in loco - cobertura dos festivais
Bad 25, de Spike Lee (EUA, 2012)
por Fabian Cantieri

In da gang, in da hood

O que fazer ao se chegar ao cume do Everest? Aproveitar a descida, com a consciência e o espírito de dever cumprido? Se as coisas não funcionam tão bem assim no alpinismo, o mesmo pode-se dizer de Michael. “Bad” é o fim e o ápice da grande trilogia musical de Michael Jackson e Quincy Jones. É o rei do Pop no auge, no limite do inalcançável, ousando uma superação ainda maior. Depois de cinco anos de críticas aclamadas, todos os prêmios possíveis e recordes comerciais inigualáveis com o disco mais vendido da história ("Thriller"), eis que enfim surge o tempo de bonança em 1987, quando ele sente a necessidade de alçar outros patamares, subir outra montanha, senão maior, ainda mais audaciosa. “Bad” é seu K2.

A superfície de Bad 25 é direta na sua abordagem: por meio de entrevistas com pessoas envolvidas com o álbum e de jornalistas do ramo musical, além de imagens de arquivo do processo de gravação e da turnê, Spike Lee atravessa as 11 músicas (e seus conseqüentes vídeos) para vislumbrar um mito tentando retomar sua biogênese perdida.Pois Michael, entre assombros e paixões, é inerentemente fruto de seu meio – nunca pôde experienciar a mundanidade do anonimato; nasceu e, logo aos seis anos, já se encarregava dos backing vocals do Jackson Brothers (e, apesar de ser o mais novo, era claramente o mais talentoso e logo virou o frontman do The Jackson 5). Isso repercute enormemente em sua vida pessoal, sempre transposta ao público, e na sua obra como um todo. O que Spike Lee percebe é que “Bad” é o epicentro de MJ tentando trazer algum senso de realidade para seu mundo. Como Pattinson em Cosmópolis, Michael almeja, senão suas raízes de volta (o que a esta altura já parece um plano perdido), ao menos tocar um certo cotidiano impraticável a ele. “Bad” é Michael querendo ser in da gang, in da hood.

Só que se em Cosmópolis o que afasta é o dinheiro, o que afasta o rei de seus súditos é justamente sua profissão, seu propósito, sua arte. E enquanto parece uma tremenda loucura possível (quem sabe saudável) abandonar à sorte todo seu capital conquistado ao longo de anos de trabalho, pior ainda é o processo de dedicação plena a um labor que te acarreta proporcionalmente ao isolamento do mundo. Não à toa, “Bad” acontece na fase “híbrida” de Michael Jackson. É ele não mais negro, sem o nariz largo, mas também não um branco americano. Seu cabelo ondulado – nem liso, nem o sarará Black Power de Off the Wall – é a marca desse tempo. É ele caminhando para sua “branquidão” completa e ao mesmo tempo visitando Mandela, querendo saber mais de suas origens africanas.

Um dos trechos significativos dessa natureza paradoxal é o comentário de Joe Pytka lembrando que, no set de “The Way You Make me Feel”, a um certo momento Michael viu o elenco fumando e pediu ao diretor para apagarem seus cigarros. Pytka saiu indecorosamente xingando e berrando a todos para apagarem seus cigarros. Michael entrou em pânico com o grito. Estava tenso com a situação, com aquele entorno incomum, pois aquelas pessoas eram, na verdade, não-atores. Eram dançarinos de rua. Da rua da qual ele queria tanto ser, mas tinha medo. Existia, aí, um abismo intransponível. 

Mas o medo é inerente ao crescimento. Com Michael Jackson, o crescimento artístico se desenvolvia exponencialmente até “Bad”, mas o crescimento pessoal há tempos estagnava na síndrome de Peter Pan mais declarada da história (morar em Nerverland não é pra qualquer um). É um cantor com potência de barítono que só fica nos agudos, porque “é mais bonito assim”. Mas declarações como essas são raras e fugidias ao tema central do filme. Seu pai, figura freudiana chave deste enredo, é personagem sumida com o propósito claro. O próprio Spike Lee assume numa entrevista: “o que me interessa ali é seu legado, é o foco na sua música, sua arte”. Para a história, é o que fica. Do documentário, a apreensão de que estar entre os outros pode ser uma facilidade impossível.

Outubro de 2012

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