clínico que se seguem à abertura são incapazes de dar conta de um conflito que é da ordem de uma retenção de energia, ou de nos fazer experimentar, no corpo, a fisicalidade desse represamento. O ímpeto de Ivan, cerceado por essa modalidade perversa de vigilância a céu aberto, acaba por ser duplamente refreado: pela tornozeleira e por uma mise-en-scène vagamente austera, insensível ao fervor entusiástico do personagem, cujo furor permanece ao longo do filme apenas como uma informação, e nunca como uma força capaz de contaminar o plano.

Por outro lado, se há momentos em que a composição severa é certeira, por exemplo ao interpor objetos e molduras entre a câmera e os personagens, em sobreenquadramentos que acentuam as múltiplas formas de cerceamento das vidas – a bala alojada na perna do amigo, a “semiliberdade” de Ivan, a pobreza que os encarcera a todos –, há muitos outros em que a rigidez cede espaço ora para o afã do diagnóstico – como nos muitos diálogos sobre a violência em que só o que parece importar é o conteúdo das falas –, ora para o exotismo, como nos fragmentos em que a montagem se esforça por adicionar elementos de “cor local” e leveza à árdua trajetória do protagonista (sobretudo a partir da figura carismática do amigo Neto). O jogo de futebol na televisão, a tintura no cabelo, nada disso alcança integridade dramática por si, e esses momentos só rendem a partir de uma funcionalidade muito específica, que não dista muito do alívio cômico do drama convencional.

O rigor que parecia índice de uma câmera impiedosa – capaz de forçar o espectador a experimentar a perversidade nas linhas duras do quadro – logo se revela um mero cacoete, pois o enquadramento passa a variar frouxamente as distâncias e as formas de composição e o que se desprende plano a plano é um olhar tépido, pouco concentrado e impreciso. Numa ligação telefônica em que reclama uma vez mais da tornozeleira, Ivan entra e sai de um cômodo onde está instalada a câmera, que parece mais interessada nas coisas sobre a mesa do que no movimento nervoso do personagem: o plano só se justifica pelo telefonema, mas o filme se exime da necessidade de filmá-lo de forma minimamente clara. Noutro momento, Neto está em uma aglomeração festiva, ao lado de outros amigos, e tem como brinco uma camisinha na orelha. Fixa e a uma distância segura da cena, a câmera flagra o insólito e instiga o riso, exatamente da mesma posição em que observa em seguida a chegada da polícia para um baculejo nos rapazes. Ao fincar pé nessa posição inamovível, o enquadramento nem permite que o espectador experimente no corpo as agruras daquela situação de violência, nem nos convida a ultrapassar o umbral do riso fácil (que depende sempre – já o sabia Adorno – de uma separação estrita entre sujeito e objeto do olhar).

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Futuro Junho (2015), Maria Augusta Ramos

Corpo Delito reproduz o principal limite do cinema recente de Maria Augusta Ramos: o suposto rigor da encenação passa a ser uma espécie de álibi para um olhar desencarnado sobre o mundo; assentado em terreno seguro, pretensamente garantido pelo controle sobre os elementos do quadro, o filme termina por se eximir de forjar um ponto de vista singular diante de cada situação. Para a câmera de Futuro Junho (Maria Augusta Ramos, 2015) não há problema algum em, no momento da agressão aos manifestantes na rua, passar a filmar do lado da polícia (com a mesma estabilidade, as mesmas cores, a mesma fluidez no manejo da câmera). Para a de Corpo Delito, esteja a filmar um banho do protagonista ou uma festa na rua, só é possível instaurar uma e outra vez a mesma distância média e insossa entre os personagens e nós, como se só pudéssemos nos aproximar desse mundo a partir de um ponto de observação estável e protegido, impermeável tanto ao desejo deles quanto à violência que os rodeia.

É então que o que mereceria o nome de rigor se torna uma sorte de filtro homogêneo, que enxerga o mundo sempre a partir da mesma lente asseada e salubre. Se Cidade de Deus era “um neto fashion, tatuado e cheio de piercing” de Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955), como escreveu Cléber Eduardo, Corpo Delito é um bisneto com bom gosto e cheio de consciência social, frequentador dos melhores festivais de cinema, mas cujo olhar para o mundo parece nublado por um filtro gourmet. A fixidez inalterada do quadro ora transparece a fragilidade do ponto de vista; ora reafirma, inadvertidamente, a separação entre nós e os personagens, como se o universo retratado não pudesse ser muito mais do que um objeto de interesse para a curiosidade do espectador, que está apartado daquele mundo (e que, portanto, não é responsável por ele). A sobriedade higiênica do enquadramento e a limpeza da fotografia terminam por operar uma espécie de gentrificação da violência.

Não se trata de reconhecer a nobreza dos pobres e forjar uma forma singular que esteja à altura do mundo deles – como em Pedro Costa, por exemplo –, mas de “enobrecê-lo” à força, de dobrá-lo às tendências festivaleiras até torná-lo palatável. Não se trata de fazer da violência uma força que se faz sentir em cada poro do filme e que contamina o espectador – como em Candeias, por exemplo –, mas de amansá-la na suavidade da banda sonora, de amaciar suas arestas na luz morna da fotografia até que ela passe a ser um elemento a mais do cenário. O gesto de Corpo Delito – que não está sozinho nessa e tem a mesma fisionomia de muitos outros filmes, brasileiros ou não – faz lembrar uma letra recente de Q-Tip: “niggas in the hood living in a fishbowl/gentrify here now it’s not a shit hole”. Por mais translúcido e bonito que seja, um vidro de aquário não é uma tela de cinema.

No dia seguinte à morte de Aloysio Raulino, Andrea Tonacci escreveu em uma mensagem endereçada aos amigos: “A maior contribuição do cinema brasileiro ao cinema mundial é uma escola de câmera na mão. Essa escola se encerra hoje”. Depois da enxurrada de 2016, o lendário Dib Lutfi e o próprio Tonacci (ele mesmo um brilhante operador de câmera, além de tudo) não estão mais entre nós, e a frase deste último sobre o amigo não poderia ser mais profética. Grande parte de nosso cinema independente hoje – muitos filmes exibidos em Tiradentes o confirmam – se baseia em uma ditadura do plano fixo e da composição austera. Sabemos bem que “os remendos do tecnicólor não escondem mas agravam seus tumores [da fome]” (Glauber), mas nos tempos áureos do “capitalismo fofinho” – a expressão de Giselle Beiguelman vem a calhar –, boa parte do cinema brasileiro se tornou clean, como se as câmeras de nossos fotógrafos não conseguissem mais se sustentar no mundo sem o auxílio de um tripé. A busca pela “luz brasileira” (que Glauber enxergava especialmente na fotografia de José Medeiros) pode ter sido pouco mais do que um mito, mas ao menos impelia ao trabalho e à invenção; hoje, para muitos cineastas, a questão sequer parece fazer sentido, pois chega a ser impressionante constatar como o tratamento fotográfico dos filmes é semelhante. É a mesma sobriedade insípida que arruína filmes nos festivais e nos labs mundo afora, à qual alguns de nossos melhores talentos parecem se deixar arrastar de forma irrefletida.

A produção da modéstia

Como em boa parte dos filmes de Frederick Wiseman, Modo de Produção (Déa Ferraz, 2017), exibido na mostra Olhos Livres, circunscreve seu olhar observacional a uma única instituição, um espaço arquitetônico e simbólico que identificamos logo na abertura do filme: o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca (PE), que reúne homens e mulheres que trabalham nos canaviais pernambucanos. Por um momento, vêm à memória a segunda parte de Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1965), em que os canavieiros nordestinos, desorganizados, mas insurgentes, ocupavam luminosamente o plano para dirigir suas reivindicações ao espectador. De certa maneira, Modo de Produção é o retrato da geração seguinte, que passou pela experiência de sindicalização e hoje se vê às voltas com uma nova forma de opressão: o funcionamento diário de uma entidade de classe que pode chegar a ser tão insensível quanto os patrões. Há muitos planos dos corredores quase vazios, na penumbra, que nos instalam em um ambiente de espera e impotência diante da burocracia.

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Maioria Absoluta (1965), Leon Hirszman

A maior parte da matéria expressiva de Modo de Produção é constituída por sessões de atendimento aos trabalhadores da cana no Departamento Jurídico do sindicato. Alguns têm problemas com a aposentadoria, outros foram prejudicados pelo patrão e vêm reivindicar seus direitos. O olhar observacional do filme se volta para essa relação – difícil, tensa, muitas vezes irremediavelmente cindida – entre o mundo do trabalhador e o da justiça, com seu idioma peculiar e, no limite, estrangeiro a quem ouve. Embora o filme tenha a virtude de instalar o espectador naquela sala, naquela cena, e de nos fazer sofrer ao lado de cada trabalhador, por um instante, a angústia de uma resolução trabalhista que pode transformar uma vida em poucos minutos, a reiteração do procedimento de encenação acaba por fragilizá-lo. A diferença de energia dramática entre as cenas é patente, mas a montagem parece crer excessivamente no material e insiste na repetição: alguns encontros são poderosos, outros bem menos, e ao abarcar energias muito díspares, o conjunto enfraquece.

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Juízo (2007), Maria Augusta Ramos

O tratamento da justiça no documentário brasileiro tem um capítulo crucial com Maria Augusta Ramos. Lembremos da juíza de Juízo (2007): falastrona, excessiva, por vezes implacável, noutras tortuosamente carinhosa, sua figura fascinante ocupa o centro do quadro e o transborda em toda a sua ambiguidade fundamental, síntese em carne viva do desastre social brasileiro. Em Modo de Produção, os trabalhadores mudam, mas os funcionários do sindicato permanecem. Há pelo menos dois, um homem e uma mulher, que permeiam boa parte da duração e têm potencial para se transformar em personagens. O filme, no entanto, investe muito pouco no tratamento dramático dessas figuras, e terminamos por não as conhecer. Por momentos, o filme parece interessado em expor uma fratura na relação entre os canavieiros e a instituição, mas a quantidade de encontros amenos em que predomina a gentileza termina por constituir uma cena frequentemente dócil, bem pouco conflituosa.

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Modo de Produção (2017), Déa Ferraz

Há uma sorte de contraplano da sala do Departamento Jurídico: um outro espaço – amplo, mais arejado – em que uma mulher negra oferece lições sobre diversos problemas – entre eles, o racismo e algumas questões caras à luta feminista – para outras trabalhadoras. Sua habilidade retórica e seu carisma são contagiantes, a experiência de escuta e diálogo entre as mulheres é sólida e bela, mas o filme investe pouco nessa outra faceta do sindicato, que poderia transformá-lo em uma instituição menos previsível. Diferente de Corpo Delito, Modo de Produção tem a virtude de descortinar para o espectador um território denso e intrincado, e de esboçar com mais vigor o desenho de personagens fortes. Ambos os filmes, no entanto, nem investem decisivamente em uma estética da companhia – que poderia transformar a projeção numa experiência intensa de convívio, que restitui a potência da filmagem, como em Wang Bing –, nem apostam em uma mise-en-scène que ressalta e amplifica a crueldade – como em Wiseman, cineasta capaz de converter uma escola na antessala da morte no Vietnã (High School, 1968) ou um hospício em um campo de concentração (Titicut Follies, 1967), no “simples” gesto de dedicar-se estritamente a observar o cotidiano da instituição.

Trata-se de um traço estético-político menos pernicioso do que os que apontamos anteriormente, mas o cinema brasileiro contemporâneo também padece de um excesso de modéstia. Se em algum momento houve um pecado pelo excesso – lembremos a constante crítica de Bernardet, desde os anos 1960, às totalizações, aos diagnósticos demasiado amplos, às grandes teses sobre a Nação –, hoje um dos dilemas é uma desmedida na direção contrária: numa seara importante do documentário brasileiro hoje, há um exagero do comedimento. Há vários fatores em jogo, mas um dos mais importantes diz respeito a uma má apropriação do método de Eduardo Coutinho (calcada em leituras equivocadas de seu cinema), que terminou por produzir uma enxurrada de documentários em que o traço que mais salta aos olhos é uma indulgência total em relação às performances das pessoas filmadas ou à intensidade dos momentos observados. Há inúmeros casos de encontros malogrados, de entrevistas que não rendem (ou nas quais a presença do retratado é irrelevante), de pessoas que sequer se converteram em personagens (eis aí um trabalho dramatúrgico frequentemente ignorado), de tempos mortos que sequer fazem valer sua morte (o problema é também de montagem), mas o filme termina por abraçar todos esses materiais, pois um protocolo seguro do tratamento “respeitoso” e “digno” das figuras humanas aparentemente basta. O que esses procedimentos ignoram é que uma das grandes bases do trabalho de Coutinho é o casting, e que nesse processo (que pode se dar também na montagem) o olho de cineasta brilha antes da razão de humanista. Os filmes de Coutinho nos ensinam que, por princípio, qualquer porção do mundo tem direito à tela; mas a força de suas personagens também nos diz que, num sentido propriamente cinematográfico, é preciso merecê-la.

Diante de um terreno ético ardiloso – por exemplo, filmar um sindicato ou uma favela –, o primeiro gesto de nossos cineastas atuais tende a ser o recuo para uma enunciação segura, respeitosa, mas frequentemente desapaixonada e infértil. Modo de Produção certamente não é o exemplo mais emblemático dessa dificuldade, mas suas escolhas não deixam de ser um sintoma importante: no afã de não forçar a pincelada nesta ou naquela direção, o filme acaba por compor um retrato acinzentado, morno, um pouco por desejo manifesto, mas sobretudo por omissão. Lembremos novamente o Glauber de 1965: “o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento”. O humanitarismo que o diagnóstico comedido de uma situação social violenta inspira no espectador ainda é pouco diante da urgência de sua transformação.

Frente a Cidade de Deus, Cléber Eduardo perguntava: “Como encenar as causas e os efeitos do mundo-cão sem banalizar sua gravidade ou deixá-lo fascinante com uma representação cheia de glamour?”. A questão é urgente, dificílima e só os filmes poderão enfrentá-la, mas os caminhos da nostalgia, da higiene e da modéstia já transparecem suas fragilidades. Se não por motivos estritamente formais, por uma razão histórica: é impossível filmar da mesma maneira antes e depois de um Golpe de Estado. Os melhores cineastas dos anos 1960 souberam traduzir o desespero de seu tempo em termos formais. Estarão as mulheres e homens de cinema de hoje à altura do desastre histórico que nos atravessa?


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