Filmar o existente, as existências, o existencial
Quando o filme começa, Fernando (Konstantino Sarris) já é o destaque do time de handebol da escola e bastará uma partida para que seja chamado para jogar e terminar os estudos na Alemanha. Entre esse primeiro momento e a partida definitiva de Fernando ao final do filme, a mãe, Irene (Karine Teles), é quem mais fortemente reage enquanto a família se prepara para o momento em que, pela primeira vez, um membro da família que vai ao estrangeiro. Narrando assim, bem parece que Benzinho estará concentrado nos termos da relação entre mãe e filho, Irene e Fernando. É assim em toda a introdução do filme. Primeiro, quando ela apanha os outros três filhos para assistir ao jogo de handebol do garoto. Em seguida, toda a família aguarda Fernando para jantar e comemorar a vitória do filho prestigiado. Quando ele finalmente chega, Fernando anuncia que recebeu a proposta do exterior, momento em que o plano fechado da expressão de Irene e a trilha pontuam a partida do jovem como elemento narrativo central do filme. Bastaria, no entanto, notar alguns outros detalhes que aparecem já nesses breves momentos, para que suspeitássemos de outras camadas que seriam engendradas ao longo do filme: a casa da família caindo aos pedaços, o esforço da mãe para cuidar dos filhos sozinha, o pai (Otávio Müller) contando as moedas no caixa da livraria, o rosto machucado da irmã de Irene (Adriana Esteves).
Será pela hábil articulação desses elementos internos que Benzinho despontará como um filme cujo apuro narrativo – a capacidade contar uma história e fornecer vida própria a cada um dos personagens e momentos narrativos – encontra poucos pares no cinema brasileiro recente. Por isso, vale que perguntemos qual o estatuto da centralidade da partida de Fernando. Embora seja o elemento narrativo central, o filme não faz disso um mistério. Fernando vai mesmo para Alemanha e tal fato parece consumado desde o começo, ainda que existam processos burocráticos a serem resolvidos. Essa certeza livra o filme da necessidade de fornecer uma carga dramática ao arco da ida do filho, ao passo que não somos impelidos a acompanhar os episódios sob a tensão de algo dar errado e o garoto não ir. Assim tudo converge para que possamos prestar atenção em Irene enquanto ela paulatinamente aceita a partida do filho que mesmo ela sabe como certa mas, como mãe, não quer aceitar – e uma das coisas mais bonitas do filme está em capturar isso em todos os gestos de Irene. Benzinho está mesmo disposto a colocar-se à altura de uma personagem como Irene, tanto em termos de narrativa quanto de comportamento do olhar, para então levar à plenitude a atuação de sua personagem principal e desdobrar mais uma poderosa interpretação materna de Karine Teles, que também interpretou uma mãe em curta Quinze (Maurílio Martins, 2015).
Com efeito, o filme se concentrar nas dimensões fundamentais da existência da personagem, sem insistir em apresentá-la em em contextos que forçosamente evidenciaria a complexidade da sua construção. Não assistimos Irene explicitamente opinando sobre o curso do mundo ou inserida em diálogos robustos com personagens que não estão estritamente integrados ao elenco. Observamos, sobretudo, Irene em momentos de íntima conexão com os personagens essenciais da história, e é a própria combinação, repetição e evocação desses elementos nos mais variados contextos que nos permite formar uma ideia precisa da personagem. Em face dessa simplicidade pela qual Irene é intensamente apresentada, vale aquilo dito por Antônio Cândido, para quem “a força das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que temos da sua complexidade é máximo; mas isso, devido à unidade, à simplificação estrutural que o romancista lhe deu.” Ao menos por isso, explica-se parte da identificação profunda que sentimos por Irene.
Se é verdade que Benzinho não abandona a mise-en-scène centrada em Irene, assumindo-a como força centrípeta do filme ao apresentá-la em praticamente todas as cenas do filme, o seu capricho narrativo se revela ainda na surpreendente correção do filme com os outros personagens. Não sou poucos os exemplos no cinema brasileiro recente – Big Jato (Cláudio Assis, 2015), Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015), Como Nossos Pais (Laís Bodanzky, 2017), Gabriel e a Montanha (Fellipe Barbosa, 2018) – em que a empreitada de apresentar a personagem principal é significativa e cheia de nuances, mas em detrimento dos demais que carecem de substância, pois prevalece sua condição de suporte da representação do personagem principal. Ao contrário, Benzinho oferece espaço de atuação e tempo de cena necessários para que todos ao redor de Irene assumam qualidades e características que os singularizam. Mesmo sem jamais se desvincularem (em termos de ponto de vista narrativo) de Irene, cada um dos personagens está inserido em contextos que figuram distintas temporalidades, a partir das quais são exprimidas suas experiências particulares: a própria Irene imersa no passado, no qual gozava da família completa, da casa de praia e da esperança que o 2º grau completo era condição suficiente para acessar um emprego de carteira assinada; Fernando já preso à imaginação do seu futuro na Alemanha; Klaus atrelado a um tempo utópico em que a realidade há de vir ao encontro de suas mais bonitas expectativas (“a maior livraria da cidade”, o mirante subsidiado pela prefeitura, a venda da casa por um preço acima do mercado); a irmã de Irene tomada pelo não-tempo do fim do casamento recente; e os demais filhos de Irene prestes a conquistar, à sua maneira, seu próprio tempo.
Acima de tudo, está o aqui e agora filmado pelo filme, a casa onde todos compartilham o mesmo espaço, o segredo de um que desemboca no segredo do outro, e a quintessência de Benzinho é capturar com o máximo de entrega todos estes instantes que tragam os personagens ao mais absoluto presente: os momento em família, os acesso de fúria, as “quentinhas” e o “puxadinho” como estratégias de sobrevivência, as alegrias que logo se traveste em aflição, e vice-versa, indefinidamente. Em Benzinho, o estado psicológico dos personagens é instaurado pela dramaturgia interna de cada cena, sem que seja consolidado antes o desenrolar da cena o torne presencial. Ao final do filme, a única coisa que está totalmente resolvida é a partida de Fernando (e quando chegar lá? vai se adaptar rápido? conhecer alguém? aprender a língua?), enquanto as demais situações permanecem em suspenso, incertas e ambíguas sem que pareçam arbitrárias. Porque, na verdade, a ida do garoto é apenas um pretexto para que o filme se concentre naquelas existências por um espaço de tempo que, por princípio, não esgota suas vivências possíveis, de modo que continuam surtindo efeito em nossa imaginação mesmo quando o filme acaba. Não é à toa que na última cena assistimos a banda marcial de Petrópolis atravessando em frente da família, simulando um efeito visual que assemelha o tempo em seu curso inexorável – ou um filme que não acaba mas, como escreveu Bazin, “retornam ao tempo como os rios retornam ao mar”.
Cinema brasileiro e cultura globalizada
Benzinho, Aquarius (Kléber Mendonça Filho, 2016) e As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017) são três dos mais instigantes filmes brasileiros lançados comercialmente nos últimos anos, mas não apenas isso: são filmes que possivelmente assinalam um novo paradigma vigente em nosso cinema autoral, principalmente no quesito “filme-médio” em que se enquadram. Nesta chave, os realizadores tomam decisões formais e narrativas que, a princípio, o discurso crítico não encara facilmente. São decisões que, vale dizer, recolocam o cinema brasileiros nos trilhos da linguagem falada pelo world cinema. O próprio Gustavo Pizzi foi cristalino sobre esse novo lugar entre o convencional e o autoral desejado pelo seu filme, quando afirmou que Benzinho “nem é uma comédia só para consumo no Brasil, nem um filme obscuro que só passa em festival”.
À primeira vista, o que aproxima esses três filmes, para além das suas indiscutíveis qualidades de realização, é que são filmes agradáveis – ou seja, filmes que dificilmente alguém assiste e não “gosta”. Resta saber até que ponto, como disse Raul Arthuso em belo texto recente, esses filmes não se tornam uma prisão de agradabilidade, na medida em que se fazem palatáveis para assim se adequarem a uma certa “cultura globalizada da fruição sedutora das problemáticas nacionais”. Para que tornemos a reflexão mais clara, pensemos a respeito da passagem de O Som ao Redor (2012) para Aquarius e Trabalhar Cansa (2011) para As Boas Maneiras. São passagens sintomáticas porque, inicialmente, aqueles primeiros filmes foram expoentes do momento em que o cinema brasileiro se tornou mais questionador e propriamente político, altamente interessado em trabalhar a dinâmica social e histórica do país. Em seguida, é o momento que grandes realizadores como Kléber Mendonça Filho e a dupla Juliana Rojas e Marco Dutra assumem uma tendência que já se manifestava em filmes menos relevantes como Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014) e Que Horas Ela Volta?, dedicados a testemunhar a experiência do Brasil urbano contemporâneo mas desta vez através de respostas individuais e termos genéricos, provocando reduções de sentido histórico já que os personagens são marcados antes por uma reserva de moral do que por perspectivas políticas mais ou menos definidas. Em lugar de destrinchar a lógica do social, destaca-se a verdade interior dos personagens e as virtualidades do gênero cinematográfico, valendo a afirmação de Ismail Xavier de que “esse gênero de discurso que se mostra eficaz na comunicação, mas cujo preço é reduzir o horizonte de compreensão do social”.
Se é certo que Benzinho traz implicações sociais menos evidentes que Aquarius e As Boas Maneiras – não há, no centro do filme, relação com uma doméstica ou luta contra uma empreiteira que escancare o político, embora persista uma astuta tentativa de representar um novo modo de vida da atual classe trabalhadora do Brasil – não é menos certo que o verniz universalizante está tanto no esporte (handebol) ou país a que Fernando se destina (Alemanha), quanto no modo genérico com que o filme apresenta a violência contra a mulher (tanto que a narrativa de Sônia é a menos empolgante). Quando a transformação neoliberal do trabalho frustra os planos pós-formatura de Irene, é o deslocamento das cadeias produtivas para os países asiáticos que é enfatizada, diferente do que ocorre em Corpo Elétrico (Marcelo Caetano, 2017) em que as demissões na semelhante indústria de confecção de roupas se vinculam, sobretudo, com a relação bem brasileira entre patrões e funcionários negros/homossexuais/nordestinos. Nem mesmo as dificuldades financeiras da família constituem um drama sobre a ruína de uma família de classe média brasileira, como vemos em Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014), pois não existe mal-estar pela ruptura de antigos costumes patriarcais. Sob o imperativo de globalizar a experiência, a narrativa é focada nas reações individuais e autenticidade dos sentimentos de Irene, e por isso mesmo evita um tratamento mais profundo de frações que evidenciariam cenas públicas e conteúdos ideológicos (muitas vezes incompreensíveis no contexto world) – como a emigração de jovens talentos para o exterior, o deficiente sistema educacional do país ou as mutações do comércio de livros e do turismo de uma cidade como Petrópolis – já que ultrapassariam os limites do drama doméstico fundamentado no sentimento materno de Irene. Ocorre, portanto, algo paralelo ao ocorrido em Aquarius e As Boas Maneiras, quando o arco da heroína e as idiossincrasias do gênero se tornaram o eixo principal de cada filme respectivamente, enquanto o mal-estar social continua presente, mas não estrutura a forma de maneira tão decisiva.
Ainda assim, o que faz de Benzinho um belo filme é que a “reserva moral” ou “autenticidade dos sentimentos” de Irene nunca se perde em abstrações ou desperdícios, pois o tratamento vivo dos personagens impede que a narrativa ultrapasse o limite em que se interiorizaria de maneira excessiva: os significados, mesmo genéricos, só são consumados na medida em que a palavra e atuação dos atores também assumem vida própria. É por isso que, enquanto a força de encenação faz com que escapem para fora deles mesmos (sem que a suposta essência “mãe” possa imobilizar Irene em gestos absortos e previsíveis, por exemplo), é essa mesma força que nos puxa para dentro do filme e gabarita Gustavo Pizzi como alguém que possui a incomum habilidade (ao menos em nosso cinema) de aliar a beleza artística com a potência comunicacional da linguagem. Não se trata de recriminar, de antemão, a opção de um diretor que preza pela carreira e sucesso internacional, principalmente levando em conta as crescentes dificuldades de fazer cinema no Brasil, mas de ser movido pela curiosidade de observar nossos mais talentosos cineastas recuperarem a vocação para o perigo e trabalharem a fundo a matéria nacional. Principalmente agora, quando cada vez mais as comparações de Bolsonaro com Trump, Erdogan, Duterte ou qualquer outro líder global se revelam improdutivas, e estamos diante da exigência de inventarmos novas estratégias de leitura do país.
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