A Visita (The Visit), de M. Night Shyamalan (EUA, 2015)

janeiro 25, 2016 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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Recordações de uma mala vazia
por Fábio Andrade

“É provavelmente um nome escocês, tirado de uma história de dois homens em um trem. Um homem diz: ‘Que pacote é aquele no bagageiro?’ E o outro responde, ‘Ah, é um MacGuffin’. O primeiro pergunta, ‘O que é um MacGuffin?’ ‘Bem’, o outro homem diz, ‘é um aparato para capturar leões nos planaltos escoceses.’ O primeiro homem diz, ‘Mas não há leões nos planaltos escoceses’, e o outro responde, ‘Bem, então o MacGuffin não existe!’. Então você percebe que o MacGuffin em verdade não é coisa alguma”.

Alfred Hitchcock, palestra na Columbia University, 1939.

A Visita é o primeiro filme de M. Night Shyamalan desde Fim dos Tempos (2008).

A afirmação é factualmente incorreta, mas o é em nome da correção dos fatos: a despeito de demonstrações pontuais de milagrosa força cinematográfica e da persistência das questões autoristas, O Último Mestre do Ar (2010) e Depois da Terra (2013) eram projetos de produtores, nos quais o diretor cedeu o controle criativo sobre o resultado final em troca da manutenção dos maus hábitos dos orçamentos inchados e das produções superpaquidérmicas. Se a admiração de parte da crítica brasileira (incluindo a Cinética) pela obra de Shyamalan se deu de maneira razoavelmente crescente de O Sexto Sentido (1999) até Fim dos Tempos (2008), fenômeno contrário parece ter ocorrido junto ao senso comum: após Corpo Fechado (2000), o jornalismo cultural norte-americano uniu forças ao boca-a-boca de fila de bilheteria para tachar Shyamalan como promessa não cumprida, deixando claro que suas torções de expectativa só eram bem vindas se circunscritas a uma rotina de satisfação previsível, que não acolhe ou permite reais surpresas ou deslocamentos. Enquanto isso, a crítica e a cinefilia “sérias” americanas, com raras exceções, se deixavam cegar por sua própria seriedade, em silêncio que acobertava e acoberta a indetecção generalizada de talento tão eloquente. Em texto sobre The Man Who Heard Voices, livro de Michael Bamberger sobre as filmagens do fracasso de público derradeiro que foi A Dama na Água, de 2006 (tristes são os tempos em que cabe a um jornalista esportivo ter maior sensibilidade cinematográfica do que os mais respeitáveis críticos de cinema), David Bordwell sacramenta a desigualdade desta relação em dissonância: “Críticos debocharam do roteiro mal ajambrado mas, como de praxe, eles se mostraram incapazes de perceber qualquer dado de textura visual que não estivesse explícito no press release. (….) Foi puro azar de Shyamalan ter realizado uma fantasia meio pateta no justo momento em que os críticos ansiavam pela oportunidade para atacar sua reputação”.

Tomar o público ou a crítica como parâmetro inalienável é tão imprudente quanto negar-lhes qualquer voz. Pois uma mala vazia é ainda uma mala, e é ciente de toda essa bagagem que A Visita chega como uma tentativa de reparação, de restauro de uma relação que tropeçou em uma sequência de contratempos, e não encontrou novo andamento nos fracassados blockbusters de contrato. Após uma razoavelmente bem sucedida incursão pela televisão, com Wayward Pines (2015), Shyamalan paga o preço do controle de suas próprias decisões com dinheiro do próprio bolso (A Visita é seu longa-metragem mais barato desde seu filme de estréia, o pouquíssimo visto Praying with Anger, de 1992), em lançamento nos cinemas em parceria com Jason Blum (responsável pela rentável franquia de baixo orçamento Atividade Paranormal) que resulta em insuspeito sucesso de público nos EUA (a crítica “séria”, ao que parece, continua optando por evitá-lo). A justiça poética está em trazer essa discussão de relação para o proscênio: em época tão suscetível à auto-consciência, A Visita tem como primeiro acerto fazer-se trilha-sonora de seu próprio descompasso.

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Racionalmente, tal gesto não parece tão desconcertante quanto ele se mostra em tela. No fundo, M. Night Shyamalan sempre foi um meta-narrador: seus filmes aparentam narrar mas, em realidade, usam esse modelo narrativo para defender uma tese sobre a necessidade de se narrar. Os filmes seriam, para usar termos do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser em Into the Universe of Technical Images, imagens resultantes da computação de um texto, de uma tese, de uma formulação; um conceito imaterial que é digitado para se apresentar como uma imagem – virtual, sem lastro, mas ainda assim visível, tornado imagem, e só assim apreensível. Em outras palavras, “O cinema não se criou contra o teatro; ele se criou depois da literatura” (Jacques Rancière, As Distâncias do Cinema), depois de a representação por imagens ter sido substituída como prática cultural pela concatenação de idéias em forma de texto, em tese, em conceito.

Um dos muitos elementos que tornam o cinema de Shyamalan escorregadio em sua localização crítica e histórica se dá logo nesta primeira contradição: sua formulação é sobre a narrativa clássica, em especial a cinematográfica, e por isso ela incorpora ferramentas, convenções e dispositivos de linguagem que, para a clara exposição de sua tese, precisam ser eficientes em mostrar, apresentar e narrar. Ainda sim, nos filmes de Shyamalan – cineasta moderno – mostrar é também demonstrar o que mostra; apresentar é demonstrar o que apresenta; narrar é demonstrar o que narra. Para que a tese seja apresentada, é preciso dar a ver e dar a saber, ao mesmo tempo, e isso se dá pelo dar a contar. Apesar de sua aparente moldura clássico-narrativa (por paixão e clareza, Shyamalan permanece um dos últimos bastiões da decupagem no cinema norte-americano, o que faz com que mesmo seus piores filmes sejam declarações enfáticas de mise en scène), seu cinema sempre carregou algo de truque, de MacGuffin, de aparentar ser para, em verdade, ser sobre ser, além do que aparenta, uma vez que nada o é, de fato.

Em época em que mesmo os desenhos animados precisam cumprir certos predicados de auto-consciência – seja referencial, nas séries Shrek ou Family Guy; seja por evisceração estrutural, como em Divertida Mente (2015) – para sentar à mesa do cinismo esclarecido do gosto médio, é de se estranhar que um diretor de teses tenha ido da mais contundente aceitação pública (“I see dead people” é possivelmente a mais popular auto-declaração sobre o dispositivo cinematográfico desde Cantando na Chuva) a um suicídio em praça pública junto ao gosto dominante. Ironicamente, o que o empurra, filme após filme, a essa gloriosa auto-combustão não é exatamente o aspecto intelectual de seu trabalho em um mundo pra lá de mal acostumado com o eufemismo do high concept, mas a maneira como essa solidez reflexiva é irmanada e contrastada a um franco sentimentalismo. Em entrevista ao New York Times durante o lançamento de A Visita, o diretor comentou abertamente sobre esse gap geracional: “Para mim, ‘E. T.’ sempre foi o santo graal. Eu tinha 13 anos quando vi aquele filme e eu chorei no cinema. Você conhece algum garoto de 13 anos que faria isso hoje? A época em que cresci era acolhedora e sentimental. Esse público não existe mais. Minha filha saltou direto da Pixar para os filmes com o Seth Rogen”. É justamente esse gap que Shyamalan coloca sob questão em A Visita, para reafirmar esse acolhimento como necessidade ainda mais vital em tempos de escassez programática.

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Afinal, é esse mesmo sentimentalismo que salva-o do cinismo e coloca-o frequentemente em descompasso com o cinema e o mundo contemporâneos: em tempos individualistas demais para amar (mesmo a si próprio), Shyamalan é a voz dissonante a afirmar que as pessoas, assim como palavras antigas que vêm com elas como “comunidade”, “virtude”, “crença”, “fé”, “graça” e “amor” – em resumo, as “coisas”, no sentido platônico – ainda importam. Iria além: importam mais do que as imagens, do que a superfície, do que a aparente intransponibilidade das representações que o cinema moderno propagandeia como valor em si, sem sempre ter razão (é preciso amar perdidamente o vazio para que ele se faça “coisa”; caso contrário, o vazio é somente vazio). Se, precisamente, o sentimentalismo é o gesto de “dedicar às coisas uma ternura maior do que o próprio Deus lhes dedica” (J.D. Salinger), a inflamação inversa se petrifica em cinismo.

Diante desse genocídio auto-legitimado, Shyamalan se auto-proclama (como todo artista) o xamã que deseja mudar as coisas (como apenas os grandes artistas). A questão é que, na vida contemporânea “as imagens se colocam à frente das coisas” – e embora o conceito de “imagem” de Flusser vá muito além da imagem física, como a cinematográfica, ela certamente está incluída nesse mesmo regime. O cinismo, porém, é o justo fruto da hipervalorização dessas mediações em relação às próprias coisas (o cinismo é a morte). Se há uma lição a ser tirada de todo o histórico feito até o momento é que, para chegar novamente ao coração do mundo, “o homem precisa, então, estender-se através das imagens para conseguir mudar as coisas” (Flusser).

A Visita encena ambas – a saturação das imagens e a dificuldade da travessia – sem jamais perder de vista que elas só fazem sentido como etapas intermediárias que permitem “mudar as coisas”, do lado de cá.

An M. Night Shyamalan film 

Após o crédito que afirma o desejo de singularidade do auteur, o filme se apresenta pela mais banal e desgastada de todas as imagens: uma entrevista, no registro jornalístico que tanto é tomado como documental, estabilizando o vazio na composição equilibrada de uma sala de estar que neutralizou todo o trauma – logo, toda a vida – em uma paleta sonolenta de bege sobre bege. Aqui, como em qualquer outro lugar em que essa imagem banal aparece, espera-se que ela ofereça de mão beijada a chave que abre o cadeado que tranca todos os problemas (de preferência com um contraluz beatificante a entrar naturalmente pela janela): a exposição do trauma pela memória de quem conta, disparado pelo simples gesto autoritário de alguém se colocar detrás da câmera e dizer “desejo saber”.

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Afinal, se A Visita vem como tentativa de reparação na relação atravancada entre M. Night Shyamalan com seu público imaginado (é preciso recativar o ouvinte, pois uma tese sobre a necessidade de narrar é um imediato fracasso quando ela não narra a mais ninguém) e com parte da crítica (nós não; reservamo-nos a suficiência da vontade de ver e de escutar quem tem o que dizer e o que mostrar), nada mais justo que ele seja também um filme sobre uma relação colapsada entre os longos intervalos de silêncio de um irremovível ressentimento. Para a demonstração da tese se dar em absoluta transparência (“nada nesta mão”, diz o mágico; “nada na outra”), é preciso fazer com que a reparação da narrativa se manifeste em uma narrativa de reparação.

O primeiro passo, naturalmente, é tentar o caminho mais curto: à frente da câmera, está Loretta Jamison (Kathryn Hanh); atrás, Becca (Olivia DeJonge), sua filha de quinze anos aspirante a documentarista, mas também estamos nós, ao lado de M. Night Shyamalan. “Conte-me o que aconteceu naquele dia”, pergunta a cineasta à sua mãe. Em linguagem apropriadamente remetente ao léxico de Eduardo Coutinho, as regras do jogo são claramente estabelecidas: Loretta não fala com os pais há quinze anos (idade da filha, nascida em algum momento entre O Sexto Sentido e Corpo Fechado), desde uma briga por conta de seu namorado à época (eles diziam que ele tinha “olhos impacientes”, provável referência à tendência confirmada à infidelidade, mas escolha cuidadosa de palavras que, entre outras coisas, contrasta com a predileção do cineasta – sui generis, dentro do cinema industrial americano – por planos longos), com quem ela teve seus dois filhos; seus filhos irão ver os avós pela primeira vez, passando uma semana com eles no interior gelado da Pennsylvania, enquanto a mãe aproveita um ensolarado cruzeiro de navio com seu atual namorado. Mas a razão para o trauma e para o rompimento geracional permanecerá silenciada nessa infinita alteridade: “Fiz algo que escolho não contar para você. Se eles escolherem te contar, é direito deles”, ela afirma, categórica. O que pode este plano de entre-vista além de documentar sua completa ineficácia em fazer a única coisa que se espera dele (e de qualquer imagem violada pela vulgaridade televisa): fornecer a confissão que ele foi desenhado, testado e repisado para produzir?

Essa imagem que, embora programada cuidadosamente para mostrar, escolhe obscurecer a única coisa que toda a sua configuração promete propiciar, delimita o centro do problema que A Visita confrontará a cada novo plano: as imagens não fazem exatamente o que se espera que elas façam. Mesmo dentro da mais convencional construção, a simples repetição como convenção transforma o sentido do código em linguagem: “Símbolos que estão ligados por conteúdo se chamam códigos e podem ser decifrados por iniciados. (…) Cada imagem precisa fazer parte de uma cadeia de imagens, pois se não estivessem inseridas em uma tradição, elas não seriam decodificáveis.  (…) Naturalmente, isso nem sempre funciona. Como toda observação é subjetiva, cada nova imagem traz um novo símbolo de alguma espécie ao código. Cada nova imagem portanto se distinguirá em algum grau da anterior, para se impor como uma original. Assim, ela mudará o código social e enformará a sociedade” (Flusser).

Volta-se, aqui, ao princípio básico da linguagem cinematográfica, e do poder ao mesmo tempo perturbador e essencialmente afirmativo representado pelo MacGuffin: para que uma mala vazia seja ainda uma mala, é vital que ela permaneça trancada. Caberá aos dois jovens desgarrados tentar compreender e dimensionar essa fissura que não lhes é própria mas, ao mesmo tempo, lhes diz íntimo respeito. Caberá a eles ir, de mala e câmeras, à casa dos avós.

The Visit

Entre a mão que segura a chave e o cadeado indizível que tranca a mala vazia, há, porém, um punhado de imagens – imagens gastas, imagens porvir, imagens de imagens. Afinal, Becca é a personagem que não consegue se olhar diretamente no espelho, mas que deseja se encarar através da mediação proporcionada pela câmera… a narradora que não entende possibilidade de perdão que não venha espatifado entre quatro ou cinco camadas de mediação, e que paga o preço por isso com um espelho quebrado com o próprio rosto e o sangue estranho a jorrar-lhe sobre os dentes. “Sério, Becca. Isso me deixa com vontade de chorar”, elogia seu irmão mais novo, Tyler (Ed Oxenbould), ao ver um trecho do copião que eles filmaram ao longo do dia, em que Becca segura as mãos de sua “avó”. Pelo espelho, ela pergunta, com olhos temerosos: “Você está conscientemente ciente de que essa é a minha intenção?”. Para a geração de Becca, a expressão sentimental só é ética se dissimulada como não-expressão. “Eu odeio filmes melosos. Eles são uma tortura”, ela diz, e não é improvável que os finais redentores de Fim dos Tempos ou Sinais (2002) estejam passando por sua cabeça neste exato momento (ou o pianinho melodramático que fecha seu próprio filme, ao final de A Visita).

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Se a geração de Loretta, a mãe, é protagonista do rompimento com a geração anterior, a de Becca e Tyler é a que busca reaproximação com o paraíso perdido representado pelos avós, mas o faz por meio de um labirinto de mediações, de relações que só podem ser afetuosas se forem tortuosamente indiretas. Só assim, acreditam eles, o trauma do passado pode ser superado, e certa harmonia restaurada. Tyler, poeta louro que se acha negro (“Rap é uma forma de poesia moderna”, legitima a irmã mais velha, que depois o chama de “meu amigo etnicamente confuso”), também troca a tentativa de precisão da linguagem poética pela linguagem em código, figurada: “Decidi que daqui pra frente vou usar nomes de cantoras pop em vez de xingar. Por exemplo, se eu der uma topada, direi ‘ah! Shakira!’”. É essa negação da aderência entre as palavras e o sentido corrente que o torna elemento perturbador à mise en scène cuidadosamente controlada pela irmã para parecer realista, que culmina na entrevista que ele faz com ela, trazendo à mesa perguntas indesejadas. “Tente ser formal, como no classicismo…”, ela diz, antes de confiar-lhe a segunda câmera, direção que vem com uma lembrança impossível: no classicismo, cada coisa é o retrato dela mesma, em uma operação de equivalência entre representação e ente representado)

Diferente do classicismo, em A Visita nada é exatamente o que aparenta ser; tudo se mostra em sentido figurado, no lugar de o que realmente é, mas não se deixa mostrar. Quando Loretta embarca os filhos no trem, uma cena sacramenta essa relação em uma espécie de meta-cinema que escorre pelas bordas: a câmera de Becca a filma através da janela, correndo em pantomima sorridente paralelamente ao trem, que avança pelos trilhos, até que, no último momento antes de sair de quadro, com a velocidade impossível da locomotiva, aquele teatro de despedida desmorona em um princípio de choro. A Visita alterna com espantosa facilidade entre registros polarizados justamente por sua regra ser a do mostrar-se outro – daí a efetividade burlesca da montagem, invariavelmente interrompendo o fluxo emocional da cena com cortes secos para o risível ou para o grotesco, em movimento que ao mesmo tempo pode ser profundo e redentor.

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Na hora e meia que segue a partida do trem na estação, A Visita se assentará em uma porosidade permanente de registros, justamente por tudo aqui não ser o que parece. Daí a explosão do filme em uma mise en abyme de representações: filme-diário que se revela mockumentary, que emula filme de found footage para, através da comédia, se efetivar como filme de horror… tudo isso para encontrar, no epílogo sentimental muito ao gosto de Shyamalan (e não naquele seco e direto que Becca acreditava ser o seu epílogo), a cura, o elixir para o trauma da geração anterior (a geração de Loretta; a geração do próprio Shyamalan) que, por má interpretação genética, se reflete no trauma do presente (a imagem interdita do pai): não há missão mais nobre para um filme do que conseguir provar ainda ser possível um grand finale com o uso melodramático de imagens de família em Super 8. “Dá-me os cansados e os pobres” – essa é a missão de A Visita: reabilitar todo veículo que foi condenado como clichê pela localização precisa do sentimento que, antes, o motivava e mantinha de pé (Aquele Querido Mês de Agosto?).

Entre uma ponta e outra, porém, a jornada do filme não é exatamente a de depuração desse manancial, mas a de purgação pela esquizofrenia da soma, em uma espécie de inventário sentimental esquizo dos excessos da sensibilidade audiovisual contemporânea. O gesto encontra parentesco na pós-historiografia de Jean Luc-Godard (Histoire(s) du Cinèma a Adeus à Linguagem), na pesquisa ontológica de Holy Motors (2012), de Carax, e Road to Nowhere (2011), de Monte Hellman, e principalmente na fotogenia disforme de Império dos Sonhos (2006), de David Lynch. Se a linguagem surge da infiltração subjetiva na repetição objetiva da convenção, o horror, em A Visita, se manifesta na sutil deformação dessa infiltração: um aterrorizante excesso de headroom nas composições; uma câmera que, ao mesmo tempo em que se quer orgânica, se dedica à mais bela coleção de panorâmicas atrasadas; uma mão perturbadoramente branca tateando sobre uma colcha vinho escuro; o estranho desenho de luz que recorta a silhueta do velho à porta do quarto, em artifício digno de Vertigo (mas que aqui parece acidental, quase imperceptível – logo, muito mais forte); uma velha à bater a mesma porta, repetidas vezes (ou a comer um biscoito após outro, e mais outro, e mais outro), presa a um cotidiano que se teatraliza como delírio no cair da noite (Shyamalan, cineasta tardio); e depois, feito estátua, com braço esticado para cima, no meia da sala, congelado em antecipação de um movimento que não tem conclusão ou fim.

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E, como as imagens não fazem exatamente o que se espera que elas fazem, a gratuidade do horror é também a ferramenta do sublime (e não seriam a mesma coisa, o horror e o sublime?): um zoom rigoroso e arbitrário que recorta o rosto contra as árvores; uma risada à cadeira de balanço, de frente pra parede; um blusão insuportavelmente amarelo (ou um casaco ostensivamente verde) manchando de cor a paisagem branca de neve; uma narrativa à Straub e Huillet sobre aliens que cospem na água do poço onde moram; um retrato que dá errado, pois ninguém mais parece saber posar naturalmente; a música grandiloquente que inunda toda a asfixiante sequência final, culminando nas imagens deformadas pela lente molhada de chuva, sob o vermelho e azul incandescentes das viaturas de polícia, em um dos mais deslumbrantes terceiros atos vistos no cinema recente.

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Shyamalan, porém, é um cineasta de tese e, mesmo após o estupor final, a tese demanda a paciência de sua conclusão. A entrevista bege retorna, agora ciente de tudo que se perdeu, mas em vez do remorso ela reafirma a autonomia do gesto de rompimento de Loretta diante do perdão mediado buscado por sua filha: “Você não precisava ter feito isso, meu amor. Meu perdão estava lá, para eu receber quando quisesse”, o que significa que o rompimento era um desejo (com consequências, mas ainda sim voluntário) e que o trauma que dava origem àquele jogo de mediações não pertencia a Becca ou Tyler, mas eram fruto de um mal entendimento desse desentendimento (e aí é onde Shyamalan se diferencia do dedo em riste de Spielberg: o ressentimento é uma linguagem que, como toda linguagem, só existe se partilhada). O gesto de abertura e literalidade faz com que Becca – a documentarista que não se olhava no espelho – rompa a quarta parede e se aproxime da mãe, quebrando, por fim, a maldição que a impedia de usar as imagens de seu pai. O epílogo sentimental se conclui, então, com piano e tudo, em moral da história soletrada em exposição: “por favor, não se apegue à raiva”, diz a mãe para sua filha, em conselho tão simples e direto quanto o ponto final da tese de qualquer outro filme de M. Night Shyamalan, o narrador.

Pois se apegar à raiva é não conseguir se olhar no espelho, e não se olhar no espelho resulta em uma jornada através de imagens – imagens gastas, imagens porvir, imagens de imagens, imagens de outrem, imagens que matam – em busca de um perdão insignificante para um trauma inventado, conquistado através de uma história falsa, pois ele não só é desnecessário por princípio como foi pedido à pessoa errada. A pessoa certa, a coisa certa, permanecerá fatalmente desconhecida quando o único reflexo aceitável é o que não reflete a coisa em si. De certa maneira, todo o cinema de Shyamalan passa por restaurar essa equivalência entre coisa e imagem, e se em A Visita faz-se necessário atravessar um verdadeiro inferno de mediações, é porque, para mudar as coisas, é necessário estender-se através das imagens que se colocam à frente delas. Sob o jogo simbólico da representação, as coisas, porém, ainda são o que são, e não há cinismo esclarecido que resista ao gosto da ontologia dos fatos: “the truth is, shit doesn’t taste like chicken. Oh, Shania Twain, biches!”

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