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As mãos do prisioneiro

É preciso aguardar até às últimas imagens de Os Bons Tempos Chegarão em Breve, de Alessandro Comodin, para se deparar com a evidência concreta de sua declarada homenagem à iconografia bressoniana: a mão do prisioneiro que segura na grade de sua cela. A influência anunciava-se de forma subreptícia aqui e acolá, mas com esta imagem final o mesmo gesto dotado de expressividade metafísica em O Batedor de Carteiras (1959) passa a ser uma menção mais frontal e evidente, um diálogo com uma determinada tradição cinematográfica ao mesmo tempo que um certo esforço de atualização e revisão.

E logo as mãos, membro que ascende da materialidade a um estado de vida própria em O Batedor de Carteiras, primeiro plano mais recorrente deste que talvez seja por excelência um filme sobre mãos, que fez delas quase um objeto de estudo. As mãos do ladrão bressoniano que repousam, espreitam e exercitam-se repetidas vezes para adquirir a destreza do furto, elevando meticulosamente a sua técnica; as mãos que irão participar de todo um balé sincronizado na hora dos delitos, transformando o gesto seminal do roubo em um semi-espetáculo; estas mesmas mãos terminarão aprisionadas, segurando as grades tendo, enfim, descoberto o propósito de sua jornada. A mão é o órgão da ação – aquele que realiza e concretiza – e o esforço em desenvolver sua maestria com a finalidade de desfilar sua habilidade não conduzirá a nada. É somente atrás das grades, ao mesmo tempo o limite intransponível e o único diáfano possível que concomitantemente demarca distância e vislumbra possibilidades, agarrando-se a elas, subordinadas a elas, não sem um certo desespero e uma dada obsessão, que as mãos enfim terão o seu encontro com o divino intocável. Bresson fez destas mãos o dilema existencial de um mundo onde a técnica se tornou válvula de escape para o despropósito do estar-aí. Paradoxalmente, é quando aprisionado na cela que o sujeito redescobre, do outro lado e após muitos descaminhos, a sua razão de ser.

Não obstante invoque frontalmente a imagem bressoniana, é possível que Os Bons Tempos Chegarão em Breve não tenha sequer um único primeiro plano de mãos além deste. Comodin construiu uma grade na sala de visitas de uma prisão para poder elaborá-lo. O restante do filme, no entanto, é um retrato da errância de seus personagens, e essa errância é dita a própria forma: não temos a prática da técnica das mãos, o esforço por dar-lhes materialidade e vida, nem o esforço de decupagem e construção em tomar este fragmento como o degrau de um todo. O que temos é outra coisa: figuras que perambulam a esmo por uma floresta em enquadramentos pouco ou nada pictóricos, invocando certa precariedade na composição e no uso do breu; o foco do plano e da camada sonora em efeitos impressionistas de superfície; o esvaziamento da dramaturgia, tanto em termos narrativos quanto psicológicos, que nos conduz a uma gratuidade dos gestos dos atores; personagens quase bocós, senão odiáveis, aparentemente pouco interessantes e que não têm muito de importante a dizer – o que é dito, é dito pela simples materialidade da palavra, por um ritmo que segue em pouco ou quase nada a cadência lógica dos acontecimentos, mas que, por outro lado, também não propõe um jogo aberto de criação de atmosfera ou relação mais propriamente dita com o tempo particular daquela floresta, conduzindo-nos a um sentimento de nada.

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É que este jovem protagonista não é o mesmo hábil desgraçado à procura de um sentido. Ele padece, mais do que cria ou procura. Suas mãos não são particularmente confiáveis, nem mesmo para segurar uma arma. Com efeito, Os Bons Tempos Chegarão em Breve se inicia praticamente quando Tomasso (Erikas Sizonovas) está livre, na condição oposta àquela do final do batedor de carteiras. Em certo sentido, toda a errância niilista que caracteriza a primeira parte do longa-metragem – o perambular dele e de Arturo (Luca Bernardi) por entre florestas, bosques, cavernas e montes; a caça por comida e as brincadeiras com armas de fogo; a mise-en-scène de brigas pouco explicadas e gritos exagerados – indica um trajeto que não se configura em momento algum e que de supetão é encerrado pela morte do protagonista. Tudo isto, em alguma medida, faz remissão a este seu estado caracterizado por um misto de inaptidão, torpor diante à vida, uma quase alienação de si mesmo. Pois na leitura que Os Bons Tempos Chegarão em Breve parece fazer do criminoso bressoniano, a revelação do deífico é o resultado de um processo que exige este momento ápice, quando as mãos chegam ao limite de sua ação nas grades; escapar a estas grades e abdicar do uso das mãos é mergulhar num estado catatônico, em um deserto onde pouco ou nada faz sentido.

É claro, nada disto é dito com muita clareza. É entrevisto. Não importa o quanto o artista queira falar ou se reportar a nós de uma forma, a arte sempre termina por fazê-lo de outra, colocando-se no mundo por um lado como enigma perpétuo, e por outro como esboço. Talvez justamente por isto Os Bons Tempos Chegarão em Breve, bem como muitos outros filmes contemporâneos, abrace a incoerência como tentativa de dar coerência às coisas – não através de uma perspectiva dadaísta-anarquista, que desmonta a própria concepção do que é a coerência, mas mais fundamentalmente por via do acúmulo narrativo, a crença de que a pujança e o sentido de uma obra não precisam ser dados em um único espaço-tempo, com a repetição dos mesmos elementos e formas; que não é por leis morais, motivações racionais ou sublimações que a realidade se desvela ao homem, mas que um acontecimento em um momento histórico pode ser explicado por suas relações de identidade ou diferença com um acontecimento em outro momento; que aprofundar de maneira bem acabada uma única trama não é tão ou mais importante quanto o esboço de muitas; que ela, enfim, não precisa ser sincrética para ser unitária.

Mas antes, voltando às mãos do prisioneiro de Bresson, há naquela imagem uma crença de que o epífano não pode ser manuseado. Apenas entrevisto ou vislumbrado. Essa concepção servirá de inspiração para a segunda parte fabular de Os Bons Tempos Chegarão em Breve, como que para explicar ou remontar, no interior da mesma lógica de entropia dos sentidos pela qual o filme opera, o que foi o destino dos personagens da primeira, colocando-se como mito fundador, embora cronologicamente à frente. Tomasso reaparecerá sendo a figura lendária, encarnando uma espécie de lobo que aterroriza a mesma floresta e cujo objeto de desejo é uma mulher que vagueia por ela. Ele não pode tocá-la. Apenas a espreita. O registro é agora ligeiramente outro: das entrevistas sobre a lenda lupina, vamos a travellings meticulosos observando o perambular de Ariane em um evidente esforço plástico e de construção muito mais rigoroso, aspirando a uma beleza que contradiz os esforços da primeira parte. Essa beleza atinge seu ápice quando Ariane entra nua em um lago para banhar-se e Tomasso a ronda como um jacaré prestes a dar o bote.

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A iconografia bressoniana aqui não serve à citação. Tampouco se trata de uma mera homenagem. Ela é uma espécie de berço ou origem propulsora da própria narrativa; mais do que inspiração, uma imagem que tem um sentido oculto ao qual Os Bons Tempos Chegarão em Breve se esforça por atualizar. Mas o faz em um momento onde não há mais mãos hábeis; onde não há mais no horizonte a maestria técnica como critério; onde o prisioneiro agora é outro, alguém sem referências ou passados, que vaga a esmo e mal sabe usar as próprias mãos, cuja “maior desgraça é não ter vindo de lugar nenhum”. Não é à toa que a mão do prisioneiro que conclui a parte final, quando assistimos à prisão de Tomasso, seja o momento de paroxismo, bem como a conclusão que dá os nós, na medida do possível, ao emaranhado anterior. É esta imagem que reúne a fábula de Ariane ao momento anterior de perambulação na floresta, apontando, por um lado, uma entropia cronológica, e por outro, a sensação de que estamos diante de um tempo cíclico. O importante aqui talvez não seja tentar ordenar a casa, mas participar de sua própria curvatura, uma que nos revela ou sugere a relação entre as partes.

Diferentemente do filme de 1959, a grade não é o elemento que participa do duplo jogo entre o limite e o diáfano. Ela é simplesmente opaca. As mãos bressonianas tem a sua própria história, sua própria jornada até se encontrar impedida e iluminada, e por isto O Batedor de Carteiras , quando recebe uma visita, se diz impressionado pelos estranhos descaminhos que teve de percorrer até chegar a este lugar. Já o inábil protagonista de Comodin não tem história, não tem passado, não sabe usar as mãos, e não sabe de onde veio: sua condição essencial é mirar o objeto sublimado e não poder tocá-lo. Talvez justamente por conta desta sua fragilidade primordial tenha se atrofiado sua técnica, esta que, para Bresson, já era um beco sem saída. Se fossemos traçar a história das mãos no cinema (empreitada de Harun Farocki na forma de ensaio em Expression of the Hands), talvez aqui obtivéssemos, nesta apropriação que Comodin faz de Bresson, o espelho entre o seu limite e sua absoluta falência. E Os Bons Tempos Chegarão em Breve, com todas as suas imperfeições e sua frequente aparência de simulação e compêndio de um certo cinema contemporâneo, tem um enorme êxito em extrair desta apropriação suas mais vitais consequências, ou ao menos as que mais podem interessar ao homem contemporâneo, e por consequência, também ao cinema, tornando o filme uma experiência em muito necessária.


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