Futuro Junho, de Maria Augusta Ramos (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

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O fim de uma era
por Raul Arthuso

Em matéria de posteridade, Futuro Junho é um filme de época. É essa contradição fundamental entre a análise da realidade social pré-Copa do Mundo proposta pelo filme e o contexto desta mesma realidade modificada pelo tempo entre filmagem e exibição da obra que faz do novo filme de Maria Augusta Ramos um caso particular dentro do universo de filmes que tentam lidar com o clima de insatisfação social cujo estopim foram os protestos de Junho de 2013. Enquanto outros filmes como Rio em Chamas (2014) ou Junho – O Mês que Abalou o Brasil (2014) trazem em suas estruturas a figuração dos protestos na esperança de, ao dar a eles uma forma fílmica, criar um sentido para essa insatisfação, Futuro Junho cria o panorama de um momento bastante específico – os dias que antecedem o início da Copa do Mundo de futebol – para abrir a realidade ao obscuro destino pós-filme.

Como uma das personagens diz, o momento é um “ponto de ruptura”. Maria Augusta Ramos cria uma estrutura bastante rigorosa, já presente em toda sua obra, como uma espécie de procedimento de análise. A partir de quatro personagens de classes sociais diferentes, acompanhadas por uma câmera observacional que, ao mesmo tempo, olha e desmonta suas rotinas, Futuro Junho traça um movimento paralelo entre manifestações coletivas (a greve dos metroviários, os protestos anti-Copa, a negociação do sindicato dos metalúrgicos com o Volkswagen) e o cotidiano particular das pessoas. O espaço público parece em colapso: a economia regride, o metrô está parado, a polícia tenta conter a greve com violência desmedida. Porém, as pessoas levam suas vidas. O motoboy compra um jazigo para enterrar familiares (também motoboys) falecidos em acidente de trânsito, o sindicalista pensa no gasto que terá com fraldas do filho que está por vir, o metalúrgico faz seu trabalho repetitivo sem grandes questionamentos. Diante do apocalipse, ninguém parece notá-lo.

A tensão se dá na carne do filme. Futuro Junho se inicia com planos com a câmera vinculada a meios de transportes: um helicóptero retratando a quantidade de prédios da cidade de São Paulo, um carro que percorre o Minhocão em meio a outro carros, uma moto percorrendo a Avenida Paulista. Se os planos denotam movimento, a imagem carrega seu oposto – são movimentos que, em vez de afirmarem uma histeria da fluidez da metrópole, mostram uma falta de energia dos carros no trânsito intenso, da massa de concreto cujo resultado não é o fascínio das construções, mas a inércia e o peso de sua presença. O primeiro plano, com a câmera num helicóptero, flutua sobre a imensidão de edifícios que parecem afundar o movimento, retesá-lo. O helicóptero roda em torno do COPAN, preso pelo peso da urbe: o que era movimento, torna-se um giro em falso. A dinâmica entre o movimento/velocidade e inércia/peso parece fadada à imobilidade.

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Apesar de seu fim ser a incerteza do futuro, pós-ponto de ruptura, é essa relação no presente que parece forte. Isso se coloca na própria narrativa do filme, que parte de elementos muito concretos: a cidade de São Paulo; o período pré-Copa; personagens bastante diferentes entre si, presentes no filme pelas particularidades de suas vidas. Por sua vez, o método analítico de Maria Augusta Ramos, com a câmera disposta a decupar as vidas e as ações com corte cirúrgico, funciona quase como um procedimento científico que opera uma abstração. As personagens tornam-se representações de suas classes, de suas funções na máquina social, sem nomes (que aparecem apenas casualmente, mas só se revelam de fato nos créditos finais), tipificadas pelo fazer, não pelo ser. Como a linha de montagem de automóveis, as personagens de Futuro Junho estão alijadas da consciência de classe e de suas identidades, são peças de uma estrutura para quem a capacidade de controlar as próprias vidas não é possível. São Paulo é uma abstração do país consumista da última década, os protestos são representantes de toda a insatisfação social atual, as personagens são membros típicos de um corpo social em ebulição, mas ao mesmo tempo caminhando para um futuro. Presente e futuro andam tensionados.

A forte estrutura analítica e a observação científica precisa da câmera de Maria Augusta Ramos dão presença aos dados momentâneos, uma premência ao presente imediato, que subjuga esse futuro em aberto, sempre reiterado ao longo do filme. Muitos são os dados numéricos, os fatos, as notícias: o presente formulado é regido pelo número, pela quantidade (de prédios, de pessoas no metrô, de grevistas a favor de propostas do sindicato, de valores do mercado financeiro) em meio a um processo de negociação intensa nas diversas camadas da sociedade. Da bolsa de valores ao jazigo no cemitério, a sociedade negocia e o ponto de ruptura, parece depender do resultado dessas negociatas, seja o valor do dólar ou a possibilidade de os operários verem o jogo do Brasil na Copa dentro da fábrica. E, mesmo mirando o futuro, a forma da negociação é a expressão mais imediata da força do presente que domina o filme: Futuro Junho negocia com a realidade sua análise.

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Desse processo surge um filme de extrema força em suas figurações e na capacidade de estabelecer as relações entre os dados da realidade para compor esse painel do momento imediatamente anterior ao início da Copa do Mundo, resultando em um retrato de um momento bastante instigante. Sua ambiguidade reside na defasagem entre esse mundo no momento do retrato e aquele de quando a obra é vista. Se o clima de insatisfação e fratura social presentes em Futuro Junho continuam muito fortes, as vias incertas do futuro que o filme coloca já foram, de certa forma, percorridas, as decisões a serem tomadas insistentemente pontuadas na narrativa já foram tomadas e os sentidos da insatisfação popular, assim como os símbolos que a representa, já são outros. O mundo visível presente no filme já desapareceu, e ele parece habitar esse limbo entre o clique e a revelação: nem passado nem futuro, mas um presente imperfeito, presentificado, mas já ultrapassado.

Em dado momento, um economista diz que o mercado esperava um comportamento da realidade que acabou não se concretizando, o que deixou os investidores com incerteza. Com Futuro Junho, ocorre algo similar: a aposta numa composição bastante intensa de seu retrato do presente não antecipava os caminhos do movimento perene da realidade retratada. Muito do interesse político do filme nasce do que está na tela e chega no que está fora dela, por isso sua situação especial: se está clara sua defasagem, não se pode negar sua atualidade. A tensão entre movimento e inércia está na própria obra enquanto existência: seu tempo foi, seu lugar era.

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