diariosdeclasse-header

Pedagogia de uma montagem que fala

Uma sala de aula, assim como um corpo, só consegue existir em relação com aquilo que se situa fora dela. Por mais que alguns façam de tudo para neutralizar tal condição através de um jogo retórico que rejeita e ignora a implicação do fora no curso dos acontecimentos imediatos, ele se fará presente. Ainda que tal jogo retórico produza fantasias como a ideia de grupo autossuficiente ou a percepção de um eu isolado, alguma corrente de ar teimará em vir lá da onde não estamos para infestar o espaço e desfazer as pretensas fronteiras entre exterioridade e interioridade. E é justo na passagem dessa ventania que Diários de Classe opta por inaugurar sua incursão ao cotidiano de estudantes de EJAs (Educação para Jovens e Adultos) na Bahia.

Estamos na sequência inicial, responsável por nos introduzir ao espaço letivo através de alguns planos curtos que serão intercalados em sintonia com o ritmo do diálogo empreendido pela professora. A dinâmica da explicação é respeitosamente acompanhada pelo tempo entre os cortes, indicando o desejo do filme de se filiar ao processo pedagógico ali ativado. Subitamente uma voz emerge do fora de quadro e o raciocínio da aula é interrompido. A voz chega de forma abrupta, mas não insólita pois já participava do arranjo entre ruídos e falas dispersas que ecoavam do corredor interferindo na paisagem sonora da aula. Dessa vez, no entanto, a interferência é incontornável e se encarna no movimento do corpo de Vânia que adentra o espaço desenfreada pois seu filho está desaparecido e ela precisa desesperadamente falar.

Testemunha leal dessa necessidade irreprimível de fala, Diários de Classe acompanhará Vânia, Tifanny e Maria José enquanto guias na travessia pelas situações para as quais ele dedicará a sua atenção. Se em algum momento dessa travessia temos a impressão de estarmos alternando entre as salas de aula de um mesmo prédio – ainda que as escolas retratadas se situem em locais distintos – é porque o filme carrega e elabora uma consciência fina a respeito do elo que conecta a experiência de cada uma dessas três personagens. Não à toa são todas mulheres negras num país onde um projeto histórico de dominação e extermínio racial está ainda em curso. Nesse caso, fazer com que a montagem embaralhe o cenário de vida das interlocutoras, que não chegarão a conviver no mesmo quadro, é uma operação que implica o movimento do filme na tendência, para onde o discurso que permeia as falas já aponta, de perceber cada vivência particular em seu enlace coletivo.

Em meio ao debate efusivo que acompanhamos se desenrolar em sala após a projeção de algum filme que aborda o período da escravatura (nos créditos descobrimos se tratar de Escravos e Santos de Marcio Nunes de Abreu e Kaya Verruno, 2014), Celia é questionada por suas companheiras de turma sobre o quanto a dinâmica de sujeição do seu tempo ao tempo da patroa pode estar ameaçando a sua frequência no curso. Celia refuta se amparando em argumentos que soam como oriundos de outras bocas, provavelmente mais rosadas do que a sua. Com a persistência da discussão, acaba rebentando dela a revelação de que sua condição não deveria espantar uma vez que é escravidão o regime que ainda acomete muitas das presentes e mesmo o prédio onde se situam se assemelharia a uma senzala. À sequencia do debate se sucede um plano médio no qual a vista para o mar é paulatinamente impedida no movimento do portão de ferro que se fecha puxado por um guarda negro carregando os dizeres “poder judiciário” nas costas da camiseta. Daí seguimos repentinamente para o emblema do Abrigo Lar Pérolas de Cristo, ilustração na parede que introduz espacialmente à sequência na qual Tiffany e sua amiga performam uma coreografia para o funk “Bumbum Granada” que escutávamos desde o final da discussão em sala de aula. No jogo deliberado de conjugação entre essas cenas ocorridas na escola, no conjunto penal e no abrigo, Diários de Classe engendra uma espécie de terceiro território – instância comum, acionada pelo encontro entre as imagens, fundada numa imbricação com a parte exterior de cada uma delas e não mais circunscrita às delimitações físicas dos três espaços anteriores.

diariosdeclasse_02

A respeito dessa operação, vale mencionar uma das noções chaves na construção de uma educação libertadora a partir do método discutido por Paulo Freire ao longo dos anos de desenvolvimento de sua pesquisa prática-teórica. Em livros como Pedagogia da Autonomia, a consciência do caráter coletivo e estrutural da condição de opressão aparece como peça fundamental para a efetivação do processo pedagógico de quem está situado nela. Uma vez que o problema é encarado como parte de um contexto mais amplo, a estrutura que o produz é desvelada e a educanda se despoja do sentimento de culpa na compreensão de que sua situação não deriva de qualquer incapacidade particular, mas da atualização de um projeto histórico de exclusão que aflige não apenas uma, mas muitas. Abandonada a perspectiva estritamente individual, os elementos inibidores do seu aprendizado – oriundos de um regime autodepreciativo que a responsabilizava por não possuir determinado conhecimento – perdem força, já não pegam. Dessa forma, quando a montagem inscreve as vivências antes dispersas num só agenciamento, ela tanto participa do experimento de formação pedagógica quanto exercita uma escuta rigorosa do campo de ressonância entre as diferentes experiências retratadas.

Por sinal, a atividade da escuta é tarefa prioritária com a qual Diários de Classe se comprometerá ao longo de sua jornada. Talvez por isso é que, nesse caso, a predominância quase que exclusiva de planos fixos – a câmera só se movimenta no momento em que persegue a bola durante uma partida de futebol no abrigo – não evoque um olhar amortecido, mas atento. Algo como encarnar, através do posicionamento de câmera, a firmeza compenetrada de quem ouve. Não pela benevolência caridosa daquele que empresta seus ouvidos a uma causa nobre, mas pelo reconhecimento de uma força cênica e política que emerge a cada vez que as personagens tomam a palavra.

Dos debates na sala de aula ao café compartilhado por Maria José e a companheira no sindicato das domésticas, existe uma eloquência inquietante nas intervenções das personagens capaz de forjar uma arma de guerra com a qual elas enfrentam e atravessam suas lutas cotidianas. A tomada da palavra é a ação elementar para por a máquina-filme em funcionamento. O que não deixa de espantar que, num contexto em que boa parte dos espaços de organização política do país enfrentem os impasses de uma espécie de saturação verborrágica – cenário, diga-se de passagem, oriundo de uma práxis política eminentemente masculina que se estrutura na ânsia pela dominação da narrativa – essas mulheres nos reenviam a capacidade da palavra de fissurar a realidade sem desejar curvá-la ao seu laudo. Quando o verbo parecia esgotado de seu potencial ativo, pois a energia de engajamento fora excessivamente investida numa disputa oratória que se consumia a si própria à exaustão, as personagens de Diários de Classe invocam outro método. Tanto dialógica quanto insubmissa, a letra delas se agencia no seu presente histórico, não se resume à sua natureza de código e deixa vir à tona experiências de vida cuja forma de aparição já desestabiliza a ordem dada do mundo como o conhecemos. As palavras por elas pronunciadas são corpos em combate.

Não deixemos de mencionar o quanto a eloquência que insurge na intervenção das personagens fere àquela ideia implícita, conveniente aos paternalismos tanto da direita quanto da esquerda, de que a participação no jogo político não ocorre por incapacidade ou desinteresse da população. Relembremos para isso a cena na qual Vânia e sua parceira de cela, na companhia de um exemplar do código penal estirado no colo, investigam a sua situação e tentam estudar os meandros dos artigos pelos quais respondem judicialmente. Ambas se queixam da quase inexistente proximidade com os procedimentos jurídicos que agora definem o curso de suas vidas e, enquanto conversam, sua imagem é intercalada com os dizeres riscados na parede “Ela não é tímida, ela foi silenciada”. Quando tanto a desonestidade intelectual grosseira que orienta os discursos do presidente recém-empossado quanto a soberba dos dirigismos, aos quais parte das entidades políticas consagradas nacionalemente tem cedido, se legitimam na subestimação da nossa capacidade de articular e compreender os processos nos quais estamos inseridos, Diários de Classe nos revela figuras com uma disposição inaudita para raciocinar e responder às implicações de sua posição sócio-histórica. Se por acaso elas não manuseiam com ainda mais desenvoltura as ferramentas de transformação social e institucional é porque não existiu vontade política concreta que lhes permitisse o acesso. “Já conheceu alguém que lhe explicasse o que está no código penal?” Vania pergunta durante a conversa. Percebemos que, também na vida política, o processo é que constitui o sujeito e apenas espaços que ousem distribuir o poder e a responsa entre todos os seus participantes é que assistirão ao nascimento de sujeitos efetivamente ativos e emancipados. Ela não é analfabeta política, ela foi ignorada.

diariosdeclasse_01

Em dissonância ao vício de inferiorização da capacidade intelectual e participativa do povo, Diários de Classe levanta a voz das personagens e constrói, no diálogo com suas colocações, um agenciamento coletivo de enunciação. Entre as palavras ditas e as cenas testemunhadas, o filme opta por inserir imagens de pixos que funcionam como cartelas para seu desenvolvimento narrativo. “Vandalismo é a bala perdida”. Mais uma maneira em que o filme conversa com seu próprio material. “Todo preto na cadeia é um preso político”. Conversa que também ocorre durante os momentos fortes de expressividade na escolha de concatenação entre os planos, como na sequência em que o batismo evangélico acontece numa piscina de plástico no pátio externo da prisão. Quando o mergulho e a conversão são consumadas, recebemos a imagem da água da piscina escorrendo do cano a ser desperdiçada; somos então levados à visão aproximada do rosto de Maria José no ônibus, sucedida pela janela em que está escrita a sinalização “saída de emergência” apontando para a a visão daquela mata verde que margeamos durante o trajeto do ônibus. As proposições transmitidas por esse tipo de articulação da montagem se relacionarão com as proposições proferidas e escritas e retomará novamente a escuta no sentido que Paulo Freire defenderá quando escreve que “escutar alguém é no fundo falar com eles” gesto que não existe sob qualquer ideia de unilateralidade, nem para uma perspectiva nem para a outra. A escuta que Diários de Classe experimenta acontece na costura de uma tapeçaria composta por enunciados múltiplos que jamais se bastam, pois adquirem força de mobilização numa incessante conexão com aquilo que está fora de si próprio, com a realidade que lhes envolve e lhes excede por todos os lados.

À pergunta retórica que intitula o livro Pode o Subalterno Falar?, Chakavortry Spivak desenha uma resposta negativa que recoloca a questão em perspectiva. Se com ela concluímos que não, o sujeito em posição de subalternidade não pode falar, não é porque ele não possa articular um discurso inteligível sobre si mesmo e o mundo, mas porque o sujeito dominante organiza todo um aparato de circulação de enunciados e padrões de compreensibilidade que o impedem de ouvir o subalterno falar. O problema não seria, portanto, de fala, mas de escuta. A envergadura com que Diários de Classe assume a escuta nas suas operações formais, assim, revela um trabalho de militância que desorganiza a ordem dada do mundo e força outras interlocutoras na roda da fala para a qual se direcionam os ouvidos.

Note-se que, ao ser assistido hoje, os contornos militantes do filme se redesenham no momento histórico em que as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o Ensino Médio acabam de ser aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação através de um documento que prevê a realização de até 20% da carga horária do Ensino Médio na modalidade de Educação à Distância (EaD) e, no caso da Educação para Jovens e Adultos (EJA), essas escolas onde nossas guias vivenciam sua formação, o texto permite que até 80% do curso seja extra-presencial. A despeito de atender aos interesses econômicos dos donos de companhias privadas de ensino à distância e suas controversas relações de intimidade com agentes do governo federal, a perversidade dessa aprovação cumpre a função estratégica de sufocar os encontros tão indissociáveis do processo letivo em espaços como as EJAs. Numa época em que qualquer estímulo ao pensamento crítico em sala de aula é perseguido, não surpreende que a potência do corpo-a-corpo em trocas como essas que Diários de Classe nos oferece– em sua tendência indômita e espontânea de tornar cada aula uma assembleia – seja um perigo de alto teor subversivo para os censuradores de plantão que agora infestam os cargos do poder. Frente a essa ofensiva, o filme se inscreve como memória viva do por que nos calam e insurgência imorredoura (enquanto durar a obra) à tentativa de nos calar.

Existe ainda, em Diários de Classe a opção por esse modo de abordagem que frequentemente nos remete à tradição observacional do documentário direto. O afastamento de qualquer intervenção na cena que, no caso específico do filme aqui discutido, responde a uma relação de fidelidade extrema com a exposição da situação de adversidade de suas personagens sem por isso embarcar com elas na elaboração (mental, cinematográfica ou imaginária) de uma rota de fuga. O que seria a adesão a essa forma sutil, analisada por Mia em crítica recente publicada no site do Fincar, que o filme engendra ao não apontar rumo a um futuro de transgressão pois “ainda precisa vencer a barreira do passado que anda no encalço dessas mulheres cansadas” . Assim mesmo em meio à vitalidade de suas companheiras, a cor mais forte de Diários de Classe ainda é plúmbea e o grave nas cordas e nas trancas marcam sua trilha sonora. Se recusa a oferecer o cinema como um disparador de fabulação ou reinvenção para a dureza do cenário das personagens e afasta-se deliberadamente do exercício do sonho enquanto caminho de construção política ou dramatúrgica. Tiffanny nos dá as direções precisas para a realização de uma cena em que ela se revelaria Tiffanny em meio à vontade do mundo de enquadrá-la enquanto Carlos, ouvimos a descrição das operações de câmera e narração que seriam acionadas para que a filmagem ocorresse, mas sua feitura nunca chega à nossa vista. O que chega é o plano de dela encarando o espelho ao contar com uma serenidade e destreza inigualáveis seu tortuoso processo de coragem para assumir-se como a menina que é.

No ato, o filme prefere remontar a história de como viemos parar aqui ao invés de convocar a imediata superação de nossa posição. Na defesa de uma escrita que se daria no limite, Derrida concebeu uma ideia de atuação política situada no intervalo entre a inversão e a emergência, “a inversão que torna baixo aquilo que era alto e a emergência repentina de um novo conceito que não se deixa mais – que jamais se deixou – subsumir pelo regime anterior”. É com rigor que Diários de Classe trabalha pela inversão – tornando audíveis as falas e experiências de mundo que foram historicamente silenciadas –, mas esse mesmo empenho para provocar em si próprio o surgimento de um novo conceito, uma nova postura, um novo modo de olhar. Talvez porque seu ofício seja justamente o de reorganizar a ordem existente para então situar nós, espectadoras, nesse intervalo onde a inversão acaba de ocorrer e a emergência surgirá (ou não) por nossa conta e trabalho. Sem pretender abarcar todos os processos na sua matéria interior, Diários de Classe se agenciará com aquilo que lhe excede, o fora de quadro onde estamos, para realizar-se.


Leia também: