1, 2, 3 Godard no século XXI
março 1, 2015 em Dalila Martins, Em Pauta
À Palestina
por Dalila Martins
“O amor tem necessidade de realidade.”
Simone Weil
Elogio ao Amor (2001) é dividido entre o presente e o passado de um filme a ser feito. Além da cartela explicativa, a defasagem temporal é marcada pela utilização de 35mm p&b para o presente e de vídeo digital colorido sem muita definição para o passado. São apenas dois anos entre o momento em que Edgar (Bruno Putzulu) presencia o processo de assinatura do contrato que autoriza a adaptação da história de um velho casal atuante na resistência francesa pela produtora de Steven Spielberg e suas dificuldades em realizar uma obra acerca do amor que consiga narrar a História através de quatro etapas afetivas, em vez de retratar as idiossincrasias de um casal como de costume nas comédias românticas. Mas a ruptura brusca entre os dispositivos complexifica a distinção irreconciliável entre amar e possuir, representada pela separação das personagens jovens Eglantine (Audrey Klebaner) e Perceval (Jérémie Lippmann). Durante o casting, o diretor esclarece o argumento: “Te amo muito, você está sempre presente, é tão real para mim que não faz mais sentido te ver, pois está sempre lá, não importa o que aconteça; desde que seja minha, não preciso de você”. Grosso modo, a percepção de película em preto e branco alude a algo já acontecido, uma lembrança preciosa bem guardada, e a de vídeo em cores remete ao cotidiano íntimo, imediato. Mas aqui a contradição dos meios aparece, o presente é visto como ruína de uma Paris pós-industrial, “fortaleza vazia” em decadência, e o passado, assertivo e aberrante na sua vulgaridade pitoresca inevitável. Tudo escapa na época do fim da História, seja pela subexposição, seja pela saturação. Criar cinematograficamente é ainda possível?
A precisão do filme, sua profundidade realista ou fotogenia, é defrontada pela incapacidade de levar a cabo o roteiro idealizado que dá sentido aos acontecimentos por admitir sua efemeridade; os rostos não aprenderam a dizer, ler ou escutar a História; resta a imaginação como direito da memória. Por outro lado, certa ousadia cromática já experimentada pelo fauvismo e pela videoarte decai melancolicamente ordinária, e seu artificialismo fantasioso beira o cinismo tautológico inerente à indústria de entretenimento pós-moderna; a pieguice é a regra estilística da publicidade, que talha todo e qualquer sentimento sincero. Tal perversidade é o que caracteriza o cinema hollywoodiano para Jean-Luc Godard. Os Estados Unidos da América não têm história – “que estados unidos da América, o Brasil? …O México e o Canadá também são Estados Unidos da América do Norte”, provoca a mulher argelina, neta do casal comprado –, alimentam-se da história de outros, adornando-as e neutralizando sua alteridade. Em efeito, para o surrealista citado Georges Bataille, o Estado é inimigo do amor, pois não reconhece a totalidade do mundo, esta totalidade do universo oferecida simultaneamente ao amado e ao amante. E não pode haver resistência sem universalidade. “O sonho do Estado é ser um, o sonho do indivíduo é ser dois”, eis a frase proferida em Nossa Música (2004) e repetida seis anos mais tarde no Filme Socialismo (2010).
A dialética é cara ao cineasta franco-suíço, enunciada ipsis litteris a bordo do famigerado Costa Concordia: “Na medida em que o todo dessas partes, onde a soma dessas partes, num dado momento, nega, já que cada uma contém o todo, a parte que consideramos / na medida em que essa parte as nega, em que a soma dessas partes, recompondo o todo, torna-se o todo das partes reunidas… Um pensamento dialético é, antes de tudo, num mesmo movimento, o exame de uma realidade, na medida em que ela faz parte de um todo, em que ela nega esse todo, em que esse todo a contém, a condiciona e a nega, em que, consequentemente, ela é ao mesmo tempo positiva e negativa em relação ao todo / em que seu movimento deve ser um movimento destrutivo e conservador em relação ao todo…”. Em Filme Socialismo, a questão é conceitualizada tão abstratamente quanto o capitalismo financeiro tematizado, tentando apreender logicamente (e falhando e falindo) o vazio onde “coisas como estas” tomam corpo e se desenvolvem em histeria; non-site seria um termo apropriado, como se o mundo todo fosse a ilusão de um oásis no deserto – Las Vegas, Dubai –, ou então um cruzeiro pelo Mediterrâneo em busca da origem da civilização sem jamais poder alcançá-la – a vida interditada e por isso mesmo repetida. Contudo, esse non-site relativo às cifras (zero, do árabe sifr, cifra, do sânscrito sunya, lugar vazio) é, sim, materializado pelo fluxo e pelo refluxo do filme numérico que, concomitantemente, emula o turbilhão vertiginoso da globalização – aquele que faz a garota fantasmática rodopiar e cair na piscina – e o desvia para novos caminhos, inventivos e heterotópicos, no sentido foucaultiano. O papel devotado às crianças em terra firme, na segunda parte da obra, Quo vadis Europa (“para onde vai, Europa? ”), sintetiza as mudanças de paradigma. Com sua preocupação deslocada da revolução para a mediação, Godard posiciona o casal de irmãos como candidatos à eleição para o Conselho de Estado francês, fato sem precedentes. São eleitos pela vontade do povo’ – aquela da cartilha revolucionária de Aqui e Acolá (1975) –, com 93% de aprovação, ao abandonarem o nome de família, Martin, já que a guerra se descobre apenas uma vez, e a vida, várias. Apesar da ação democrática, são radicais na postura, distintos organicamente. Florine ‘Flo’ (Marine Battaggia) evita conversar com quem conjuga os verbos ser e ter, pois, com eles, a falta de realidade se torna flagrante; prefere falar, por exemplo, “Barcelona nos receberá em breve”, em vez de “em breve estaremos em Barcelona”. Lucien ‘Lulu’ (Gulliver Hecq) reage musicalmente aos estímulos exteriores e explora o tato como conexão maternal; mais emblemática ainda é sua capacidade de acolher uma paisagem de outrora – reproduz um Renoir adicionando nuances inatingíveis ao pintor, o que se estende a toda imagem vista na tela, numa espécie de emancipação das cores em planos digna de Mark Rothko ou das colagens de Henri Matisse, quando a cor também é luz e faz vibrar o espaço. Um espaço que possui outro tempo, misterioso e autônomo, como no relógio egípcio da cinegrafista da rede de TV France 3, aquele do dia e da noite, do sol e da lua.
Em Elogio ao Amor, a natureza colorizada das ondas do mar quebrando em rochas, ao som de acordes limpos e white noise direto, instaura o tempo do lirismo reflexivo de um indivíduo que resiste à tragédia da indústria cultural – tragédia conveniente e tranquila, pois decorrente em si e para si, fazendo de todas as pessoas inocentes –, já que a experiência de Edgar com a mulher argelina é o fio condutor e significante da trama, numa relação entre poeta e musa, de matriz romântica ainda que distanciada. Em Nossa Música, organizada como a Divina Comédia de Dante Alighieri, porém, o eu já é um outro, nas palavras citadas de Rimbaud, com o protagonismo duplicado de Olga Brodsky (Nade Dieu) e Judith Lerner (Sarah Adler), representando a conjunção aporística entre ativismo e mídia em prol da trégua e da paz no Oriente Médio, pela qual “somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”, como sentenciara Dostoiévski. A criação, antes ambientada no métier artístico do filme de 2001, tão logo se refere ao mito de Adão e Eva no Reino do Paraíso, o exato instante da perda da pureza; o romance de formação característico do indivíduo isolado moderno sobreposto às lendas epopeicas exemplares – a única moral possível, aquela da confissão (não seria o autorretrato JLG/JLG, 1994, um ensaio prévio a esse propósito?). É como se a crise existencial cinematográfica de Elogio ao Amor se transformasse, três anos depois, numa expiação coletiva pelos desdobramentos conflituosos da humanidade, e o seu núcleo de variações sobre a busca fracassada por um adulto (resquício ontológico?) se estendesse à profecia do rosto como responsabilidade, baseada no filósofo Emmanuel Lévinas, uma preocupação em restabelecer pela linguagem uma “ética como o a-Deus ou a relação ao Outro, na santidade do Rosto de Outrem, ou na santidade da minha obrigação para com ele”. O motivo da insistência de Godard na utilização da janela clássica 1.37:1 para a projeção desse filme, uma raridade nas salas de exibição hoje em dia, foi confiado aos Cahiers du Cinéma em uma folha de papel que demonstra as diferenças de proporção em dois de seus fotogramas: o primeiro, um close-up de Judith Lerner, e o segundo, uma vista de rua da cidade de Sarajevo; ambos aparecem nas janelas 1:1.37 (acadêmica), 1:1.66 (padrão europeu) e 1:1.85 (padrão americano), acompanhados de anotações laterais e de uma coluna de esboços. Sobre o close-up, foi escrito: pessoa (1.37); personagem (1.66); um escravo por satélite (1.85). Sobre a vista: prova de bombardeios sérvios (1.37); prova reduzida pela Europa e pelos EUA (1.66); extermínio da prova, Milosevic absolvido (1.85). Quanto aos desenhos: um retângulo vertical – vitral e mito; um retângulo vertical dividido na metade – janela e História; um retângulo quase quadrado (1.37) – ser humano; um retângulo horizontal (1.66) – cartão de crédito; um retângulo horizontal mais achatado (1.85) – dólar; um retângulo ainda mais fino (scope) – enterro.
É um testemunho franco e de humor ácido da implicância política da prática cinematográfica, também enfatizada na abordagem da técnica de campo e contracampo durante o workshop ministrado a jovens estudantes bósnios pelo cineasta; o espetáculo é, pois, o avesso da guerra. De cariz didático, ainda, o padecimento de Nossa Música localiza no Reino do Inferno a estilização pictórica que fora ambígua em Elogio ao Amor – a expressão da alma do negócio, na segunda parte do filme – e que será potencializada no Filme Socialismo como vidência de uma realidade jamais concebida – o superpoder infantil: numa revisitação da action painting, a latitude e a textura de câmeras de vigilância militar fazem de explosões de mísseis telas de Franz Kline.
Em entrevista a Michele Halberstadt, pela Netribution Film Network do Reino Unido, Godard comparou o longo tempo de fatura de Elogio ao Amor ao instantâneo de JLG/JLG, revelando um sutil e ligeiro, mas fundamental, salto qualitativo de procedimento criativo: “Eu lembro que JLG/JLG foi um filme que eu rodei muito rápido, porque um dia eu li no contrato: ‘Entrega em um mês’. Mas o filme era sobre mim, ele respondia a mim. Enquanto que em Elogio ao Amor eu deveria responder ao filme, mas percebi que eu estava pedindo ao filme que respondesse a mim, e isso não era claro”. Se a descoberta de um filme, na ilha de edição, ao final dessa confusão processual, foi um milagre, como ele próprio pontuou, em Nossa Música, ao contrário, a emanação do sagrado compassivo em um ícone (rosticidade), contido num tríptico – Inferno, Purgatório e Paraíso – a ser aberto e fechado como a janela respectiva à História, já desloca estruturalmente, a priori, portanto, a atenção para além da intenção do autor, ou melhor, para fora da esfera de controle antropocêntrico. É certo que, em Elogio ao Amor, nada é absolutamente subjetivo e mesmo o amor não se encerra como relação intersubjetiva de seres amantes que se possuem mutuamente como objetos de seus amores; o amor é pensado como ato de resistência e a união estável, aquela do Estado (propriedade e privação), como incongruência e incomunicabilidade. Entretanto, em Nossa Música, a ontologia se desvela como premissa errônea para a discussão acerca do humano, de modo a compreender a condição contemporânea; transfere-se então para a esfera da alteridade, da não identidade, afastando-se, contudo, da ode ao libidinal – aquela da juventude resplandecente no Reino do Paraíso, do faz-de-conta –, que se esquiva dos entraves da racionalidade opressiva, mas submete a todos ao jugo autoritário da indeterminação e da desmesura – apagamento indolente da memória. O ponto crucial é a indulgência, o respeito e o reconhecimento que corrobora a existência de algo ou alguém, distinguindo afinidades entre quem reconhece e quem ou o quê é reconhecido e assumindo incumbências; a música seria o meio propício de liberar o mundo da imposição dos nomes próprios para anunciar dissonâncias a partir de uma nota em comum, o dito socialismo.
Assim, chega-se ao 16×9, o aspect ratio nosso de cada dia, dos monitores e câmeras digitais, cuja habitualidade será invertida até que a montagem vislumbre a presença e o presente do utopismo espaço-temporal, tal como problematizado por David Harvey em Espaços de Esperança (2000). Se o ser humano de Elogio ao Amor vinha desdobrando-se em humanidade em Nossa Música, uma nova transposição foi feita por Godard em Filme Socialismo, distendendo o quadro até o aparecimento do entorno, o onde nunca dantes apreendido. Logo após a explanação sobre o pensamento dialético, Elias Sanbar, historiador, poeta e ensaísta palestino, proferiu a curta frase, num árido desabafo: “A fotografia de uma terra e de seu povo”. Essa terra inexistente, convertida em Estado de Israel em 1948, da qual os palestinos partiram em diáspora, alguns detidos em campos de concentração, talvez seja a paisagem dissoluta (acrescida de muitas outras ultrajadas – Barcelona, Odessa, Nápoles, Grécia, Egito) em que a aplicação de Godard na seara do widescreen HD almeja embrenhar-se.
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