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Da ficção pragmática à fantástica realidade

Por detrás da muito discutida falsa dicotomia entre a ficção e o documentário, ou mesmo da igualmente super explorada questão dos chamados “filmes híbridos”, uma das perguntas que parece vir menos à tona – embora talvez seja a que mais falta faça na origem de muitos projetos – é a que questiona acerca dos porquês de fazer ficção ou fabular em torno da realidade, nos dias de hoje. Embora possa parecer algo óbvio à primeira vista, a verdade é que em muitos filmes o desejo de se grudar na realidade, principalmente ao redor dos temas mais candentes ou “do momento” termina por amordaçar de forma sufocante as possibilidades que a ideia de fabulação poderia apresentar.

Dois exemplos destes foram exibidos esses dias em Cannes: o belga Girl e o tunisiano Weldi. Nos dois casos, curiosamente, há a sombra dos irmãos Dardenne, certamente dos cineastas mais influentes dos últimos vinte anos: no primeiro, pela origem do filme na mesma Bélgica dos cineastas, e no segundo onde eles efetivamente constam como coprodutores do projeto. Girl é o primeiro longa de Lukas Dhont, que se dedica a mostrar o cotidiano de uma adolescente em processo de transição de gênero (nascido masculino, se identifica como menina, e espera apenas poder começar o tratamento de hormônios mais forte para realizar a operação de mudança de sexo). No meio tempo, ela aspira ser bailarina, só que a biologia do seu corpo ainda masculino impõe limites físicos mais difíceis de ultrapassar na luta para ser aceita pelas colegas e professores na instituição artística.

O filme todo se estrutura ao redor de uma impressionante interpretação do seu ator principal Victor Polster (que é um bailarino cis gênero fazendo seu primeiro papel em cinema), menos pela transformação em uma presença feminina e mais pelo tanto que incorpora no seu olhar as incertezas e medos de alguém que já passa por um momento complexo, e ainda precisa somar a isso as dificuldades físicas desse processo relacionado com a dança. No entanto, se inegavelmente a presença que se constrói de Lara (o nome feminino da personagem) é uma força que a câmera necessita orbitar, toda a estrutura dramática que Dhont cria ao redor não renega a origem do projeto: uma história real que ele conheceu, e que deseja “demonstrar” para o mundo. Tudo em Girl termina sendo, então, realizado sob o signo do esclarecimento: exposição do processo de transição, exposição dos dilemas vividos em casa mesmo com um pai favorável e compreensivo, exposição das dificuldades com os/as colegas de adolescência, exposição, exposição, exposição… Depois de um determinado tempo é inevitável pensar que, malgrado o trabalho excepcional de seu protagonista, um documentário acerca da personagem que inspirou o realizador talvez resultasse mais enriquecedor para dar conta de seus objetivos, uma vez que nada na ficção parece realmente o interessar.

Algo similar acontece com Weldi, só que com um agravante: não há nem mesmo um ator fantástico que faça com que nossos olhos grudem na tela. Mohamed Ben Attia, cujo primeiro longa competiu em Berlim há dois anos, explora a vida de uma família cujo único filho repentinamente decide se juntar ao Estado Islâmico. Na primeira parte do filme, antes de seu desaparecimento, o filme até encontra alguns momentos fortes na criação do cotidiano da família que explicitam a falta de comunicação e partilha sem precisar de maiores exageros. A partir do momento que o filho sai do filme, porém, este se perde junto com o pai – sem que isso seja uma construção conceitual metalinguística. A busca empreendida é dramaticamente precária, as cenas não se completam, o drama parece forçado e a conclusão bastante arbitrária. Repete-se a sensação de o filme só quer expor algo sobre um “grande tema do momento” (a radicalização de uma juventude desencantada) sem conseguir usar das ferramentas da ficção para urdir nada de efetivamente relevante.

Seria desanimador ver esses filmes, eminentemente corretos e sem maior vida, como a fronteira da ficção frente ao real. Mas, por sorte, pudemos ver nesses dias no festival que a ficção ainda pode muito ao fazer face à realidade ao seu redor. Primeiro de tudo, com o novo filme de Jafar Panahi – realizador que, ele mesmo, se tornou parte do noticiário com sua condenação primeiro a não poder mais realizar filmes nem sair do Irã (o filme foi representado no festival por suas atrizes, fotógrafo e produtora). De fato, 3 Faces (Se Rokh) afirma a trajetória de Panahi depois dessa condenação como uma das mais instigantes na sua capacidade de repensar os trajetos que o ato de criar em formato de ficção pode oferecer a partir da própria forma como os seus filmes são realizados, e como eles se relacionam com a sua realidade mais imediata. Ousar fabular a partir da sua rotina e do seu entorno tem sido, para o cinema de Panahi desde Isto Não é Um Filme, mais que um gesto de salvação e de rebeldia: tem sido mesmo a descoberta de toda uma nova possibilidade de como colocar em cena a urgência do que se passa no mundo à sua volta (algo que, de resto, sempre esteve presente no seu cinema).

Aqui, Panahi reflete mais uma vez sobre as dificuldades dos artistas em se expressarem a partir de sua arte, no Irã, sendo ele mesmo um dos protagonistas do filme (como nos seus três longas anteriores). No entanto, aqui a figura que ele interpreta (e mais ainda do que nos outros filmes, ele é aqui um ator, antes de tudo) não é a que centraliza a ficção: ele é quase um canal para que ela surja, alguém que “dirige” num sentido muito mais mecânico (e, não por acaso, assim como em Táxi, de novo ele passa boa parte do filme por trás do volante de um carro). Sim, porque se é verdade que 3 Faces é um filme sobre a arte como gesto de liberdade frente a imposições do cotidiano (e da família, e da religião, e da comunidade, etc), acima de tudo ele é um filme sobre a mulher no Irã contemporâneo (como de resto em grande parte já eram O Espelho ou Offside, trabalhos de Panahi pré-condenação). Os “três rostos” do seu título, nesse sentido, parecem se referir às duas personagens femininas que ocupam a tela do filme bastante tempo (junto com Panahi), mas o terceiro não seria o dele, e sim um que nunca vemos (e os motivos para isso são parte essencial do que o filme quer demonstrar): o da atriz veterana, esquecida e proscrita a uma vida isolada, em cuja casa as três mulheres se encontram, e a câmera nunca tem a “permissão” de entrar. Naquele espaço quase sagrado de encontro (que só de longe e em contraluz avistamos, com as personagens que dançam) é que se passa o principal para o filme: a irmanação entre a atriz do passado, a do presente e a do futuro. O poder da arte que cruza gerações e inspira a vida.

Boa parte da beleza do filme está na maneira como Panahi retoma muito do que Kiarostami inventou em seus “filmes de estrada”, e reencontra uma maneira de fazer com que procedimentos caros ao mestre pareçam renovados: as conversas dentro do carro em viagem, os planos da estrada, os encontros pela janela com personagens “reais”, a ficção que vai se impondo à aparência do registro da vida, a chegada dos realizadores de cinema num povoado isolado… Até mesmo uma personagem que cava sua própria cova e se deita nela à noite! De fato, não parece nada exagerado imaginar (e só podemos imaginar, já que Panahi não pode estar aqui para conversar sobre suas intenções) que o formato de 3 Faces configura uma direta homenagem póstuma à importância do amigo, mestre e colega de trabalho na formação de Panahi (uma vez que o filme é também sobre a importância das figuras inspiradoras e dos exemplos na configuração do trabalho de um artista). Como uma boa homenagem, porém, não se trata aqui de repetição e sim de reinvenção. A verdade é que o cinema de Panahi é hoje incrivelmente livre, solto e plenamente em domínio do seu formato.

Liberdade também é a primeira palavra que vem à cabeça ao assistirmos o novo filme de Alice Rohrwacher, que também radicaliza suas escolhas a partir de procedimentos e pontos de partida já presentes em seu anterior As Maravilhas. O começo de Lazzaro Felice é mesmo muito parecido: uma casa no interior de uma Itália quase atemporal, uma família vivendo numa casa isolada em relação estreita com a natureza ao redor, um cotidiano em que o mágico parece se misturar com a realidade de forma natural. Há um novo tema que logo se introduz (questão de relação de classes), mas o corte radical de fato vem na forma de uma ação inesperada, e que impõe um corte no tempo, mas também no espaço.

Vamos do campo para a cidade em meio a uma elipse surpreendente, que atesta o sentimento mais delicioso que o cinema de Rohrwacher nos faz retomar: o de que, a qualquer momento, tudo pode acontecer. A partir da ida para a cidade, o filme incorpora uma contemporaneidade que apenas lateralmente aparecia nas obras anteriores da diretora, mas o faz sempre a partir dos olhos desse protagonista, Lazzaro (Adriano Tardiolo), cuja presença encarna de alguma forma um ideal que parece muito caro à realizadora: a dos olhos livres, abertos a ver as coisas de maneira diferente do seu entorno e sem os pré-julgamentos de uma sociedade onde os papeis parecem todos dados previamente. Para Lazzaro tudo parece sempre ter algo de novo, e a realidade, por menos aberta que se mostre a incorporá-lo, também pode/deve ser invenção. E, afinal, não seria esse o verdadeiro poder da ficção?


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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