Praticamente desde que o cinema existe, um dos mais comuns usos que a ficção através desse meio tem construído é o de reencenar fatos da História, mais ou menos célebres, com os mais variados objetivos – da mitificação hagiográfica à contestação das versões oficiais e reescrita de uma narrativa. Alguns cineastas são mais afeitos a esse movimento do que outros, e Cannes esse ano mostrou os novos filmes de dois daqueles que, entre os cineastas contemporâneos, mais têm suas obras marcadas por esse movimento.
No caso do chinês Jia Zhang-ke, boa parte da sua carreira foi construída por filmes que tentam revelar algo acerca da história chinesa, particularmente (mas não exclusivamente) aquela que acompanha os tempos que ele viveu pessoalmente, do final dos anos 1970 até a contemporaneidade. Nesse sentido, seu novo filme, Ash is Purest White, continua essa exploração, inclusive fazendo referência direta ou indireta a uma série de procedimentos formais, espaços geográficos ou personagens que já estiveram em alguns de seus filmes anteriores, como Plataforma (2000), Prazeres Desconhecidos (2002), Em Busca da Vida (2006) ou mesmo o imediatamente anterior As Montanhas Se Separam (2015). O cinema de Jia, na medida em que se desenvolvia, sempre teve algo de autorreferente, como se fosse atravessado por uma consciência de uma grande história que parece ir se montando como quebra-cabeças na montagem interna entre os distintos trabalhos.
Ash is Purest White cobre 17 anos da vida de seus personagens, entre 2001 e 2018, e, como seu filme anterior, é dividido em três partes que acompanham uma história de amor com seus altos e baixos. No entanto, diferente daquele filme, não vemos a origem dessa história: na primeira parte, o casal já está no auge – no seu amor, e no lugar que ocupam numa certa economia alternativa de pequenos grupos de gângsteres. A primeira elipse acontece justamente depois do acontecimento radical que vai mudar essa realidade, e os dois capítulos seguintes encontram as personagens em processo de separação (inclusive geográfica) e decadência (inclusive física). Embora o filme volte a alguns lugares e momentos marcantes nessa macro-história chinesa (como a alteração geográfica e humana da região da hidrelétrica das Três Gargantas), talvez seja o filme de Jia onde o maior foco é voltado para as personagens e suas histórias pessoais. Zhao Tao, sua atriz-fetiche, e Liao Fan têm uma presença absolutamente hipnótica na construção dos trajetos de suas personagens, com o peso da sua tragédia pessoal pesando a cada momento sobre os ombros. É curioso como o filme se aproxima do gênero do filme de gângster muito mais pelo imaginário dos próprios personagens (“você viu muitos filmes de gângsters”, diz um deles) do que por aquilo que encena. Apenas a tal cena marcante do final da primeira parte encena qualquer tipo de violência (e até por isso ela chama a atenção): no resto do tempo nós estamos totalmente dentro dos olhos e da peregrinação das personagens pelo espaço dessa China em alteração constante, onde o tempo parece passar de forma simultaneamente mais rápida e mais permanente.
Da mesma maneira, para Spike Lee, lidar com a história americana e a noção da importância de sua reescrita sempre foi um gesto de resistência essencial em quase toda sua obra. O cineasta tem se aproximado da história através de movimentos bem distintos, como a reencenação de determinados eventos considerados essenciais por ele (como a vida de Malcolm X ou os soldados em St. Anna), a construção imaginária de uma micro-história plena de sentidos maiores (como em Crooklyn (1994) ou O Verão de Sam (1999)), ficções “pequenas” com uma construção enorme de uma outra história dos EUA (A Hora do Show (2000) ou Todos a Bordo (1996)) ou mesmo através de uma sempre ativa carreira como documentarista recuperando nomes e narrativas consideradas essenciais (muitos para citar apenas um ou dois).
De fato, talvez o mais fascinante em BlacKkKlansman seja a maneira como ele se conecta com todas essas facetas do olhar de Spike Lee para a história e o papel do cinema nela – pois toda essa obra é marcada pela alta consciência de que o cinema sempre foi parte importante da mitificação da história americana. Não é por acaso que as primeiras imagens que surgem na tela vêm diretamente de …E o Vento Levou (1939), assim como mais adiante uma exibição de O Nascimento de Uma Nação (D. W. Griffith, 1915) será um evento central na narrativa. Além disso, há algo no filme que mistura os vários cineastas que ele tem sido: o provocador, o produtor de entretenimento, o historiador, o cômico, o bastante sério. Ao tentar dar conta de tudo isso, talvez BlacKkKlansman resulte bastante irregular, mesmo para uma obra de um cineasta que nunca pareceu muito preocupado em fazer filmes “azeitados” (e isso é mais um elogio do que um problema), mas inegavelmente é um trabalho “tomado por um momento” – seja nas inúmeras vezes no filme em que os membros da KKK usam slogans similares aos de Donald Trump, passando pelo diálogo em que as personagens (nos anos 1970) discutem a possibilidade de um dia alguém se eleger presidente dos EUA com discurso de ódio, até o fecho final com cenas contemporâneas dos movimentos fascistas revividos nos EUA. Se realmente algo não convence de todo na construção ficcional de suas personagens, talvez isso não seja exatamente uma das preocupações principais de Spike Lee nesse momento – e sim juntar-se a figuras como Jordan Steele e Jason Blum (uma mudança bem clara frente a alguns discursos em filmes anteriores do realizador é um abraço frontal à ideia da colaboração entre negros e brancos engajados) para que um filme como esse seja feito e possivelmente exibido o mais amplamente possível nos EUA em 2018.
Finalmente, ao redor desse mesmo tema da relação com a história, parece relevante mencionar outro filme que passou pelo festival, bem mais discretamente, até por se tratar do primeiro longa de ficção de seu realizador – e por ter sido exibido na Quinzena dos Realizadores, e não na competição, como os dois filmes de que falamos. Trata-se de Teret (The Load), do realizador sérvio Ognjen Glavonic, que começou a carreira com documentários bastante bem recebidos, inclusive um que lidava com tema similar ao dessa estreia na ficção: os caminhões que, durante os últimos anos da guerra e bombardeio na Sérvia e Kosovo transportavam cargas bastante perturbadoras. Ao contrário de Jia e Lee, o olhar de Glavonic para o passado é um de quem ainda busca as ferramentas para melhor compreender – e usa o cinema justamente para isso. O que é especialmente compreensível quando pensamos que os eventos que ele encena aconteceram quando ele tinha mais ou menos oito anos de idade.
É verdade que há sim uma preocupação clara em revelar uma parte da História ainda bem pouco tratada quando se fala das guerras na antiga Iugoslávia. No entanto, a maneira como Glavonic filma sua personagem principal (Leon Lucev), ao redor do qual gira toda a narrativa (que se passa boa parte do tempo dentro da cabine do seu caminhão), deixa claro um desejo de tentar perscrutar um pensamento e sentimento de mundo. Não para tentar justificar nem criminalizar, claramente, mas dar-se o tempo de olhar. É marcante também a maneira como várias das suas interações acontecem com personagens mais jovens, que parecem ainda mais perdidos do que ele (a cena em que o jovem que viaja com ele parte da jornada caminha por uma cidade deserta é bem forte). Nesse trajeto, o filme recria a história sem o sentimento de fazê-lo com os interesses nem de um historiador nem de um militante por alguma causa específica: ele olha, acima de tudo, com curiosidade e alguma estupefação. Como um país que ainda não consegue de fato seguir em frente.
Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema, formado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.
Leia também:
- Cobertura do 71º Festival de Cannes (2018), por Eduardo Valente
- O cinema de Jia Zhang-ke
- Uma história de violência, por Paulo Santos Lima
- Sentimento do real, imaginação da história: seis perguntas para Jia Zhang-ke, por Felipe Bragança
- Televisão vs. Spike Lee + César Charlone, por Cléber Eduardo
- O Plano Perfeito (Inside Man), de Spike Lee (EUA, 2006), por Eduardo Valente
- Spike Lee, produtor, por Filipe Furtado
- In da gang, in da hood, por Fabian Cantieri