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Roma e os limites do visível

Toda imagem nasce sob um desafio: durar além de si mesma. Ir além de sua extensão, de seu presente. Prolongar-se na memória. Não ser relegada ao campo do esquecimento após passar diante do espectador. Transcender sua própria materialidade, sua condição de fato ordinário, em suma.

Esse desafio das imagens vem à mente diante de um filme como Roma. Como em outros de Alfonso Cuarón, encontramos aqui uma afirmação da imagem como presente e visibilidade absolutos. Em sua ambição, as imagens de Roma parecem querer tudo abarcar. É um filme marcado pelo excesso do visível. Nada é deixado para fora-de-campo. É, portanto, neste sentido que deve ser lido o uso do plano-sequência por Cuarón: como um desejo de trazer tudo para dentro de quadro, de não deixar nada fora. Fazer um filme que seja pura visibilidade, em que só exista o que está presente dentro da imagem.

Conceber as imagens apenas como presente e como visível implica num apego igualmente radical à exterioridade das coisas. Roma é um filme pautado pela exterioridade, por uma concretização das coisas como espetáculo visível. Tomemos como exemplo o plano-sequência da praia, o clímax do filme. É um clímax duplo, ou triplo, que resolve num laço diversas pontas do roteiro. Cleo (Yalitza Aparicio), a empregada, salva as crianças do afogamento (1º clímax) e na sequência, em prantos, deixa escapar a dor por ter desejado que a filha não nascesse (2º clímax) enquanto é acolhida pela patroa e seus filhos (3º clímax). Como acrobatas de uma apresentação circense, o pôr-do-sol ao fundo, as crianças formam como que uma rede ao redor de Cleo: uma rede afetiva que ampara a personagem para que ela possa tombar sem medo em sua dor. Assim, a cena opera uma conciliação de classes ao reunir os dois polos familiares órfãos de suas respectivas figuras masculinas paternas. É uma cena bastante impressionante. Mas seu tour de force visual é, no fundo, uma forma de atalho: ele tenta resolver pelo espetáculo problemas muito simples, muito básicos do filme. Resolver pelo visível problemas que são anteriores a ele, de roteiro e da própria visão de mundo do filme. Vejamos.

Na cena, Cleo assume – para si, para os outros – que desejou que a criança não nascesse. É impressionante que Cuarón tenha pensado nesse drama da rejeição materna culpada, um tema profundo, sem contudo se dar ao trabalho de inserir uma única cena anterior que, minimamente, antecipasse a confissão do clímax. Ao longo de todo o filme, Cleo é de uma passividade absoluta. Ela é pura exterioridade, uma mera figura no ambicioso painel da sociedade mexicana dos anos 1970 que o diretor se esforça para traçar e que inclui uma burguesia desmiolada fascinada por armas, o abismo de classes, as insurreições populares. Nesse painel, uma silhueta marca rigidamente o lugar que Cleo deve ocupar, sem borrar as margens. É confortável para Cuarón, pois é sempre difícil para um homem, um cineasta bem-sucedido, falar sobre os dilemas de uma mulher grávida e de outra classe social. Ocupar-se da interioridade de Cleo, de sua culpa, implicaria num outro filme, menos espectaculoso e, seguramente, mais espinhoso. É mais fácil relegar Cleo à pura exterioridade e, sobrepondo um clímax ao outro, aproveitando a emoção acumulada de uma outra situação dramática, fazê-la dizer com todas as letras: “eu não queria que ela nascesse”.

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Isso fala sobre o cinema de Cuarón como um todo, de seu apego ao visível. O pai e a mãe burgueses são caracterizados por jogos visuais com a entrada do carro na garagem: balé sincopado na entrada do papai hesitante, nervoso, entre bostas de cachorro; descarrilho na entrada da mamãe alcoolizada e abandonada; mamãe recuperada, mentalmente sã, abandona o sonho burguês do carro “maior que suas posses” e desliza, enfim, um carro compatível com o tamanho da garagem. As coisas em Cuarón têm sua graça, mas, uma vez que tudo precisa se projetar numa exterioridade literal, resta pouco espaço para que elas acumulem uma potência que transcenda a imagem. No império da visibilidade absoluta de Roma, é preciso que tudo se resolva como espetáculo.

Assim, em Cuarón o plano-sequência não é mais o lugar meditativo da epifania, mas da coreografia e da excitação. Já era assim na estética montanha-russa de Gravidade (2013), filme que chegou a ser celebrado por meia-dúzia de críticos ansiosos em saudar, num gesto iconoclasta hedonista e moribundo, o “fim da profundidade”. Mas quando a abstração do espaço dá lugar a um tema social, como em Roma, fica evidente a verdadeira estatura de Cuarón como cineasta. Sua “saída pelo espetáculo”, repleta de malabarismos visuais, cria excitação e nos entretém durante a projeção. Mas, uma vez que essa espetacularização pauta indistintamente a concepção de toda e cada cena, ela termina por se revelar em alguns momentos francamente ridícula (a cena do treino dos samurais) ou mesmo dramaticamente equivocada (a banda passando ao lado da mãe chorosa com a partida do pai). Nos melhores casos, a insistência no plano-sequência cria aflição e agonia, como na cena do bebê natimorto ou na supracitada sequência da praia. O fato é que, no cinema contemporâneo de festivais internacionais, o plano-sequência parece ter se tornado o lugar por excelência da agonia. O que nos faz perceber que o que separa Cuarón de um Gaspar Noé ou de um Cristian Mungiu é, no fundo, apenas um certo bom gosto.

À parte os momentos de agonia, Roma observa tudo com um distanciamento blasé, como peças decorativas de um cenário de luxo. Não resta a menor dúvida de que, se o ponto de vista do filme se ancora em alguma coisa, esse algo é, não um personagem em particular, mas a própria casa, assumindo o ponto de vista burguês em sua forma mais reificada. Nesse processo de reificação pela visualidade, a câmera parece sempre apaixonada por si mesma, por sua habilidade em criar truques visuais. É um espetáculo que se pretende total, mas que permanece limitado ao campo do visível, a um acesso demasiado exterior da realidade. A espetacularização tentará forçar esse visível a seus limites. Mas, uma vez que não conseguem sugerir nenhuma complexidade interior nem aprofundar-se em nada, as imagens de Roma se limitam a nos excitar e nos encantar. Elas são apenas imagens, que desvanecem tão logo a projeção é terminada.


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