Uma história da violência

outubro 3, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Paulo Santos Lima

The Killers (1964), Don Siegel

Os Assassinos (1964), Don Siegel

por Paulo Santos Lima

A violência está na vida, na história do homem e no verbo: violentar, violar, invadir à força, barbarizar, machucar, matar, esmagar, tiranizar. A violência esteve no instante zero do universo, no primeiro minuto dos seres e no cinema em seu marco inaugural: quando a câmera se colocou enviesada em frente ao trem chegando à estação, já havia ali o roubo de algo que existia antes, ontológico ao mundo – a realidade. Não era como a extração da expressão pictórica, mas uma reprodução tão ipsis litteris que sugeria uma colheita à facão, deslocando o objeto dum lugar a outro. O impacto dessa cena cotidiana reaparecendo num impensável espaço-tempo distinto foi aos olhos do público como um tiro no peito. Talvez inócuo, por ser tão clichê e de valor sobretudo simbólico, ainda assim este exemplo acaba confirmando o que tipifica a violência: o inesperado. É no fora de prumo, em lugar errado, arruinando a diagramação assentada (em suma, ferindo os códigos), que a violência se manifesta imperialmente nos filmes.

O cinema, entretanto, tão logo assimila rápido esse original e anterior “in natura” e o assenta à linguagem cinematográfica, cristaliza-o junto aos códigos da representação. A violência é violenta (é violência) quando chega forte como uma lança no peito, um soco no queixo, uma lâmina na carne. Quando domesticada à gramática, torna-se menos sensorial e bem mais intelectual. A violência pode, sim, ser pensada e discutida, presente no enredo ou na dramaturgia de um filme, na pauta de um documentário de João Moreira Salles, num dos eventos desairosos que ocorrem diariamente no planeta e que são transmitidos pelos telejornais ou mesmo na mise en scène de um programa esdrúxulo de auditório que parece a figuração do sonho fascista. É uma violência a ser levada em conta, porque dela tomamos ciência do movimento concreto do mundo. A se lembrar, no entanto, que o signo alude, mas não ameaça. É fácil, assim, que essa “violência constatada” possa ser percebida, discutida e pensada, pois não será necessariamente sentida. É da violência original, essa que é puro fenômeno físico e que está na gênese do mundo e no percurso do Homem, que o cinema expressou em seus momentos mais capitulares.

A violência é material e histórica. Idem o cinema, o homem e a natureza. A História surge sempre depois da história da humanidade, e é o materialismo histórico quem acusa o lugar do homem na história do mundo (antes mesmo da história do homem). O estado da violência no cinema é o que o mundo dá ao cinema para este conferir na tela a barbárie de seu tempo. Filmar (e mostrar) é violentar a lógica natural e não a lógica da história (do homem, da Revolução Industrial, do espírito e das ideias). A violência é histórica, mas, por estar desde o ponto zero, é também ontológica. O que mudou na representação cinematográfica da violência diz respeito à própria decorrência histórica (do cinema e do mundo). É como uma caravela que cruzou oceanos, atracou em terras firmes, brindou descobertas, mas que agora rasga às aguas com seu casco sob o peso de sua própria tradição.

* * *

Uma história da violência

Os acontecimentos gritam ao mundo, e o cinema responde ao seu modo. Os feitos mais capitulares de um certo cinema da violência coincidiram com fatos históricos igualmente ilustres. Essa força do instante representável pelo cinema esteve na Rússia pós-1917, com Sergei Eisenstein recriando a agressiva roda dos eventos por meio da montagem. Em O Encouraçado Potemkin e A Greve, temos um cineasta lidando menos com a Revolução Russa e bem mais com a história de seu país em 1925, criando um discurso ideológico só possível pela graça do cinema em possuir uma gramática que consegue induzir a significados bem à parte do que está literalmente aparente na tela.

O gangsterismo do final dos anos 1920 e início dos 1930, dos jornais para as telas. Mesmo ressignificados à forma cinematográfica, os gângsteres estraçalhando-se em metralhas pareciam extraídos in natura das ruas, como se o cinema fosse uma continuidade da realidade. Imagem a reter é a de James Cagney, após esquivar-se de balas metralhadas, bater na mulher e montar um império do crime, é entregue à porta da casa da mãe, com bandagens, desfigurado e logo tombando morto à câmera, em Inimigo Público (1931), de William Wellman. O impacto do tal instante, inclusive quando Howard Hawks, com Scarface, adota um estilo tão sedutor que consegue abrir a caixa de Pandora da identificação (fusão, confusão) entre público e bandido, ou seja, entre o sensato e o bestial – algo impensável em 1932, mas que seria em breve assimilado à tradição do gênero.

Uma nota de página: a violência sugerida e menos saliente de High Sierra (1941). Raoul Walsh extrai da geografia, seus volumes e formas, uma situação inexequível ao fora-da-lei do bem Humphrey Bogart, vitimado por uma lei cega e de justeza cruel. Em 1949, o mesmo Walsh não abre mão de um estilo mais formalista, no qual a forma ganha poder enunciativo, e imprime um cinema mais físico, de violência mais bruta e direta, quase pornográfica, dum Édipo e sua Jocasta barbarizando o globo terrestre ao limite da aniquilação (literal, num desfecho-síntese que confirma as possibilidades galácticas do uso dos procedimentos cinematográficos), em Fúria Sanguinária.

Muito a ver o “calor branco” do White Heat, título original do longa de 1949 de Walsh. Anos antes, a 2ª Guerra Mundial, o inferno de fogo cegante das duas bombas em Hiroshima e Nagasaki. A guerra foi para a representação cinematográfica como uma dessas ogivas nucleares que deram fim ao conflito, em 1945. O terror em larga escala, o genocídio, a mecanização da morte, tudo isso retificando as possibilidades macabras do gênio humano, trouxeram à tona uma realidade indizível e de extremo impacto físico. À parte as domesticações no idealista cinema de propaganda, nos melodramas de guerra ou nos musicais, surgiu um cinema mais físico e permeável às condições materiais do mundo real. Não era mais tão interessante recriar, e sim deixar o entorno filmável invadir (violentar) o filme. Era quase uma força natural. Em Alemanha Ano Zero (1948), Rossellini tem à sua vista uma Alemanha devastada, cenário pronto e criado ali pela história e que lhe serviu para situar a situação do menino Edmund na sua luta pela sobrevivência num país-inferno. Os ecos da guerra badalaram o neorrealismo e todo um cinema de representação mais física que marcou uma modernização a posteriori: da Hollywood dos anos 1950 aos revisionismos históricos feitos por Alan Resnais em Noite e Neblina (1955), a Nova Hollywood e o blaxploitation reagindo a outras histórias nos anos 1960 e 1970, o gore carnal de Mario Bava e Ruggero Deodato, a profusão autorreferente de Dario Argento para representar a beleza dentro do demônio da natureza humana.

Do cinema físico, que caracterizou a modernização da Hollywood dos anos 1950, há Elia Kazan mostrando uma violência invisível mas sentida da sociedade contra o indivíduo, e cuja excelência está em Clamor do Sexo (1961), e Samuel Fuller trazendo a violência mais direta para tentar representar a “irrepresentável” pois complexa e controversa natureza humana, em obras como Anjo do Mal (1953), Casa de Bambu (1955) e Shock Corridor (1963). Fuller trabalha em relação à tradição, já nesses anos 1950, mas trazendo à tona certos índices que estão encaixados e embutidos na engrenagem gramatical: amor, morte, violência, ação, emoção. Como Tourneur, Ulmer, Corman, é Sam Fuller outro que aponta a condição dos filmes B – mais que produções baratas, está em jogo uma visão de mundo mais livre das regras, mais aventureira e, portanto, mais passível de colisões e estranhos encontros.

Os trabalhos B, produzidos sob ferramental de 2ª divisão, explicam também uma relação fundamental sobre como o cinema expressa o representável do mundo. Há o que é encenado e há o que parece transbordar para dentro do filme, seja no momento da realização ou da apreensão do espectador. A tal matéria que está conceitualmente fora do filme, mas que este acaba por revelar – porque a realização cinematográfica, seu pessoal etc., fazem parte do mundo. Voltamos ao neorrealismo, aos documentários de Flaherty, às experiências intuitivas dos pioneiros, à violência do corpus operandi dos filmes de Cassavetes, e, também, de certo modo, a todo o cinema, pois sempre há algo, mesmo invisível, que fica retido em algum lugar do projetado na tela.

Mas uma leve guinada de aproximação se faz importante aqui: se a tal violência mais física, esta que parece mais interessante de ser comentada aqui, prescinde de matéria, então é esta quem aponta melhor as condições da expressão cinematográfica. A matéria pode estar expressa na cena, na representação (Twentynine Palms, de Bruno Dumont, e Madame Satã, de Karim Aïnouz, são alguns exemplos recentes) ou em algo no qual o filme está situado e que transparece em sua realidade na tela (Paisà, de Rossellini, Sweetback’s Baadasssss Song, de Melvin Van Peebles, Demencia 13, de Francis F. Coppola, os westerns spaghetti, o underground americano). Nem sempre a produção barata determina esse tipo de materialidade que “suja” os filmes, mas é um padrão histórico, em todas as cinematografias do planeta, que confirma certas “leviandades” com a boa etiqueta e polidez nos trabalhos realizados a toque de caixa, sobretudo os que conseguem, pela graça de seus realizadores, executar grandes exercícios cinematográficos (os travellings e a decupagem de Samuel Fuller, por exemplo). A agulha da bússola também indicava o in loco, que, em certa medida, naquele instante, significava assumir riscos, livrar-se do universo idealizado e controlado do estúdio, gastar menos recursos ao jogar a câmera nas ruas – encontrar-se cara a cara com a realidade.

A Morte num Beijo (1955) é a súmula desse estado de coisas. Filme de Robert Aldrich, gritando ao seu instante, 1955, na Guerra Fria e no trauma da perda da inocência. Em vez de Boggie, é Ralph Meeker encarnando o detestável “herói” da trama, o detetive Mike Hammer, um vagabundo imoral cuja maior virtude é levar o carro da vida até o fim: o abismo. O explícito está na ausência de recuos em mostrar um velho sendo esbofeteado, uma secretária ser deixada como isca sexual para obter informações ao protagonista, um agressor tomar pipocas na cara e ser socado escada abaixo. Mais que nos significados, no entanto, A Morte num Beijo chega à excelência em seus significantes. Entre os recursos e arrojadas escolhas visuais e sonoras, brilha a ideia de os créditos iniciais serem apresentados no avesso, extraindo do “Kiss Me Deadly” algo ainda mais desconcertante que a revelação “física”, na tela, pelas palavras, da aliança entre beijo e morte, sexo e violência, idealização e realidade – a junção inesperada de bem e mal numa única frase, num único gesto, num único plano. Ainda nesses créditos iniciais, o gemido desesperado de uma mulher sobreposto à canção (diegética) cantada por Nat King Cole no rádio do carro de Hammer. Os cortes secos e inesperados, as ruas de San Francisco, a fotografia em preto-e-branco que luta para equilibrar a invasão da luz, o apocalipse apresentado ao espectador como uma possibilidade cabível nas mais ordinárias situações que não a simbólica e estilizada imagem de uma guerra entre EUA e URSS. E enquanto som e imagem disputam espaço no filme, o Hammer de Ralph Meeker é fisicamente exaurido pelas reviravoltas na trama. Nada mais concreto e agressivo como forma de representação cinematográfica. Nada mais incisivo como meio de sumular uma complexidade “inenarrável”.

kissmedeadly1

A Morte num Beijo (1955), Robert Aldrich

Os ventos de A Morte num Beijo sopraram para o Psicose (1960) de Hitchcock, para Os Assassinos (1964), de Don Siegel, onde Lee Marvin não perde a pose aristocrática ao hostilizar brutalmente uma deficiente visual ou dependurar a femme fatale Angie Dickinson pela janela. E, inclusive, para o cinema japonês moderno dos anos 1960, talvez o mais físico da história, dos trabalhos de Oshima, Masumura, Imamura e Suzuki ao cinema de gênero industrial de Fukasaku e aos manifestos hardcore de contestação à ordem de Wakamatsu. Não é uma influência direta, mas uma referência à ideia de que a violência é um modo inescapável de relação entre homem, mulher e mundo. A Morte Num Beijo é a grande consumação do uso e da sabotagem à gramática cinematográfica para fins artísticos, naquilo que caracteriza a arte como revelação de um olhar agudo sobre as coisas do mundo.

thekillers1montagem thekillers2 thekillers3 thekillers4

A film is a girl and a gun

A frase acima está em Toutes les Histoires, primeira parte de Histoire(s) du Cinéma, de Jean-Luc Godard, indicando a sedução fulminante do cinema, ou melhor, a sua brutal força de impacto. Mas a transgressão (agressão) está sempre implicada ao seu instante. A tal história do cinema assimila as avalanches para fazer delas um solo assentado onde se pode edificar um sentido mais histórico, mais narrativo, que inscreva o cinema junto à grande narrativa: a saga da humanidade. Isso é ação da historiografia, mas também de natureza física, geológica, pois tudo se acomoda. Os efeitos imediatos, via deslocamento e exposição direta, foram inegavelmente fortes em filmes como A Morte num Beijo, O Império dos Sentidos (1976) de Oshima ou Foi Deus Quem Mandou (1976), mas logo “naturalizados” e respondendo a outro propósito: o próprio cinema, como procedimentos para uso de todos os filmes do mundo. A relação com o entorno transforma-se, portanto, numa relação autista, a do cinema pelo cinema, olhando para si e recorrendo a si próprio como se fosse uma bula. A cartilha: convenção é termo que soa feio, ao contrário de tradição, mas é esta última que parece levar o entendimento sobre o cinema – e o próprio cinema – para a sacralização. Do sagrado, contudo, pode-se chegar ao culto, à adoração, e Godard conseguiu, por meio de uma arqueologia, revolver as imagens e fazer dos santos seres mortais. As artes, nos anos 1980, já olhavam para si como a fizeram na virada dos anos 1950 pros 1960, mas agora não era mais por uma ideia de autorreconhecimento para avançar a novas plagas, e sim pela inexistência de estrada a ser caminhada. Os anos 2000, enfim, veria melhor esse tal “fim da história” do cinema, mas, antes Godard mostrou que a dissecação traria à luz não um esqueleto, mas sim a alma das imagens, um grande espelho com camada mais forte de prata revelando ainda mais sobre o mundo que reflete na tela.

Godard percebe, há tempos, que o cinema era o espaço de culto de algo maior que a cátedra: as imagens. O vídeo, a película, a TV, em documentários, clipes, vídeos pornôs ou cineramas majestosos, todo esse material espectral pode ser tangido, pois, em princípio, essas imagens somos nós. A operação mecânica que ele empreende em Histoire(s) du Cinéma, traduzida no uso da máquina de escrever elétrica, rugindo como uma metralhadora, é a realização do cinema – o cinema como técnica, como empenho tecnológico que demanda uma intelectualidade para operá-lo, tal qual um historiador faz quando pesquisa o passado. É uma ação que violenta a lógica de falso equilíbrio e coerência típica das grifes – o ser humano sobrevive pela falsa ideia de que controla o mundo e está acima do indescritível. Em tempos que mostram uma total pasteurização das experiências reprodutivas do audiovisual, Godard prova que esse “cinema pelo cinema” é uma esfera rompível, um balão que, estourado, solta o ar da verdade: Nossa Música (2004) estupra as imagens outrora formalizadas para, nuas, trazerem o espectro infernal do homem. A criação, esse dom humano, traz o componente da destruição. A música é nossa, diz o título, e temos de ouvi-la com os olhos. Na primeira parte do longa, Reino 1 – Inferno, Godard usa imagens diversas (de arquivo, westerns, Griffith, Eisenstein, documentários do 3º Reich, a brigada ligeira filmada por Raoul Walsh, conteúdo broadcast, o maciste italiano) em sua estrutura orgânica, quase num raio-X que a mostra num momento anterior ao bom acabamento gerado pelo contexto, servindo como discurso sobre a destruição empreitada pelo homem na Terra. A guerra do Vietnã, a da Secessão, o nazismo genocida, crianças usando armas, a Guerra do Golfo, os Bálcãs, um caça F-4 Phantom rasgando o céu, bombas de napalm e de fósforo: o que vemos é a matéria da violência, quase uma ausência de formas para explicitar os borrões de um deletério caos.

notre2 notre4

Nossa Música é uma sinfonia do horror, espectros de cores incertas e desbotadas, à exceção do vermelho inegável, sincopado ao ritmo maquinal de um dispositivo de destruição (seu diretor sabe bem sobre o forte casamento entre som e imagem). A ação de Godard é a de recorrer, em 2004, às imagens esquecidas no templo e devolvê-las à rua, longe da proteção museológica, dando-lhes aquilo que as caracteriza como tais: movimento, choque, impacto e trauma aos olhos.

Outra nota: Uma cartela inicial, em Brutalidade em Pedra (1961), de Alexander Kluge, explica que “toda estrutura traz o espírito do seu construtor, mesmo se usada para outros propósitos, mais tarde”. O materialismo histórico, a imagem como portadora de algo retido na experiência do mundo, Kluge e Godard reiterando-se.

Na Terra de Santa Cruz

A lição de JLG é para a vida (do cinema). Se as imagens pertencem ao código, sem muito espaço para furar os olhos, mais reiterando que recriando violências, é pelo caminho intectual da cognição, de uma leitura gramatical mas sob outra construção frasal, que podemos reencontrar a experiência direta com o que tem de estar retido do mundo. O Brasil, como os outros cinemas, teve também seu momento áureo que abriu espaço para um cinema violento: a repressão militar da segunda metade dos anos 1960 e o cinema marginal. Há outros momentos, inclusive a violência menos física mas muito sentida, nos filmes de Saraceni, o Joaquim Pedro de O Padre e a Moça (1965), o São Bernardo (1972) de Leon Hirszman, mas O Bandido da Luz Vermelha (1968) e A Mulher de Todos (1969), de Rogério Sganzerla, O Anjo Nasceu (1969), Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Julio Bressane, a experiência formidável da Belair, o Bang Bang (1971) de Andrea Tonacci mostraram a matéria que compunha as tensas relações entre povo e nação.

bangbang

Bang Bang (1971), Andrea Tonacci

A máscara de macaco do filme de Tonacci, por exemplo, mais que um símbolo da opressão animalesca, era uma confirmação material sobre como seria possível representar o irrepresentável do Brasil do AI-5. A Belair, por sua vez, lidando com os códigos da cultura de massa, à la Godard, e com uma câmera que com vigor se ressentia do que via, por onde andava, para onde iria. Glauber, mesmo em exílio distante, percebia o caos (era uma questão de sentir na pele mesmo), e da solitária experiência surgiu Claro (1975) e A Idade da Terra (1980), já em seu retorno ao solo pátrio, na última experiência realmente frontal, de porrada, contra o país do ôba-ôba. A pretendida montagem livre, aberta a sequenciamento variado de rolos, inscreve A Idade da Terra na consumação da forma como meio de transmitir ondas sensoriais. Idem às reiterações presentes na obra-prima de Sganzerla, A Mulher de Todos, onde a Ângela Carne e Osso de Helena Ignez bate de frente com o disco arranhado do estado de coisas nacional.

As exceções existem, mas o padrão importa, pois é ele a marca que acaba timbrando um momento para a historiografia. Os anos 2000 tiveram com O Invasor (2002), de Beto Brant, uma explicitação da forte relação entre centro e periferia. Em 2003, Paulo Sacramento, contrariando a toada de filmes saídos da USP tipo o Contra Todos (2004) de Roberto Moreira, rejeita a sociologia de laboratório acadêmico e repete em tela de cinema o momento único do telejornalismo brasileiro, o do Globo Repórter realizado por cineastas nos anos 1970, com O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003). O aparato, item sempre discutido na atual tendência de reiteração conceitual da “arte pela arte”, não penumbra a explicitação de um universo que até então havia sido maquiado pela mídia. Sacramento traz, ali, o tal impacto do instante, do novo, da imagem atirada aos olhos do espectador.

A mídia, a TV, a história. Diferentemente dos EUA, por exemplo, o Brasil criou seu repertório, seu imaginário, no ambiente da TV. Mais que outrora, o cinema hoje é subjacente nesse papel de falar ao povo (ou de mostrar o povo), pois a televisão tomou esse lugar e, infame, traz suas imagens que entorpecem a razão. É normal, portanto, que o cinema lide com a tradição, com o regramento que o consagrou como cinema, e daí partam trabalhos que ou representam a violência ou comentem essa representação da violência. No primeiro caso, há o já referido assentamento da linguagem, onde os códigos servem a uma certa execução eficiente de cinema – Cidade de Deus (2002) é um exemplo. No outro, há uma reflexão da violência sem necessariamente trazer uma experiência violenta ao espectador – comparemos outro tipo de violência, a da miséria, exposta em Maranhão 66 (1966), de Glauber Rocha, e Estamira (2004), de Marcos Prado. O último exemplo, o do longa de Prado, na sua busca por excelência técnica para fins poéticos (ou seja, a sobreposição da autoria sobre o apreensível real do mundo), confirma uma relação obtusa e equívoca com a tal tradição. Presente em várias obras dos 1960s, das cinemanovistas aos formidáveis documentários sobre “o outro”, o tema chega nos anos 2000, pós-retomada, conformado como grife, como forma, como código.

Sim, o cinema mundial lida com essa tradição, inclusive o cinema de entretenimento norte-americano e o tal “cinema de arte” europeu, mas no Brasil a relação com o consagrado (a gramática, numa impossível sintaxe que mistura a excelência artística e quase mítica do nosso cinema dos anos 1960 à tal eficiência técnica da cinematografia mundial) parece servir para uma legitimação e não para uma realização, existência e ação cinematográfica. Talvez porque não tenhamos uma tradição de fato. A não ser a TV. Retornamos a ela. E, por conseguinte, a JLG: se a televisão é quem calibra os olhos (corações e mentes) do povo, é de suas imagens infames que o cinema pode encontrar uma história da violência atual.

Há o exemplo destoante de O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, que passa ao largo dessa possibilidade e, não só, dá conta de usar os códigos do cinema (o cinema de todos, ou seja, o da história do cinema, o dos gêneros da indústria, o da crônica escrita e filmada) para mostrar as tensas relações num bairro de classe média no Recife. O cotidiano, esse item tão fora da tela de cinema e tão transmitido (e distorcido) pela “grande companheira” televisão, ganha a imagem do “aqui e agora” tão capitular à cinematografia de todos os tempos.

Outro filme a servir de contraexemplo é Câmara Escura (2012), de Marcelo Pedroso. Se a violência aparece na tela de cinema brasileiro, sobretudo, como reiteração de códigos de representação ou como alusão a ser debatida, o documentário de Pedroso leva ao limite a tal ideia de “cinema pelo cinema”, fazendo da metalinguagem não bem um laboratório, e sim abrindo-o à experiência concreta, da rua e do cotidiano. Marcelo Pedroso, ele próprio, confecciona um dispositivo que consiste numa microcâmera confinada numa caixa, com o típico furo que existe nas câmaras escuras. O dispositivo, que captura imagens e as transmite à distância, é deixado à porta de várias casas. Inegável o diálogo com O Som ao Redor, na transgressão que Pedroso faz ao “invadir” o espaço do outro. A maior pornografia, hoje, é tocar na intimidade do outro, mas o maior crime continua sendo a invasão do nosso território, que talvez seja o maior temor da classe média. O tal dispositivo de Câmara Escura ganha vulto sombrio aos presenteados, quase como uma bomba deixada na porta.

O cinema brasileiro tem, grosso modo, passado ao largo desses materiais deixados pela TV, pelas redes sociais, pela história do cinema e pela história em tempo real da vida. Se o impacto é possível apenas pelo braço da mídia, o cinema tem de se voltar para si, para seu maquinário, e com ele retornar ao mundo e atacar todas as suas imagens. Câmara Escura poderia ser um filme de Harun Farocki, o grande cineasta a revelar, à la Godard, a demonismo totalitário em Videogramas de uma Revolução (1992), mas é o trabalho que nos devolve a nossa própria imagem. A grande violência do cinema, enfim, é ser o grande espelho, aquele que lembra que a música é nossa.

Share Button