Bastardos (Les Salauds), de Claire Denis (França, 2013)

novembro 21, 2013 em Em Cartaz, Juliano Gomes

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Night Shift
por Juliano Gomes

Já se pode, sem medo, afirmar: há um estilo clairedenisiano. Dada a força de uma maneira que se impõe e que se expande pela irreparável obra que Denis vem constituindo há mais de vinte anos, podemos falar sim de um adjetivo. Mas dificilmente podemos aplicá-lo com justiça a uma obra que não seja da própria autora, por conta da clareza dos seus procedimentos (preferências pelos planos próximos, fragmentação narrativa, predileção pelos corpos e objetos) e, igualmente, por sua invulgar competência para combiná-los. Bastardos é talvez o filme com o qual se possa pensar nisso com mais clareza. Olhado a partir do conjunto de sua obra, é possível perceber aqui uma força de retomada, de solidificação de procedimentos e elementos. E é justamente sob os fios dessa relação entre o que é repetição e o que é diferença que se pode intuir a grandeza da obra desta que é uma das artistas mais decisivas dos últimos vinte anos: há sempre uma força atual, do presente, imediata, em contato, em luta, ou em fluxo, com uma outra antiga, às vezes tradicional, outras vezes primitiva. É aí que se travam as lutas nesse universo tão bem delineado quanto caótico, marcado, porém, em movimento contínuo.

Fiquemos com a primeiríssima imagem: uma chuva noturna em primeiro plano. Há, nesta imagem, uma espécie de efeito de desnaturalização que passa a impressão de que, após alguns segundos, as gotas estão subindo. Uma torrente reversa é o que abre o trajeto trágico que conferiremos em seguida. Há uma força cega, uma força hidráulica, que não obedece às leis dos homens (é sempre sua ruína o que ela não cessa de narrar), e que a imagem faz não obedecer nem mesmo à lei da “natureza”: a água, isto é, a luz incidindo sobre o movimento das gotas, aponta o movimento ascendente.

Como de praxe, as indagações de Denis deságuam em, digamos, “problemas de base”: que ideia é essa de natureza (portanto, de sociedade) que nós criamos e na qual nos apoiamos? Daí um enredo que se sustenta em um dos pilares dessa questão: o incesto. E incesto é repetição, é um fascínio pelo que é de “dentro”(endogamia), é uma espécie de volta para si, para seus próprios genes quando transformados em outra forma. E é, também, uma ação das mais radicais de oposição às cartilhas morais de grande partes dos agrupamentos humanos. Daí seu potencial simbólico e político.

Porém, o que importa aqui é sempre o que desdobra daí – as dobras, as expansões, as diástoles do drama se espalhando pelas matérias (a característica mais fundamental da força de seu estilo é a maneira como evidencia a vocação do cinema como um escancarado teatro das matérias e volumes, sem nuca aderir a abstração pura… nada é “puro” aqui). E Bastardos é provavelmente um de seus filmes em que o encadeamento desse fio, desse contágio, dessas sucessões, é mais claro e linear. Diante da escuridão (estamos frente a um exemplar da inflexão “noturna” de seu cinema, como S’en fout la mort (1990), Trouble Every Day (2001), e Vendredi Soir (2002)), o filme se forma com absoluta clareza de ordenação. Daí a filiação, que com o passar de sua obra fica cada vez mais evidente, aos códigos da tradição dos cinemas de gênero. Aqui, em poucos minutos temos: um cadáver, uma mulher nua, uma jovem zumbi que vagueia em sapatos de salto alto. As cartas estão na mesa, e é sempre o mesmo jogo – de caça, do desejo, do pulso e da pulsão – em direção ao homem (novamente, essa força de reversão).

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Claire Denis filma os homens de perto pra narrar justamente sua pequenez. Mas não frente a Deus, ou qualquer outra metafísica, mas frente a eles mesmos, frente ao seu próprio avesso, ou lado de dentro. O drama do homem, assim como já haviam percebido os gregos, é um drama da medida, da escala (é isso que diferencia a relação entre pais e filhos mostrada aqui e em 35 Doses de Rum (2009), por exemplo). O perspectivismo denisiano exercita justamente essas variações para enxergar seus limites e suas transposições – suas variações, enfim. Para Marco (Vincent Lindon), a medida é a do afastamento: o quanto é possível se alhear das coisas? Para Laporte (Michel Subor), a medida é a do poder. Para Jacques (Laurent Grévill), a luxúria.

O problema das tragédias de Denis é que a impressão que elas passam é a de que não há “fora”. Será que a hybris, a desmesura, é mesmo o incesto causado a Justine? Ou serão as manobras escusas de Laporte, ou o desejo de afastamento de Marco? O trágico não é a exceção, mas a regra (como aponta o filme-manifesto não por acaso intitulado Trouble Every Day): estamos todos implicados, daí emana o espanto geral causado por sua obra. E o triunfo da tragédia, da destruição, da dissolução, do não-individual afinal, é o triunfo do lado de dentro: a vitória da carne, do sangue, do que não tem contorno, nem cerca, nem fronteiras: morte e êxtase, enfim.

O intruso (“disparador” constante de todos os seus filmes) é na verdade o que mora dentro, é a potência de apagamento, de morte, que se expressa nessa intensidade em que se dá o trânsito entre o dentro e o fora, no sexo, nos transplantes, nas aduanas… O estado é sempre vulcânico em seus filmes, magma tomando as superfícies, destruindo tudo, e constituindo relevos novos. Se o foco aqui é a família, o problema rapidamente se espalha pra fora desse agrupamento, pois todo agrupamento é arbitrário e é fundado por um dado de auto-preservação e de proteção. A maior proteção que se pode ter é a morada dos atos mais atrozes, e seu alvo preferido é justamente o corpo feminino e o corpo jovem. O perigo vem de dentro. Qualquer cerca ou linha de limite é uma encenação que esconde o verdadeiro perigo, o triunfo do informe.

Os closes de Denis devem ser tomados ao pé da letra: um drama de decapitados enfim, pois a cabeça já serve pra outra coisa. Já é quase um músculo, uma massa, com densidade… mas o que seria sua virtude, o raciocínio, a lei, ou mesmo o divino em nós (o superior, “o que manda”), é um embuste. Sua atenção a essas caixas de cavidades e pele narra sua falência múltipla. Tudo sai pela culatra, tudo se reverte. Os atos são sempre filhos ilegítimos das intenções. Daí a força da narração objetiva de seus filmes, o que a torna uma das cineastas mais “fáceis” de que se tem notícia, pois cada imagem é antes de tudo o que ela mostra, sua realidade material, captada pela lentes. Se abundam os olhares pra fora do quadro, é porque os personagens estão, como nós, implicados no jogo, embasbacados pela evidência radical do mundo, em cada aparição.

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Não por acaso, os momentos de menor intensidade em Bastardos são aqueles em que essa medida da evidência entra em crise, como na reiteração da espiga de milho ou do acidente de carro, nos quais parece abrir-se uma exceção para que essas matérias, necessariamente mudas, se tornem enunciados, e sofram perda de potência de significação. Após um drama da clareza excessiva (Minha Terra, África (2011) – e cabe notar como, curiosamente, seus filmes solares tendem ao labirinto, como também Bom Trabalho (1998) e talvez Chocolate (1989) ) – Claire Denis volta a investigar o que acontece quando escurece, quando tudo se funde, quando a obscuridade se espalha, enfim.

É notável mais uma vez a força de complementariedade do trabalho com os Tindertsicks, em sua porção marcadamente inorgânica, no destacado trecho final (na canção sugestivamente chamada de “Put Your Love in Me”, que cabe aqui destacar pelo menos um verso autoexplicativo: “Everything you are has just got to be a part of me”). Diante da imagem “artificial”, de baixa resolução, de baixa altura (o filme termina longe da cabeça, mais especificamente, uma espécie de prótese, natural e artificial, ao mesmo tempo, do pênis, do que faz a ponte entre o dentro e o fora, e ele é a ponte), ouvimos uma parede sintética que, a partir de signos absolutamente do domínio do artifício (baterias eletrônicas e sintetizadores), reconduz ao primitivismo do transe, por um viés da violência, que se adiciona à da imagem. É sempre essa a equação de suas dobras e desdobras. É um cinema da repetição, pois vai sempre chegar nesse “mesmo”, indiviso, que comprova a identidade da multiplicidade das partes com a variabilidade do mesmo todo.

Se falamos de perspectivismo, a ideia de mônada não parece estar longe. À mais incisivamente precisa sofisticação da narração cinematográfica, se irmana uma vinheta da mais barata ficção, digna de um comercial de cigarros (a cena do arremesso da camisa com os cigarros), por exemplo. Os sistemas denisianos são fábulas sobre o contágio, em diversos níveis. Tudo pega. E toda distância criada para evitar o contágio é somente o trajeto onde se acelerará a força que quebrará esses obstáculos (família, sociedade, pele, individualidade, membranas quaisquer)… tudo isso é trampolim para a força subterrânea e comum que todos temos, isto é, que nos tem, todos. É sob essa chuva que se desenvolve a arte de Denis. Bastardos narra justamente sua incapacidade de cessar, seja qual for o seu sentido

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