Roma e os limites do visível

Toda imagem nasce sob um desafio: durar além de si mesma. Ir além de sua extensão, de seu presente. Prolongar-se na memória. Não ser relegada ao campo do esquecimento após passar diante do espectador. Transcender sua própria materialidade, sua condição de fato ordinário, em suma. Esse desafio das imagens vem à mente diante de um filme como Roma. Como em outros de Alfonso Cuarón, encontramos aqui uma afirmação da imagem como presente e visibilidade absolutos. Em sua ambição, as imagens de Roma parecem querer tudo… CONTINUA

Um funeral ao patriarcado latino-americano

Estamos no México, e Fernanda Rivera, a protagonista do documentário Antígona, chama de maestro quem no Brasil nomearíamos como professor. Confesso uma ligeira indecisão sobre qual dos vocábulos prefiro. Maestro denota um saber como posse, é asperamente nobre, presunçoso, hierárquico, mas também transmite, nas suas rápidas sílabas, uma notável tradição. Professores seriam sujeitos a disseminar práticas, espalhar ideias, conceitos – como se fossem pares, um tanto horizontais, das descobertas dos alunos. Um pouco moderno, com pitadas mundanas. É justamente a oscilação, meio sacra, meio profana,… CONTINUA

Interrogar a vitalidade da fronteira

Categorias como “documentário” e “experimental” (ou “avant-garde”) pertencem àquela classe de palavras traiçoeiras, dessas que – na falta de precisão – é sempre bom evitar. Com elas, no entanto, acontece um fenômeno curioso: não há ninguém que assuma o fardo de uma definição exaustiva e cabal – e ninguém que não entenda o que se quer indicar quando as invocamos. E isso porque, embora uma tentativa de conceituação dispare um sem fim de problemas de natureza estética e filosófica, é fácil constatar que ambas formam… CONTINUA

A espera, a predação e a escuta da História

Filmar a borda. Perfilar a margem. Curiosa, notável, a primeira sequência de Zama já sintetiza bastante da atmosfera que permeará toda a película de Lucrecia Martel. Vê-se o protagonista à beira de um larguíssimo rio. À espreita. À espera. Nada ocorre: ninguém chega, ninguém sai. Apenas Diego de Zama (Daniel Gímenez Cacho) lá permanece, imbuído da seriedade das suas vestimentas de um digno representante do rei de Espanha, meio abandonado, meio perdido nas regiões coloniais hoje próximas ao Paraguai. Realça-se um rio inóspito. Suas pedrinhas,… CONTINUA

O mecanismo

Se a expressão “cinema de arte” tem alguma relevância, ela se refere principalmente à possibilidade de delimitar todo um “sistema”, termo aqui entendido como um modelo de exploração econômica e de possibilidade de financiamento de obras que engloba uma série de elos da cadeia do audiovisual, entre os quais os festivais seriam das mais centrais (e o Festival de Cannes, como o maior deles, especialmente) – não cabendo aqui nesse momento fazer nem uma defesa nem uma acusação, mas apenas constatar a sua existência. O… CONTINUA

O mundo desde o fim

No trato com o romance de Antonio di Benedetto, há uma omissão significativa em Zama. Já na jornada final, quando o destacamento reunido para a caça do bandido Vicuña Porto se depara com o grupo de índios conhecido como “os cegos”, di Benedetto invoca uma anedota marcante. Depois que a tribo inteira tivera a visão extirpada pelos inimigos, os homens e mulheres encontraram uma insuspeita liberdade na mutilação: em terra de cego em que não há sequer um caolho, todas as convenções tradicionais são, de… CONTINUA