Le Livre d’Image começa e termina com imagens de mãos. Godard nos indica no texto que acompanha aquelas imagens acreditar que é com esta parte do corpo que o homem pensa – igualando, portanto, a ação com o pensamento, pois apenas a partir da ação o pensamento se consuma. E não qualquer ação, mas a “manipulação”, efetivamente. Manipulação que é, antes de tudo, a de Godard mesmo (junto a seus colaboradores, porque há pistas em quantidade que indicam o quanto figuras como Fabrice Aragno, Nicole Brenez ou Anne-Marie Miéville são importantes para a forma/conteúdo desse filme). E que se dá, acima de tudo, pela ação de selecionar e pôr as diferentes imagens para “brigar”, porque a montagem aqui é sempre um choque entre dois planos.
No entanto, claro que na construção desse “livro de imagem” (a expressão em francês não seria exatamente nem “das imagens”, nem “da imagem” – apenas um dos sempre incontáveis trocadilhos de Godard) é chamada para a dança toda a amplitude da criação artística humana (cinema, teatro, literatura, música, pintura, filosofia). Se as associações constantes são infinitas e de sentidos múltiplos (impossível decifrar um terço deles numa primeira visita), o exercício de reproduzir uma linha única de raciocínio é impossível, porque muitas vezes o tempo da ação é o do pensamento, e cada espectador precisará de mais tempo para trabalhar uma ideia que o filme enuncia – e, eventualmente, ele já terá enunciado mais duas ou três até lá. Esse sentimento de estar constantemente “correndo atrás” do pensamento de Godard é ao mesmo tempo angustiante e libertador, pois inclui a plena consciência de que não vai ser possível pensar na mesma velocidade e sentido, então melhor buscar a cada um o seu tempo.
Mas não é apenas a forma das associações que está em jogo aqui. Há muito sobre a natureza das imagens utilizadas. Sim, porque no exercício do pensamento godardiano há espaço para obras seminais dentro da sua visão de cinema (passam pela tela, entre muitos outros, Saló, Johnny Guitar, L’Atalante, Vertigo, La Strada, Sicilia!, Elephant, além de muitos filmes dele mesmo), mas as mesmas encontram-se em diferentes estados de manipulação visual e associadas a imagens de YouTube ou da estética do glitch, por exemplo. Muitas vezes o reconhecimento do contexto pode ser essencial para um nível de entendimento (como quando Henry Fonda surge em Young Mr. Lincoln (1939) no capítulo denominado “o espirito das leis”), mas há que se estar preparado também para colocar em cotejo uma imagem de violência contra a mulher em Mizoguchi com uma outra produzida pelo Estado Islâmico para a internet. A mistura do “sagrado” (ao menos para os deuses da arte e do cinema) com o mais mundano é uma constante no filme, e a forma como Le Livre d’Image consegue nos fazer sentir a sua devoção ao mesmo tempo que uma forma livre e quase herética de associar ideias e obras é uma das mais fortes qualidades da experiência.
Como muitas vezes no cinema de Godard, o que está em jogo é uma moral da manipulação. Isso fica claro na medida em que o filme evolui rumo à sua parte final, que estrutura uma demolição da possibilidade da Europa se colocar em posição moralmente superior frente ao mundo árabe e o contexto do terrorismo e de toda guerra moderna (o Vietnã, não por acaso, é evocado em imagens). E no final, Godard coloca seu próprio registro em dúvida, através da tosse que parece impedir sua fala, assim como da tomada desta por Miéville. Entre as muitas falas lapidares, uma fica conosco em especial: “Nós nunca nos tornamos tristes o suficiente para fazer do mundo um lugar melhor”. Entre o desencanto e a afirmação da necessidade da utopia, que marcam essa parte final, Godard finaliza indicando que o importante será “manipular” (mãos que pensam) até o final da vida. Nenhuma indicação de que ele vá parar.
Não parece exatamente justo colocar um Godard crepuscular e filosófico frente a um primeiro longa, mas é impossível ao ver Diamantino não pensar sobre os efeitos da associação de imagens díspares e do uso de signos fortes da imagem do mundo contemporâneo para construir um discurso pelo choque, só que de fato a questão da moral na manipulação em Godard parece encontrar seu oposto na franca irresponsabilidade do filme exibido na Semana da Crítica. É inegável que Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt trabalham saudavelmente no limite da falta de pudores ao não levar nada a sério (inclusive a si mesmos), criando nesse caminho algumas imagens realmente fortes (como a dos cãezinhos gigantes que tomam a consciência de seu protagonista em momentos específicos). No entanto, no afã de construir um afresco de temas contemporâneos que mistura, por exemplo, a cultura de celebridades e o futebol como negócio internacional com a questão dos refugiados africanos na Europa ou a sociedade do controle pelo Estado através do uso de câmeras onipresentes, Diamantino perde de vista todo e qualquer limite, funcionando numa lógica do “perco a vergonha, mas não perco a piada” – e como se isso fosse pouco, ainda tem o problema imperdoável de que a maior parte das piadas nem é engraçada de fato.
É impressionante a maneira pela qual Carloto Cotta consegue heroicamente emprestar corpo e rosto ao protagonista-título de maneira a torná-lo cativante mesmo sendo, antes de tudo, uma piada. No entanto, o seu trabalho não faz o milagre, por exemplo, de transformar a onipresente voz off menos desagradável, seja porque o texto é profundamente óbvio e banal, seja porque a escolhida dicção para completar o personagem é um erro. Se Godard considerou a hipótese de chamar o seu filme de “Imagem+Palavra”, e faz sempre da sua voz uma instância que busca nos perder e intrigar muito mais que guiar através de seu filme, em Diamantino o que há de inconsistente na encenação e narrativa se torna muito mais desinteressante pela narração que ou expõe o que já vemos ou busca comentários que só aumentam a distância moral entre aquilo que vemos e a posição de quem filma. Diamantino não precisaria do filme de Godard perto dele para ser bastante insuficiente, mas a proximidade com um filme como o do velho suíço ajuda a chamar a atenção sobre como este ainda tem muito mais a dizer sobre o mundo de hoje do esse olhar mais “contemporâneo”.
Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema, formado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.
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