Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding), de Jia Zhang-ke (China, 2013)

novembro 12, 2013 em Coberturas dos festivais, Do Arquivo, Em Campo, Em Cartaz, Paulo Santos Lima

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Uma história de violência
por Paulo Santos Lima

De seus primeiros trabalhos, como Plataforma, de 2000, aos documentários mais recentes, como Memórias de Xangai (2010), Jia Zhang-ke tem mostrado uma grande enxurrada: a da China em seu desenvolvimentismo a alto vapor varrendo histórias. A ideia é recomeçar do zero, edificar uma “Nova China” nada a ver com seu passado. Irônico é que, como sempre, a herança histórica é forte e deixa sedimentos indestrutíveis. A corrupção é um desses detritos duros, assim como a miséria. Isso, no entanto, é detectável por olhos mais atentos, além de ser comum a qualquer cultura e país. O que os filmes de Jia traziam de mais incrível eram mesmo os seres humanos, levados pela tal enxurrada, vendo suas vidas esbarrocarem, mas sempre buscando pelo fio da memória e da vida. Afetados pelos eventos, meio que espectadores passivos dessa remodelação, mas um impulso (passional) os faz ir atrás da ponta do barbante, das antigas paixões, família, esposa esquecida noutro lugar, filhos crescendo etc. O Mundo (2004) é bem forte nessa humanidade que desponta como ramo vegetal das cinzas duma floresta incendiada. O mundo fake daquele parque temático é brincadeira de criança perto das relações afetivas incrustadas naqueles “atores” que trabalham ali. Em Jia Zhang-ke, há dois planos: o primeiro plano e o plano de fundo. O homem à frente assistindo ao mundo que está pintado na profundidade de campo. E a câmera observando-os e deixando claro o entrosando entre os dois planos. Esse dois planos podem derivar a outras relações semelhantes, como a dos entrevistados em Memórias de Xangai, onde os depoimentos interligam espaços, experiências e tempos distintos.

Assentadas estas questões, Um Toque de Pecado, primeiro filme de ficção desde Still Life (2006) e o primeiro a mostrar cenas de violência gráfica e coreografadas ao estilo cinema de ação de Hong Kong, não é aberrante à obra do diretor. A “China real” continua, não só no quadro, como é grande motivadora da ação dos personagens. Estão lá, logo no começo, os viadutos e estradas em construção como índices de progresso e seus consequentes dejetos, como a lama e a corrupção. É contra essa última que Dahai, o protagonista da primeira das quatro histórias que o filme nos conta, se enfeza e sai com espingarda na mão para explodir cabeças dos sacripantas.

Assim como o terreno é aplainado para aceitar a iconografia do progresso, as pessoas aceitam como normal o esquema que mantém a lógica exploratória da mão-de-obra chinesa. Mas há, agora, num filme de Jia, o consumismo mais infantil e chulo, esse que faz com que todos abram a mão para os “interesses maiores”. Isso não vem como cartela, mas como um dado que relaciona os indivíduos na trama. Quando Dahai enlouquece, após apanhar à beça por cobrar prestação de contas de um diretor playboy, há uma contrapartida catártica – aí sim, estranha a Jia – que estabelece uma natureza particular ao sangue. É o mesmo vermelho brilhante dos action movies de Hong Kong, mas aqui a catarse desaparece totalmente, pois o filme observa com mais detenção o resultado do tiro, e é possível notar uma matéria viva composta de pele, carne, sangue, vísceras e tecidos rompidos das roupas. Pelo menos neste primeiro episódio, que de certo modo apresenta o estado de coisas da China (mais do que uma carta de apresentação sobre o que o filme vai mostrar nos outros episódios), há todo um mundo onde as pessoas tornaram-se uma espécie de dejeto industrial, parte descartável dessa “Nova China”, ninguém agindo por algo legítimo, nem os amigos mais queridos de Dahai, tampouco os ladrõezinhos pé-de-chinelo que tentam saquear um motociclista e se dão mal, logo no prólogo.

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O motoqueiro, na verdade um ladrão que age com violência psicótica, é o personagem do segundo conto. Casado e com um filho, ele também estoura cabeças à bala, mas para outros fins. Ainda assim, a tal ideia de plano de fundo permanece para situar essa violência que parece consequência histórica, algo que afeta a todos, e não atos isolados. No terceiro episódio, há os já conhecidos dramas pessoais apresentados noutros filmes de Jia. Uma mulher que trabalha como recepcionista numa casa de banho (prostíbulo) está desolada porque namora um homem casado. Pior, a esposa dele a encontra e, junto com o filho, dá-lhe uma surra. Por fim, um cliente abusa do seu direito de consumidor e acaba recebendo um basta em facadas, num momento em que Um Toque de Pecado se faz de wuxia.

A última história abdica do cinema de ação ou de artes marciais para observar um rapaz e uma moça que trabalham num hotel que oferece serviços sexuais alta classe para os clientes. Ambos se gostam e tal, a coisa avança, mas isso é pulverizado pelo que está no pano de fundo, aqui trazendo a exploração e mecanização dos corpos, uma robotização em lógica tão ocidental quanto sintomática dessa “Nova China” que já iniciava sua narrativa lá atrás, no final dos anos 1980. Se em Still Life, a tal “busca pela vida” do título brasileiro era significativa de uma permanência resistente aos “novos tempos”, agora não há mais espaço para amores e sonhos, ou seja, para a existência naquilo que possui de mais material e original, a ver com a vida mesmo.

Este quarto episódio ajuda a entender Um Toque de Pecado como um corpo uno que, na soma de suas partes, indica um olhar mais completo da história da China de 2013. E, também, como mais uma peça na obra de Jia Zhang-ke, evidencia uma decorrência histórica que, por sua vez, tornou este filme uma decorrência desse momento histórico do cinema com o qual o cineasta tem de lidar. Os personagens afetados do cinema de Jia ressurgem aqui, mas com seus desejos mais pessoais (mais humanos, mais vivos, mais dignos e mais naturais) apagados, perdidos na grande enxurrada dos eventos da Nova China inserida no mundo globalizado.

Um Toque de Pecado retifica uma leitura em capítulos da obra de Jia. Após ele mostrar, em Plataforma e Prazeres Desconhecidos (2002), um moto histórico do seu país desde a Revolução Cultural, nas permanências e nas mudanças, o diretor apresentou a China que dera as costas aos tempos de Mao e assumia o desenvolvimentismo idealizado pela vitória do neoliberalismo, e com os consequentes danos humanos, em Still Life, O Mundo. Logo depois, numa série de documentários, resgatou as memórias que estariam perdidas em breve, as histórias que, aos mais atentos, continuariam arqueologicamente presentes em ínfimas evidências materiais – quase como itens de resistência contra o “começar do zero”. Agora, com Um Toque de Pecado, sem sonhos e sem projetos pessoais, os indivíduos não resistem, apenas reagem. E reagem passivamente, ou seja, sem ir contra a ordem das coisas. A violência é pura decorrência do projeto de Estado, talvez de algo que vem lá de trás da China, pela miséria e desesperança. No lugar de toda uma existência, uma memória e um estar no mundo aniquilados, o sistema não consegue civilizar, mas sim oferecer a violência e a bestialização. Triste, grave e irônico.

O cinema não está fora disso. À parte o melhor da consonância espacial presente em Tsui Hark, John Woo e afins, a exposição sensacionalista de certas ações humanas, como a violência física, é uma tradição do bem-sucedido cinema comercial de Hong Kong que Jia Zhang-ke parece ter percebido como melhor forma de construir uma imagem mais fiel da atual República Popular da China, a de 2013. Em vez de se alinhar ao cinema industrial, seja o vulgar ou a alta caligrafia de um Johnnie To ou do já citado Tsui Hark, Jia pega emprestado um procedimento desse tipo de cinema e o cola “com fita durex” sobre as suas “naturezas-mortas” da China atual. Esta parece delegar, através de sua política de Estado e negócios, que o caminho certo é o dessa vulgaridade de sentidos, de exploitation comercial, e não a terra com húmus de difícil aragem de filmes como os de Jia Zhang-ke.

Há uma passagem em Um Toque de Pecado que explica essa encruzilhada que obriga a seguir por um único caminho possível: Dahai executa um homem que espancava um cavalo. Ele já tinha aparecido antes, fazendo o mesmo, como se aquela horrenda situação fizesse parte da China de ontem e de hoje, como se essas brutalidades ancestrais (miséria inclusa) permanecessem e fossem até assimiladas pela China moderna. Por mais bestial, o uso que Dahei faz do rifle volta-se contra a atual ordem das coisas. Não é um gesto que recupera a cultura, a história, a grande experiência, mas as relembra, inclusive indicando as suas ausências. Um Toque de Pecado não mudará o cinema, tampouco o mundo, mas é uma experiência de cinema no mundo.

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