euvbjr-header

Um épico playground guerrilheiro

“Por uma concepção do sujeito ‘descentrada’ e ‘diluída’; (…) o japonês ignora a palavra pleno, que garante ( se garante) a existência do sujeito”

( Plano de trabalho sobre o cinema japonês de hoje, por Pierre Baudry)

“Ler, esta prática”

Mallarmé

“O não-domínio assumido pelos Straubs não implica nenhum abandono ao acaso como última instância ( um acaso é um ‘vil significante’, como dizia Barthes), mas lhe imprime um campo determinado, uma área de ação circunscrita, a manobra como margem inscrita na maquinaria”

La vicariance du pouvoir, Jean Narboni

 

Playgrounds guerrilheiros assomaram à Cena do cinema contemporâneo, revelando muitas vezes a parte maldita extirpada do proscênio clássico, mas de forma perversa – para reconstituir sua herança com o passado, embora mascarada tardiamente – permaneceram em maior parte devedores ‘hermenêuticos’ de princípios classicistas de base (plan tableau, plano fixo confessional, montagem-semântica) ou dos modernos de ponta (plano-sequência e locação, teatro, teatro e mais teatro, como ultimamente vídeo e instalações em vídeo), ativando uma filiação vertiginosa entre nosso passado e nosso futuro que nos ampliou consideravelmente o horizonte do cinema, arte aliás herdada da transfixação fascinante da pintura, dramática do teatro e destinada à torção crítica da baixa definição-vídeo, à época de seus primeiros experimentos: do teatro tableaux-proscênio ao teatro filmado de Oliveira e Syberberg, no melhor sentido do termo, podemos intuir deste encorpado Carrefour de instrumentos e espaços que o tempo mais adequado à captura das transições e heranças mais fecundas da História do cinema tenha sido o futuro do pretérito, modo do Verbo no qual o passado permanece entrincheirado no presente, assombrando-o, inspirando-o, condenando-o à mortificação da supra-leitura ou do Remember me elegíaco, no ‘caso’ neo-clássico de tantos franceses: Out 1, de Jacques Rivette, Petit à petit, de Jean Rouch, F for Fake, de Orson Welles, História(s) do Cinema, de Jean-Luc Godard, a obra secreta de Biette e a Diagonale de Vecchiali em um todo e partes somadas, o cinema marginal da Boca do Lixo e o cinema de horror italiano… Nem todas estas obras foram dependentes de Dispositivo para aliciar clássicos e modernos, sincretizá-los segundo os princípios de um To play infinitamente refratado por regras continuamente modificadas, posições revertidas, narrativas espelhadas en ‘abîme’, mas devemos pensar o Dispositivo presente em outras como um certo modus operandi eficiente para tornar visível com carnavalesca evidência (relevância plástica da montagem, por exemplo nos filmes pós-maoístas de Godard, ou em Carmelo Bene, respectivamente para fixação crítica do modo de produção dos filmes ou da obsessão que se cristaliza através de seu objeto) mas também semanticamente inteligível, de modo que possamos estabelecer os elos e implicar os links relevantes que retomem estas obras para o cinema sem que o cinema seja, ao mesmo tempo e contínuo movimento, também o lugar de nascimento de um novo teatro e do experimento ‘crítico’ com o vídeo.

euvbjr-01

Era Uma Vez Brasília continua, como em Branco Sai Preto Fica (2014), em grande parte um funcional playground de guerrilha, mas aqui o projeto se enrobustece, ganha a amplidão e a ressonância de um bunker no coração da Cidade-capital, mobilizada por um conjunto de táticas e a Estratégia – de tomar o Poder – e isso, nesta Doc Fábula, é sitiado, datado, como deve ser em uma arte materialista: o discurso da presidente Dilma Rousseff no Senado, a votação na Câmara dos deputados por sua cassação –, um tanto como se os eventos de 2003 enfim se configurassem numa grande Bild melo-dramática, enfeixada por médios confessionais e generalíssimos de fulgurância guerreira, acedendo agora ao trono não aqueles que sempre estiveram lá, submetidos ao mesmo prático-inerte legalista da Reação; seguindo a princípio a linha de Branco Sai Preto Fica, aqui dispersa por vários pontos de fuga e norteada por uma desterritorialização – de base, verifica-se em Era Uma Vez Brasília uma caudalosa acumulação de forças, lugares de enunciação, instrumentos, tropos de Cena e Cenas, funções: a História atrabiliária, mesmo que sob a máscara do legalismo, é aquela figura falocrática contra a qual o outsider (aqui: a Cidade outsider, Ceilândia) deve combater, e o seu lugar eminente é reconquistado pelos asseclas do imaginário coletivo.

euvbjr-02

Em Branco Sai…, estávamos restritos ao playground guerrilheiro de três personagens que, por circunstâncias físicas e psíquicas, haviam perdido o contato com a Realidade (é importante sempre reiterar a natureza socialmente situada destes mascaramentos fantasistas, das cápsulas espaço-temporais, dos beats sincrônicos, índexes de puro valor de uso, porque a forma de resistência à norma está sempre ligada ao Jogo do homo ludens; é Jogando, segundo regras idiossincráticas, mas de validade determinada sem risco pelo hábito e a ordem das cartadas, que estes homens e mulheres ascendem à categoria de peões e rainhas de suas vidas). Neste último filme, amplifica-se e ramifica-se o metro de tudo, como se o Carpenter guerrilheiro de Fuga de Nova York (1981) determinasse um diapasão inspirador, e o self-made-man uma figura dramática galvanizante. Um ponto: se a alienação, de Marx a Freud e de Freud a Habermas, sempre constituiu-se através dos elos, as cadeias, as mediações e finalmente os concentracionismos institucionais, que impunham ao indivíduo ou comunidade um molde demasiado estreito ao qual este, se quisesse o direito à sobrevivência gregária, haveria de se submeter, sob a condição de sua atomização pelo Mesmo; e dado que este processo de coerção violenta acabou por se virtualizar mentalmente nos próprios indivíduos, enformando suas representações e valores com o fantasma integrador consumido por todos, a alienação nestes dois filmes é de uma dupla natureza, e tem por fito antes de tudo (perversamente, como lá ficou dito) tomar a alienação marxista ‘negativa’ como base infra-estrutural para uma alienação que antes deveria ser vista como transfiguração brincante, reinvenção teleológica dos mesmos meios (de trabalho taylorista em linha de produção, por exemplo) que deveriam servir à fixação destes indivíduos na teia fatal da Necessidade. Em Branco Sai Preto Fica e Era Uma Vez Brasília, as armas, os bunkers, os postos de exibição dos guerreiros intergalácticos são antes de tudo estes monturos de latão meio amassado, de arame farpado, de beton semi-erodido, de plástico incinerado pela metade, que a belíssima luz transubstancia em címbalos dourados de Creta: a grande arte desses guerrilheiros consiste no bricolagem, que é o que de melhor lhes restou, e resiste-se ainda para soerguemos uma Cidade de latão sobreposta ao Congresso virgem de contatos. O bricolagem está com frequência presente numa arte povera que, dos filmes de Adolfo Arrieta a Jean-Claude Biette, Andy Warhol, como nos Meteorango Kid e Jardim das Espumas, nos encantou criticamente, e é neste paradoxo aparente que reside sua genialidade; esses artistas sempre souberam recriar aquilo que se destinava à lixeira, recosturar o puído, afinar a batida fora do tom, fazer de uma ‘laje’ uma cobertura de mansão, converter a piscina de plástico em um estuário transbordante.

euvbjr-03

Mas atenção: o cinema marginal brasileiro, digno de todas as loas inimagináveis no que concerne à invenção, sempre deixou evidente a cicatriz destas origens demasiado infra-estruturais de seu instrumental fabular; a lata, o arame farpado, o Nagra deficiente sempre aparecerem acintosamente, índex materialista que tinha o fito político de espoliar a ordem e o progresso assépticas do regime ditatorial, que sempre teve sua ressonância superestrutural, com os elementos excremenciais do ser; enfim: de sujar o fardão justo e o tacão reto da ditadura, revelando a esses recalcados a dimensão de Natureza que é o opróbrio de todo recalque: a manifestação da sua natureza e do Outro, expressas no material de base, nunca inteiramente dominado, dos meios de que o artista deveria se servir para reconstituir seu mundo interior em confronto agonístico com a situação política, social estabelecidas.

Era Uma Vez Brasília é um segundo ou terceiro momento contemporâneo, em que, se pelo menos segundo a diegese observada e o découpage geral do filme, o bricolagem (a improvisação) dos materiais permanece tão relevante como em Sem Essa Aranha (Rogério Sganzerla, 1970) ou Os Monstros de Babaloo (Elyseu Visconti, 1971), certamente uma reviravolta se efetiva no uso desses mesmos materiais (entendam: eu não estou fazendo um inventário da produção do filme ou de seu orçamento; há críticos americanos que se ocupam desta função). A questão é que é necessário, apesar do primoroso de cadre, luz e raccord orientador (algumas vezes francamente estrábico, a alimentar esta ideia lewtoniana de um inimigo ilocalizável no espaço) do filme de Adirley Queirós, reter que a base infra-estrutural da Fábula fantasista (de cunho resistente, político e material) deste filme deve estar visivelmente evidente nos cuidados impostos pelo Homem encarregado de matar Juscelino ao seu carro, à sua grelha, ou do esmero dos soldados intergalácticos ao se apresentarem à sua Hostess, ou o tempo dilatado dedicado ao rapaz de cadeira de rodas mascarado a ouvir as votações do impeachment diante do Congresso nacional. Tudo é indispensável, tudo deve ser retido e inventariado, matérias como prolongamentos dramáticos, idiossincrasias posturais como marchas do Grupo na Noite, o singular como o plural, o Mesmo e o Outro…Daniel Arasse, historiador maneirista, falava daquelas manchas saturadas de pintura que a nossa visão ainda albbertiana (distanciada na nave-museu) não nos permitia apreender; ele as chamava de ‘detalhes’, e centrava naqueles arroubos de negros e estrias de escarlate o coração da pintura moderna, que não cessou jamais, numa espécie de retorno do recalcado, de solicitar a atenção da percepção humana para aqueles homúnculos de tinta crespa. Era uma vez Brasília é, neste sentido, um filme ultra-moderno, pois suas operações de guerra acolhem, com generosidade vertiginosa, uma série de detalhes que a linha reta e indecomponível de playgrounds mais convencionais não teriam a libido pantagruélica para devorar. Somos solicitados ainda e sempre por pontos de vista irracordáveis, personagens que surgem da Noite para com a Noite comungar, exibicionismos que aliam a contra-plongée dos soldados intergalácticos ao plano fixo e panorâmico que nos entrega sua generalíssima comandante para a batalha: de onde vieram? Quantas Ceilândias ocultam Ceilândia, quantos ângulos, quantos raccords e raccords no eixo da câmera serão necessárias para dar conta da totalidade desta épica empresa guerrilheira, que brinca seriamente (bem, o bricolagem para quem o pratica é em geral a coisa mais séria deste mundo: o gato, a criança, o esquizo) para instaurar um espaçamento de direito na Cidade formigante de classes e barracos, um vácuo de pó e pedra a partir dos quais se lancem os fundamentos de uma Cidade mais legítima sob o ponto de vista – que será sempre de Direito sub species aeternitates…– do imaginário?, que integre seus coadjuvantes, suas margens, seus instrumentos na maquinaria central da Cidade.

euvbjr-04

Jacques Lacan dizia que o paranoico só olhava para o próprio umbigo; em termos gerais (e somáticos), podemos pensar que a doença constrói em torno do sujeito um cosmo endógeno-entrópico, que lhe serve para cultivar seus fantasmas, e sobretudo manter a alteridade numa distância consideravelmente infinita, pois a doença consiste precisamente na negação da cura, na alienação do para-si que tornaria o doente ciente de seu próprio mal; este ainda era um leitmotif em Branco Sai Preto Fica: um corpus paranoico que, embora no modo play, às vezes chanchádico, ainda se exercia segundo uma experiência de sublimação ou transfiguração da alienação social, e portanto permaneciam dependentes do que negavam, enclausurados sob suas garras entrópicas; em Era Uma Vez Brasília, instaura-se propriamente a fase épica (Kristeva a contrapunha ao romanesco, que se lhe substituiu em XIV), e a Cidade é retomada como um grande bunker fantasmático; se o fantasma no filme anterior ainda precisava do bric-à-brac de cada herói para funcionar segundo seu metro repetitivo (sim, pois a repetição é a sua norma, como lá está no Para além do princípio do prazer), agora ele saiu à Rua, espraiou-se pelas avenidas, entrincheirou-se nos túneis, organizou-se em falanges, disseminou seus tentáculos e ecoou seus brados de guerra, hasteou suas bandeiras, queimou ritualmente as carcaças inimigas e inaugurou um Estado de Direito urdido por todas estas exceções. Se Branco Sai Preto Fica ainda permanecia na endogenia da margem centrípeta (da doença mental, da alienação brincante), e portanto submetida ao movimento, ‘para trás e para dentro’, da entropia cultural e existencial – a título de preservação do Mal exterior, o Fantasma se enclausurava, se segregava espacialmente no seu devaneio mental –, Era Uma Vez Brasília é uma aposta na sintropia, fenômeno físico no qual, contrariamente à entropia (à implosão energética que é o destino de todo corpo finito), a busca e a integração do Outro no sistema finito suscita uma profusão de novos modos de ser (de novas armas, de um batalhão, de eixos e alvos móbeis: figuras de renovação exuberante do ser, figurações de uma mais-valia na sua potência) que enriquecem a totalidade maquínica do sistema da vida.

euvbjr-05

Em Branco Sai Preto Fica temos um certo romanceiro da psicose, onde os instrumentos imaginários de liberação da alienação (social e política) acabam se ancorando em uma alienação segunda, de índex fantasmático: menos uma libertação literal que uma suprassunção hegeliana, onde os elementos de erosão da subjetividade são aprofundados para que deste planalto arenoso o sujeito possa extrair um supra ou ultra-sujeito, com uma potência pelo menos imaginária de sublevação do mortificante Real, mas sempre sitiada pela subjetividade revoltosa –, havia a utilização de uma espécie de kammerspiel lumpen, gênero que, com exceção da rubrica lumpen, encarregou-se na história do cinema de, na contracorrente ma non tropo do expressionismo, voltar-se para a interioridade realista dos sótãos, das salas de estar e de jantar, dos halls e limiares, lugares de passagem onde talvez um gesto fotografado bastasse para revelar um afeto, o que no expressionismo mais paradigmaticamente clássico se servia do révelateur do cenário de cartolina pintada – para cultivar e cultuar esta reserva interior, onde os personagens podiam ser o lugar de enunciação do trauma sofrido sem se queimar, uma vez que portavam a máscara e se encenavam no cenário de uma Fábula dos escombros; em Era Uma Vez Brasília, disposto a fabular desde o ab ovo do título, é a Épica destas encenações confrontadas no in loco do cinema moderno (profundidade de campo, plano-sequência, locação) que assegura uma transição do kammerspiel paranoico para um cinema em campo (moderno, propriamente: seguir um personagem em todas as suas impressões e descobertas, como no credo rosselliniano capturado numa entrevista a Bergala), mas que não escamoteia o fora de campo das intrusões, de relevância estrutural para esta passagem ao ato da História e da Política contemporâneas, de um espaço de Jogo maior e mais ressoante – da situação política do Brasil contemporâneo, presentes nas gravações em off do processo de impeachment; esta é a overdose de negativo que, no campo deflagrado do Jogo guerrilheiro, vai fornecer ao filme um trampolim que lhe permita abandonar o romanesco psicótico de Branco Sai Preto Fica e aportar de pleno direito numa Épica do campo conflagrado e do fora de campo (os discursos: um espaçamento de leitura, como nos advertia Daney) imantado pela leitura de um Brasil possível, de uma Revolução que não apenas efetive-se nas barricadas mas que também reflita as possibilidades (de estratégia, de planejamento dos movimentos, de antecipação das jogadas do inimigo) do Jogo como um todo, como totalidade expansiva que cabe ao filme configurar plasticamente e sincopar na montagem, pois cinema sempre foi uma arte polifônica; esta passagem da interioridade fantasista para um campo exterior, absolutamente conflagrado pelo Fantasma é essencial a ser retida: em Branco Sai Preto Fica, a revolução era sempre intimista, no barato da música ou das cápsulas alternativas de espaço-tempo: um exercício ou experimento, em todo caso proto ou micro, do momento de decisão que consiste em toda implicação de alteridade no projeto existencial do sujeito, que se permanecer endógeno jamais abandonará o domínio, poético embora, da patologia, do ser afetado; aqui, o tempo da colheita começou, e os ensimesmamentos fantasistas um tanto infantis do filme anterior se objetivam, graves e altaneiros, na campina sitiada; os vencidos da História, mesmo que reinventados pela entropia fantasista de Branco Sai Preto Fica, agora se armam para ocupar seus lugares de narradores da História, e isto não se faz sem pegar em armas, estratégicas ou retóricas; Era Uma Vez Brasília é um filme de seu tempo e de seu país, e a insurreição que encena no bunker a céu aberto da Cidade conflagrada talvez seja uma das imagens mais inspiradoras no cinema brasileiro contemporâneo para se pensar uma Revolta no domínio do Simbólico, e este me parece bem mais fulcralmente duradouro que qualquer embate de sangue.


Leia também: