A Cidade é uma Só?, de Adirley Queirós (Brasil, 2011)

setembro 27, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Filipe Furtado

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Um filme propositivo
por Filipe Furtado

Na última década, o cinema brasileiro se fascinou com as possibilidades da auto-ficção e do filme híbrido. É algo muito presente em toda produção do período de Eduardo Coutinho, em Serras da Desordem (2006), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), nos filmes da Teia e da Alumbramento, etc. Há um belo texto do Ruy Gardnier sobre como, ao longo da maior parte de sua história, o cinema brasileiro revelou uma preferência por um naturalismo relaxado: “O que existe é a forte concepção de clareza e praticidade: algo que pode ser filmado em um único plano não precisa ser filmado em dois, abandono de qualquer elemento expressivo que possa ser considerado rococó”. De certa forma, o filme híbrido é a versão contemporânea desta mesma tendência, uma forma segura e preguiçosa (para pegar o termo de David Neves que Gardnier resgata) de buscar uma representação real numa chave que flerte com modelos em voga na produção mundial recente. É um olhar que, se rendeu alguns filmes fortes, também se tornou uma moldura de segurança para muitos realizadores, uma forma apaziguada de elogiar o cinema no seu processo de imersão em que esta posição de filme-processo frequentemente tomava o primeiro plano.

A Cidade é uma Só?, de Adirley Queirós, é outro filme híbrido, mas é preciso notar que as razões pelas quais o filme busca o seu hibridismo são bem distantes das de outros filmes do gênero. Como Fabian Cantieri bem notou num texto da época da primeira exibição pública do filme, o caráter híbrido de A Cidade é uma Só? é uma constatação do fracasso, da certeza por parte do realizador de que o documentário sobre a busca de Nancy Araújo pelo material de arquivo da campanha de realocação da CEI é insuficiente para dar conta do estado de exclusão dominante do Distrito Federal. A ficção que Queirós urdiu em paralelo, em particular a campanha do faxineiro Dildu para deputado distrital, funciona como um happening sobre este documentário de personagem, uma intervenção direta que busca preencher os espaços vazios que seu olhar inicial proporcionava.

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Se A Cidade é uma Só? se revela um corpo estranho no cinema brasileiro, é justamente por não se tratar de um filme reativo, mas propositivo. Reconhece-se uma questão e se propõe uma forma de lidar com ela. Se o cinema da moldura é todo ele calcado numa questionamento politico da representação, A Cidade é uma Só? parte da constatação do seu fracasso. Nele, não há espaço para ideia de que o cinema redime. Sua política é da ordem prática: há um problema – a exclusão simbólica da maior parte dos habitantes do Distrito Federal – sobre o qual é preciso agir.

Esta intervenção fica clara naquela que é a sequência mais celebrada do filme, quando, próximo do fim, o carro de Dildu quebra e ele segue a pé até cruzar com uma carreata da campanha da presidente Dilma Rousseff. É uma sequência que existe justamente na contramão desta ideia reativa; pelo contrário, a sequência toda sugere que o filme criou uma armadilha para que a carreata passasse. Nas palavras do próprio Queirós numa entrevista a Daniel Dalpizzolo, no Multiplot: Aquela cena final que ele encontra a carreata do PT, toda ela foi esquematizada. A gente sabia que haveria uma passeata, conhecemos a cidade de cor e salteado. A gente sabe horário de sol, horário de limpo. Vimos mais ou menos como seria o trajeto e propusemos à equipe e ao personagem que encontrassem a carreata naquele exato momento. Com aquela luz e aquele plano aberto, porque sabíamos que ali eles chegariam como se fosse uma nave espacial, porque a campanha é assim: ela atravessa campos de futebol, atravessa as praças, passa por cima de todo mundo”. A grande força simbólica daquele momento é cuidadosamente planejada e manipulada para os fins que o filme deseja. Nada em A Cidade é uma Só? jamais será acidental; as imagens do filme podem parecer simples, mas elas expõem um controle e uma necessidade constante de intervenção.

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O frescor do filme surge justamente da maneira que ele normatiza seu processo. Exceção ao nome farsesco do partido fictício de Dildu, não haverá nada na parte ficcional que chama atenção para si. Não há um desejo de criar uma crise de encenação. Pelo contrário, Queirós extrai boa parte da força do filme justamente da sua construção dramática, das suas situações, pela maneira que aos poucos envolve o espectador naquele universo. É um filme de dois personagens, e se há algo que o limita é justamente o desequilíbrio entre eles, já que A Cidade é uma Só? jamais consegue animar a busca de Nancy com o mesmo vigor das sequências da campanha. São cenas que nunca escapam do seu modelo de busca de passado e que por vezes parecem ter uma proposição quase teórica de contraponto dentro do filme, seu tom morno refletindo a maneira como os cinquenta anos de violência simbólica que o projeto de exclusão no centro da execução da urbanização do distrito federal (ao contrário da inclusão do seu pretenso projeto) é um simples dado com o qual morador a muito se acostumou.

Em determinado momento, Dildu articula, entre seus projetos de campanha, maneiras de interromper o ciclo que impede o morador da cidade-satélite de concorrer em igualdade nos concursos públicos com os do plano-piloto. Nada mais prático, num espaço em que a ascensão social é uma questão de se mover de prestador de serviços a funcionário público (e se o concurso público tem uma função de segurança muito clara no imaginário da classe média brasileira, isto vale em dobro no Distrito Federal). Não há muitos momentos mais representativos dos limites do projeto de inclusão do governo federal ao longo da última década, e este movimento constante entre a procura de Nancy e a campanha de Dildu faz muito por colocar em movimento justamente certo torpor com que se lida com esta posição de existir na margem – uma forma de contextualizar a tensão inerente ao processo histórico que o filme traça.

A violência da exclusão em Brasília é refletida na sua vivência diária, sua existência palpável, de uma forma rara no cotidiano brasileiro. É por isso que são pouco úteis as frequentes comparações de A Cidade é uma Só? com Conterrâneos Velhos de Guerra (1991)de Vladimir Carvalho. O filme de Adirley Queirós não é afinal um filme sobre a exclusão original, mas sobre toda uma existência suprimida, sobre uma identidade que foi forjada à margem. Não é um filme que poderia ser pensado a partir do plano-piloto, mas que somente poderia surgir das cidades-satélites. O que ele documenta é menos uma história (daí o interesse quase protocolar pela busca dos documentos), mas um processo de ser marginal. O que ele busca registrar é uma negociação constante da exclusão com seu status de outro, muito mais próximo nisso de um Ozualdo Candeias, se sem a mesma força de encenação. De certa forma, o filme que A Cidade é uma Só? mais traz a mente não é um filme brasileiro, mas Napoli Napoli Napoli (2009), de Abel Ferrara, outro documentário sobre uma cidade e a existência marginal que também lançava mão, de forma mais discreta, de sequências ficcionais. Em ambos os filmes, cria-se uma mise en scène da exclusão, urdida da certeza de que se expõe um espaço que sofre uma violência simbólica constante (da influência da Camorra, no filme italiano, e de um projeto de progresso abortado, aqui).

A violência de A Cidade é uma Só? brota da arquitetura e principalmente do preenchimentos de espaço. Locomove-se muito ao longo do filme: seus personagens estão sempre se deslocando de um ponto ao outro (quase sempre de carro, já que Brasília não foi feita para os pedestres). Há algo angustiante na maneira com que Queirós capta o espaço vasto nas vias expressas da cidade – este ato de ir e vir, longe de ser livre, só reforça as distâncias entre o plano-piloto e a Ceilândia, a violência institucional ao qual o morador da cidade satélite está exposto todos os dias. A Cidade é uma Só? se mostra muito mais à vontade nas ruas acanhadas da Ceilândia, nas quais o progresso não dissimula uma democracia inatingível, mas aceita-se de bom grado seu fracasso. É algo que se completa na trama, um tanto subdesenvolvida, com os terrenos grilados, com todo aquele vasto espaço pronto a ser convertido em mais capital e a consciência de que qualquer reurbanização só aumentará o processo de exclusão. Se uma parcela do cinema brasileiro recente (sobretudo o pernambucano, mas não só ele) é obcecado pelo custo da reurbanização, o traçado histórico que A Cidade é uma Só? realiza é seu exemplar mais bem acabado: de JK, aos militares, ao PT, o desenvolvimentismo condena à mesma exclusão; a arquitetura de Brasília é apenas a versão mais bem acabada da nossa sublimação da exclusão. Nada mais honesto que um filme prepositivo sobre o Distrito Federal troque Niemeyer pelas casas acanhadas de Ceilândia.

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O uso expressivo da violência do espaço é algo que aproxima A Cidade é uma Só? de O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, e deve-se dizer que são filmes que se complementam bem nas suas oposições. Se O Som ao Redor busca o tempo todo uma representação possível justamente para um estado de violência sublimado, A Cidade é uma Só? é o passo seguinte, uma imersão direta nesta exclusão não-dita. Cada corte no filme de Adirley Queirós serve para construir um peso para esta existência, para a certeza de que se está destinado a permanecer ali, fora do plano. A preferência de Queirós por lentes de grande angular tende a reforçar esta ideia de que estamos numa enorme panela de pressão, sem um desafogo possível. Pode-se dizer que, ao lidar com uma situação local que lhe diz muito, Queirós encontrou algo ainda mais amplo – o projeto urbano de Brasília afinal sugere um pacto de inclusão que não deixa de permitir um paralelo com o projeto desenvolvimentista do governo Dilma, reforçando a ideia de um mergulho num processo histórico que se repete e só avança no seu fracasso. Seu retrato da Ceilândia se revela um dos poucos retratos de uma ideia de exclusão que o cinema brasileiro no máximo procura sugerir à distância, mediado por chaves como a do filme-processo ou temas relevantes como a violência urbana.

A Cidade é uma Só? coleta fracassos: seu fracasso como documentário; cinquenta anos de fracasso de um projeto de desenvolvimento com inclusão; o fracasso do cinema brasileiro como um todo em lidar com a figura do excluído… o fracasso político e o de representação andam juntos, com a nossa incapacidade de lidar com um refletido no outro. No lugar disso, o filme propõe tomar a Ceilândia por ela mesma. Com isso, chega-se à exclusão, tateia-se a violência simbólica presente nela, mesmo que por vezes não se saiba o que fazer com ela. O seu limite claro me parece justamente a dificuldade de um movimento seguinte após o diagnóstico, o que não deixa de ser um dado dos mais relevantes. A Cidade é uma Só? é vitima da própria originalidade; adentra terreno de tal maneira negligenciado que, após encontrar uma representação nova, nem sempre parece saber o que fazer com ela, pois falta-lhe o referencial para o tal. Não importa; é um passo à frente mais do que necessário.

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