O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho (Brasil, 2012)

março 11, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Fábio Andrade

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Movimentos políticos
por Fábio Andrade

O Som ao Redor é um filme de rara pregnância. Seu gestos aderem ao mundo como poucos vistos no cinema recente – e não só brasileiro – o que explica parte de sua reverberação (outra parte, bastante significativa, fica a cargo dos imponderáveis, e os imponderáveis são o limite de toda crítica). Essa aderência, porém, se dá por um esmero que não está exatamente no polimento das engrenagens – ao contrário, O Som ao Redor não tem o polimento como uma das suas qualidades, e isso sim é uma das suas qualidades. A aderência vem por o trabalho de Kleber Mendonça Filho preservar, em suas articulações, as ranhuras exatas que se encaixem na topografia do pedaço de mundo no qual ele se insere – ou seja, em confluir, com precisão e sem ceder às concessões ou ao temor de se comunicar, uma visão artística com o tempo histórico, com o espaço que deseja ocupar, com a ontologia do que ele trata, e com uma pequena brecha no olhar do espectador que o permite ser surpreendido sem perder sua adesão.

A esta altura, muito já foi escrito constatando o encaixe. Talvez reste falar, ainda, algo sobre as engrenagens e os movimentos que elas permitem. Pois O Som ao Redor – e, a rigor, toda a obra de Kleber Mendonça Filho – é um filme em que o controle absoluto determina certos efeitos, e os efeitos, por sua vez, reafirmam o controle. Seu valor, portanto, não está somente na crítica de costumes, na arguta leitura histórica, no vigor quase absoluto da encenação… mas sim em como cada um desses aspectos é controlado de maneira a gerar um re-encaixe, de pegar peças que, embora espalhadas, já traziam no recorte do corpo a justeza de seus lugares. Por mais que seu aspecto político seja determinante (ainda mais por ser uma política também interna à arte: O Som ao Redor é um filme, não um panfleto – e como filme ele é mais forte em abalar o sensível do que em lhe escorar com certezas), a idéia já bastante cristalizada do filme como crítica social parecia, em geral, se anular justamente na insistência de uma estratificação desse retrato: Pernambuco; classe-média; Recife; novos ricos; a herança dos engenhos; Setúbal. De fato, O Som ao Redor se passa em tempo e lugares específicos, mas a atenção do filme (e o que o torna francamente especial) reside em dois movimentos mais amplos e que afirmam, ao mesmo tempo, sua força artística e política.

O primeiro movimento é a maneira como a câmera alterna entre duas posturas antagônicas: uma posição bastante frontal e concentrada em relação ao que filma; e uma espécie de política da digressão. Essa digressão é política justamente por ser pontual – falem o que quiserem do tom das atuações, da porosidade de seu “discurso”, mas O Som ao Redor nunca poderia ser chamado de um filme digressivo – e por seus momentos isolados se colocarem em confronto com a atenção direta e detida em uma cena que, em geral, está onde a ação está. Por oposição, nos vôos baixos dessa digressão, o filme não foge, não se nega a olhar, mas sim desloca onde está a ação. Não é, portanto, uma negação do olhar frontal, mas um desvio de o que seria merecedor dessa frontalidade, uma forma de trazer a borda da imagem para o centro. Uma espécie de “efeito Duchamp”.

Há alguns momentos expressivos em que a câmera se permite desviar, olhar para o lado, mas um deles é especialmente ilustrativo: após a já célebre reunião de condomínio em que os moradores de um prédio discutem demitir por justa causa um porteiro, Sr. Agenor, que dorme em serviço, João (Gustavo Jahn) vai se encontrar com Sofia (Irma Brown), e nesse trânsito a câmera se permite tomar uma curva, abandonar as personagens, e ir mostrar o próprio Sr. Agenor, que observa o casal se atracando no elevador, por uma câmera de segurança. Embora O Som ao Redor se permita também seguir, com intenções parecidas, uma doméstica que vai para seu quarto trocar de roupa, ou ainda acompanhar o filho de Maria, empregada de João – sempre em gesto de aparente gratuidade, mas como se dissesse: não se esqueça destes aqui – a ida até o Sr. Agenor neste momento se destaca por ao menos dois motivos. Em primeiro lugar, por neutralizar o bom mocismo que tenta enxergar o lado do “outro”, ao negar o caminho fácil da vitimização de classe – postura que sempre marcou parte de nosso pior cinema. Sr. Agenor, dizia João, é de fato o pior porteiro de todo o Recife, e o filme nos dá ainda outros motivos para que a personagem não evoque compaixão, sequer simpatia. O Som ao Redor não é condescendente, tampouco nega a existência do outro; sua afirmação é sinal do reconhecimento de autonomia.

Mas há outra implicação mais profunda e interessante neste gesto: se existe uma política possível nessa digressão, o que difere o gesto da câmera de O Som ao Redor do vídeo insuspeito feito pelo filho de um dos proprietários, coletando imagens do porteiro dormindo? Basicamente o fato de a digressão, aqui, ser uma forma de incluir o que se tentava manter fora, de trazer fisicamente o Sr. Agenor para uma discussão que, embora lhe diga respeito, lhe é negada. É, portanto, um movimento de câmera politicamente inverso ao sistema de demissão indireta adotado por toda empresa que possui um setor de RH – e também inverso ao sistema de eliminação, de queima de arquivos e de concorrência, sobre o qual – saberemos ao final do filme – Francisco (W.J. Solha) ergueu seu império.

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Esse gesto reverbera em toda a estrutura do filme, e sua importância não está somente em ressaltar que um dado essencial da equação poderia ser facilmente deixado de fora (mas não neste filme), mas também porque, em O Som ao Redor, todas as relações são diretas, toda ação é colocada não só em contexto, mas em cadeia. A teia que rege a organização social do universo do filme é de causa e consequência, ação e reação. Curiosamente, o filme consegue apontar as ações destas forças sem se curvar a elas, sem cair na causalidade dominante da tradição do cinema narrativo brasileiro de qualidade, e que mostrava as presas mesmo em tentativas de ruptura, como Casa de Areia, de Andrucha Waddington, O Invasor, de Beto Brant, e Linha de Passe, de Walter Salles. Há um pequeno deslocamento entre o que o filme diagnostica e o que propõe como alternativa possível, algo que se manifesta nas pontas soltas, nos fios cortados da história: a insolúvel tensão entre Bia (Maeve Jinkings) e a vizinha que gruda em seus cabelos (de novo?); a bola que salta um dos muros sem encontrar compaixão do outro lado; os colchões roubados na já antológica sequência do pesadelo; o casal de adolescentes que se beija em uma esquina de um prédio; a beleza extraída de luzes de segurança que se acendem e se apagam automaticamente.

As escolhas artísticas, portanto, são a proposição do filme em relação ao mundo e, justamente por isso, a estratificação de seu retrato é contraproducente: limitar o escopo do filme a Setúbal, aos novos ricos, ou aos velhos senhores de engenho é dizer que ele não fala da gente. Passaríamos, com isso, a olhá-lo de uma posição confortável que não condiz com o brutal sentimento de ameaça, de um cerco que se fecha (é inevitável pensar em Minha Terra, África, de Claire Denis, na criação desta atmosfera), que toma a projeção. Por outro lado, o filme não demanda – como muito do cinema brasileiro mais recente, com exceção de obras programaticamente mais selvagens, como Strovengah, de André Sampaio, O Fim da Picada, de Christian Saghaard, ou Canção de Baal, de Helena Ignez – que o espectador se identifique com o protagonista (há protagonista, em O Som ao Redor?); a reação exigida do espectador é menos “este poderia ser eu”, e mais “eu também ajo desta forma” ou “sofro a ação desta mesma relação”. Pois, ao filme, interessa menos a especificidade de cada experiência de mundo – há personagens que merecerão mais ou menos a fidelidade da câmera, embora isso não se reduza a um cálculo maniqueísta – e mais a forma como elas estão em relação, e de como essas relações (geográficas, amorosas, de trabalho, de classe) afetam cada experiência de mundo. Se pensarmos O Som ao Redor como um rizoma, seu foco não estaria nos pontos conectados, mas nas retas que os conectam.

O segundo movimento, anunciado no começo do texto, é decorrente dessa postura: ao afirmar justamente as conexões, O Som ao Redor assume uma curiosa estrutura de coral – não de multiplot – que, na verdade, determina os avanços e retrocessos do filme. Sua originalidade dentro do panorama brasileiro não está em mostrar isto ou aquilo, mas em afirmar que tudo o que ele mostra é parte de um mesmo corpo e pensar todas essas pequenas partes em relação. Esse deslocamento é essencial pois, mais do que se concentrar nas causas e efeitos individuais, é a soma de diversas causas e efeitos, ações e reações, que cria o verdadeiro arco narrativo: não a trajetória deste ou daquele personagem, mas um fio que perpassa todos os personagens.

O que permite esse duplo movimento do filme é a harmonia, em si bastante rara, de duas opções em tese opostas de dramaturgia: a que privilegia a individualidade e a subjetividade das personagens, como se eles fossem pessoas reais; e a construção de arquétipos, de figuras alegóricas ou metafóricas que estão dentro do filme não para “existir”, mas para cumprir um determinado papel. As personagens são a realização dramatúrgica do “sujeito” que Giorgio Agamben vê surgir como resultado da fricção entre os dois tipos de elementos que habitam o mundo: os seres viventes e os dispositivos em que são incessantemente capturados. “Generalizando posteriormente a já bastante ampla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”, escreveu Agamben. O embate entre o ser e esses dispositivos tem, portanto, também um aspecto metalinguístico, pois a linguagem cinematográfica e o olhar do diretor “captura, orienta, determina, intercepta, modela, controla e assegura” os gestos das personagens tanto quanto as forças políticas que organizam aqueles seres viventes.

Se o interesse, aqui, está em pensar como as vidas são afetadas pelas estruturas sociais e vice-versa, é importante que Maria seja também reconhecida como “a empregada doméstica” (algo acentuado pelo nome quase igual de sua filha, que, ao assumir o trabalho da mãe aposentada, passa a calçar suas sandálias), que Francisco seja Francisco e também o “senhor de engenho”, que “o estranho sem nome” carregue também a trajetória pessoal de Clodoaldo (a rigor, extremamente parecida com a de outro clássico arquétipo: o personagem de Charles Bronson em Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone), que João também seja “o sinhozinho” (como bem apontou Inácio Araújo). Não há, porém, personagem que melhor carregue essa duplicidade – esse conceito em carne e ossos – que Bia: ela é não somente a mãe de família com arroubos de patroa cruel, mas também a corporificação do jogo de dentro/fora que marca todo o conflito do filme (a começar pelo último, e original, entre Francisco e o pai de Clodoaldo, por conta de uma cerca). É a mulher que dorme ao lado de um marido que ronca mas não suporta os latidos do cachorro do vizinho, e que suprime sua possibilidade de fuga soprando a fumaça (ou seja: a respiração transformada em matéria; a vida que se faz visível) para dentro do aspirador de pó, evitando que ela saia pela janela. É a que traz uma professora de língua estrangeira – a mais estrangeira possível – para dentro de sua sala. Não à toa, esse trabalho de opostos – a política da arte como embaralhamento do sensível, como embananamento diante daquilo que era tomado como certeza antes do contato com a obra – gera um curioso paradoxo: O Som ao Redor encontra igualmente o sublime da evasão (a fumaça que sai da boca de Maeve Jinkings, com um movimento de câmera que parece desejar também ser tragado pelo aspirador de pó) e o sublime da invasão (o regozijo com a chegada de cada moleque com camisa na cabeça, no motim que assombra o pesadelo da menina). Não se trata, portanto, de um coral qualquer; mas um em que cada voz parece ser, ao mesmo tempo, soprano e baixo, agudo e grave.

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Essa estrutura de coral – ao mesmo tempo dedicada em criar personagens que parecem críveis mas que desempenham, como todos nós, papéis sociais que os definem – é equilibrada de maneira quase sempre precisa, na construção de cenas que respondam igualmente ao indivíduo e ao arquétipo, a esses vários arcos dramáticos e ao único arco dramático que reúne todos os outros. O limite de O Som ao Redor – no qual ele resvala algumas poucas vezes – é, naturalmente, o da cena como esquete. Se há uma melodia compartilhada por todos aqueles personagens, ela se rompe justamente nos raros vôos solo, nas poucas cenas que se descolam do todo e parecem contentes em se resolver internamente, mais pela força auto-suficiente das gags (engraçadas ou não) do que pela reverberação em uma carcaça – de um prédio alto, moderno e feio, terrivelmente feio – que não pára de vibrar. Isso acontece em alguns momentos de interação entre João e Sofia, na sequência das meninas que emulam um diálogo na beirada da piscina, ou em alguns momentos de falsa construção de suspense (a sequência do vômito, por exemplo) que se bastam como idéia, mas que por vezes interrompem o fluxo do filme para que essas idéias se realizem, sem afetar o que veio antes ou o que virá depois.

Pois em um corpo social tão coeso quanto o apresentado por O Som ao Redor – em um corpo social que tem na absoluta coesão seu maior perigo – não há espaço para desejos, vinganças ou provocações que sejam puramente pessoais. O indivíduo precisa ser deixado de fora (do quadro e do prédio), pois a vida em condomínio (ou no engenho), ao contrário, parte justamente do princípio de que nada é pessoal, e que viver é apenas uma relação de negócios. É essa a tragédia do mundo, e é essa a tragédia do filme. Pois nem uma vingança pela morte do pai poderá, ao final, ser pessoal. A revanche (ou a ameaça – dependendo de que lado do muro o espectador se sinta naquele momento) não é apenas de Clodoaldo (Irandhir Santos) e seu irmão, mas sim parte de um grande motim já anunciado pelas aparições do Menino Aranha (personagem que o texto de Filipe Furtado trata com maior detenção), no pesadelo da menina e na imagem que treme ao chegar no engenho, como se a única força capaz de abalar o auto-controle da câmera de Kleber Mendonça Filho fosse a herança histórica e o som dos passos das vidas por ela usurpadas. O caminho para o fim (do filme) é marcado por essa irrupção coletiva, pela inevitabilidade de que as casas (grandes) sejam invadidas. O destino de O Som ao Redor não é o de Francisco, João, Clodoaldo ou Bia, mas de toda uma ordem ali estabelecida, que rege todas aquelas vidas.

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